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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS
As representações sociais como produção subjetiva: seu impacto na hipertensão e no câncer
Las representaciones sociales como produccion subjetive: su impacto en la hipertension y en el cancer
Social representations like subjective production: impact on hipertension and cancer
Fernando Luis González Rey
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO
Neste artigo são apresentados os resultados de uma pesquisa orientada ao estudo da forma em que o conceito de representação social influencia os processos de subjetivação da doença em pessoas com câncer e hipertensão. As representações sociais são redefinidas desde uma perspectiva histórico-cultural sobre a subjetividade, defendendo-se a dimensão de sentido subjetivo na definição ontológica desse conceito. Na base desta definição a pesquisa é desenvolvida numa abordagem qualitativa, apoiada no caráter construtivo interpretativo da investigação. Esta definição metodológica permite a construção teórica das conseqüências das representações sociais nos processos de subjetivação da doença.
Palavras-chave: Representações sociais, Sentido subjetivo, Subjetividade, Hipertensão, Câncer.
RESUMEN
En este artículo son presentados los resultados de una investigación orientada al estudio de la forma en que el concepto de representación social influencia los procesos de subjetivación de la enfermedad en personas con cáncer e hipertensión. Las representaciones sociales son redefinidas desde una perspectiva histórico-cultural sobre la subjetividad, defendiendose la dimensión de sentido subjetivo en la definición ontológica de este concepto. En la base de esta definición la investigación es desarrollada en una abordaje cualitativa, apoyada en el carácter constructivo interpretativo de la investigación. Esta definición metodológica permite la construcción teórica de las consecuencias de las representaciones sociales en los procesos de subjetivación de la enfermedad.
Palabras clave: Representaciones sociales, Sentido subjetivo, Subjetividad, Hipertensión, Cáncer.
ABSTRACT
In this paper are presented the results of one inquiry oriented to study the way in which the concept of social representation influences on the process of subjectivation of the illness in persons with cancer and hypertension . Social representations are redefined from a historical-cultural comprehension about subjectivity. It is defended the subjective sense dimension in the ontological definition of the social representations. As a consequence of this definition, the inquiry is developed on the basis of a qualitative approach oriented by a constructive interpretative principle. This methodological definition permits the theoretical construction of the consequences of the social representations on the processes of subjectivation of the illness in the participants.
Keywords: Social representations, Subjective sense, Subjectivity, Hypertension, Cancer.
Introdução
A teoria das representações sociais inaugurou o estudo dos processos de subjetivação da vida social e, embora na própria teoria, de forma explícita, o tema da subjetividade tenha entrado de forma relativamente recente (GONZÁLEZ REY, 2002; JODELET, 20051; MOSCOVICI, 2005), pode-se dizer que desde os trabalhos pioneiros neste tema (MOSCOVICI, 1961; HERZLICH, 1973; JODELET, 1989), a questão da subjetividade tem ficado muito presente, ao identificar a representação social como uma organização simbólica sobre a qual se desenvolvem as diferentes práticas e relações sociais dos membros de um grupo, instituição e comunidade, o que representa uma produção subjetiva. Com a teoria das representações sociais, o social deixou de ser percebido em seu caráter objetivo e externo em relação aos sujeitos envolvidos nas diferentes práticas sociais. As representações sociais constituem uma forma de produção de conhecimento que assegura a estabilidade do mundo no qual as pessoas acreditam, o que representa um processo de produção subjetiva que garante a identidade e a segurança das pessoas. Como Moscovici (2003, p. 56) nos diz:
O medo do que é estranho é profundamente arraigado. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato com o que propicia um sentido de continuidade de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável.
As representações sociais constituem a realidade conhecida à qual se atribui um valor de realidade como forma de preservar nossa própria subjetividade. As representações sociais foram, portanto, a primeira teoria que, de forma orgânica, enfatizou a construção social da realidade. Neste sentido, o conceito de representação social significou a primeira evidência, dentro da psicologia social, do caráter produzido e subjetivo da realidade social.
A realidade social em que nos situamos, como realidade produzida, não levou Moscovici à armadilha em que o construcionismo social caiu, ao representar essa realidade construída apenas como uma produção simbólica, sem nenhum nexo com outros registros que definem processos e fenômenos que, tendo um caráter diferente das nossas práticas simbólicas, as constituem. Esses elementos que, mesmo entrando na ordem do simbólico nas práticas humanas, não são processos simbólicos em si mesmos, e que são inseparáveis do conjunto de nossas práticas é o que pode ser chamado de realidade. Precisamente, a realidade social é construída porque existem processos subjetivos que expressam outros registros da realidade e que são os responsáveis pela produção da realidade social. A subjetividade não é uma cópia, nem um reflexo do mundo real, é uma produção humana de caráter simbólico e de sentido que, dentro da realidade social em que o homem vive, lhe permite as diferentes opções de vida cotidiana e de seu desenvolvimento.
O objetivo principal deste artigo é estabelecer uma relação articulada entre os processos de subjetivação sociais e individuais e as representações sociais, no processo de subjetivação das doenças crônicas em pacientes concretos, e definir como o aspecto sub-jetivo das doenças é essencial na forma como ela é vivida pelo sujeito, aspecto tratado de forma secundária e insuficiente dentro do modelo biomédico.
Fundamentação teórica
Os aspectos subjetivos tanto da hipertensão quanto do câncer têm sido estudados a partir de diferentes perspectivas, entre as quais se destacam a Psicanálise e a Psicologia Cognitiva norte-americana. Pela primeira perspectiva, procura-se uma representação das dinâmicas internas associadas com a gênese do sofrimento, o que, nesta teoria, tem uma grande significação na aparição das doenças somáticas. A psicologia cognitiva, no entanto, nos apresenta uma visão mais centrada no estresse e na falha dos processos de enfrentamento, de natureza cognitiva, que facilitam o desenvolvimento das emoções estressantes associadas à doença.
No momento atual, no entanto, as definições mais clássicas sobre as quais se têm apoiado as pesquisas nesta área começam a ser questionadas pelos autores que lhes deram origem. Neste sentido, é importante a crítica feita por Lazarus em seu último livro (1999), no qual reconhece as limitações do conceito de estresse pela ausência de uma teoria psicológica das emoções.
As questões teóricas e metodológicas que, de forma geral, afetam o desenvolvimento da Psicologia, afetam também os estudos que sobre as doenças crônicas têm sido desenvolvidos nesta ciência. Um dos maiores problemas desses estudos é que eles têm se desenvolvido de forma parcial, expressando não apenas a fragmentação historicamente dominante na psicologia entre as diferentes áreas do saber psicológico, mas criando uma nova fragmentação por meio da diferenciação entre o estudo psicológico dos diferentes tipos de doenças crônicas, reproduzindo, assim, o curso tomado pela especialização na medicina.
Neste artigo, centraremos a nossa revisão teórica no campo da subjetividade e das representações sociais, pretendendo fazer a integração dos campos da psicologia social e da psicologia da saúde, de forma a realizar uma análise dos processos de subjetivação, associados às doenças crônicas, dentro do recorte simbólico definido pelas representações sociais.
Um dos pontos fortes da teoria das representações sociais no seu início foi o estudo dessas representações sociais em relação às doenças (HERZLICH, 1973; JODELET, 1989). A primeira das autoras mencionadas estudou os diferentes tipos de representações sobre a saúde e a doença e organizou os diferentes eixos que definiam as representações sociais do grupo estudado. Jodelet, de sua parte, fez um estudo dos atributos e práticas que caracterizavam as representações sociais sobre a loucura em uma colônia familiar na França, que recebeu pacientes de um hospital psiquiátrico aberto, orientado à integração dos pacientes na comunidade. Ambas as pesquisas foram feitas por meio de dinâmicas conversacionais abertas, com uma orientação metodológica qualitativa, o que definiu a forma como usaram a própria categoria de representação social.
Um dos problemas que a teoria da representação social apresenta hoje, e que tem sido comum a todas as teorias em processo de desenvolvimento, é a extensão do termo, que é usado de diferentes formas, por autores que o assumem a partir de perspectivas ontológicas diferentes, com o seu conseqüente impacto epistemológico e metodológico. Jodelet (2005, p. 48-49), em uma tomada de posição diante deste problema, escreve:
Mas deve-se constatar que essas diferentes pesquisas (refere-se às duas tendências que ela identifica na pesquisa das representações sociais), cujos progressos permanecem esparsos, ainda não permitem uma visão unitária, para teorizar os fenômenos representativos em ação na vida dos grupos [...] O estudo estrutural das representações, apesar do seu mais alto grau de generalidade e de sua demonstração da incidência de certos elementos estruturais sobre a orientação da ação, sofre por deixar na sombra a questão da gênese da representação.
Penso que quando a autora se refere à gênese da representação, está orientando para os processos e práticas sociais nos quais a representação aparece e que se caracterizam por uma dinâmica que expressa outros elementos e processos muito complexos da realidade social. A processualidade da representação social fica fora de seu estudo estrutural, assim como tampouco a integração das representações sociais dentro do tecido simbólico e subjetivo da sociedade é atendida.
À pergunta de franco caráter ontológico sobre o que são as representações sociais sempre se tem dado uma resposta que enfatiza o seu caráter simbólico, mas, na prática, o simbólico tem-se associado mais com estruturas e processos cognitivos do que com processos subjetivos compreendidos de uma forma mais abrangente, sobretudo, no que tem a ver com os seus vínculos com a cultura e com a afetividade. O estudo da afetividade nas representações sociais tem passado por diferentes definições nas pesquisas sobre o tema e continua sendo um dos aspectos pendentes no desenvolvimento da teoria. Respondendo corretamente às críticas que as tendências mais extremistas do construcionismo social dirigem à teoria das representações sociais pela sua relação com a psicologia cognitiva moderna, G. Duveen (2003, p. 24) expressa:
Desse ponto de vista, todos os processos sociopsicológicos se explicam nos efeitos do discurso e nas realizações e reformulações fugazes da identidade que ele sustenta. É apenas a atividade do discurso que pode ser objeto de estudo nessa forma de psicologia social, e qualquer fala sobre estrutura e organização no nível cognitivo, apresenta-se como uma concessão aos modelos de processamento da informação. [...] Aqui, o fato de a teoria das representações sociais ser vaga deve-se a seu afastamento insuficientemente radical de um discurso mentalista, mas, como observou Jovchelovitch (1996), a pressa em evacuar o mental do discurso da psicologia social está conduzindo a uma re-criação de uma forma de comportamentalismo.
Apesar da ênfase que Moscovici sempre tem colocado no caráter simbólico das representações, o que é mencionado também por Duveen, considero muito importante a preocupação de Jovchelovitch, assumida pelo autor, em relação à pressa de evacuar o mental, quando na realidade se trata de compreender o mental numa outra perspectiva ontológica. Querer avançar na teoria das representações sociais, sem tomar posição em relação ao seu caráter ontológico, poderia pôr em perigo o seu futuro perante as tendências orientadas a diluí-la no discurso, ou aquelas que pretendem coisificar a representação em entidades definidas pelo comportamento individual.
As representações sociais e seu caráter subjetivo
O tema da subjetividade, diferente do que com freqüência se afirma, nunca encontrou uma definição ontológica própria na história da Psicologia. Para isso, influenciou muito a associação entre espiritualidade e subjetividade que aconteceu na filosofia metafísica, na qual a subjetividade se separou totalmente do campo da ação humana. Essa dicotomia ao considerar o subjetivo como espiritualidade e a natureza como algo técnico e concreto, que começou na própria filosofia grega, foi se alimentando no desenvolvimento da filosofia moderna, em particular naquela filosofia que estimulou o desenvolvimento das ciências modernas, começando com Bacon e tomando muita força no positivismo. O método e a objetividade baniram do cenário do pensamento tudo o que lembrava aquela subjetividade superior, separada da ação, encarnação máxima da razão humana, que tinha impedido a relação entre o espiritual e a ciência. Essa dicotomia continuou sendo desenvolvida pela filosofia inspiradora da ciência moderna, só que, neste caso, enfatizando o momento da objetividade e da natureza.
Em Psicologia, a subjetividade sempre se apresentou como o que pertencia ao sujeito e, no começo, pela sua orientação individual, foi compreendida como a natureza interna do indivíduo, não ficando clara, porém, sua especificidade ontológica.
A definição ontológica da subjetividade é dada pela produção de uma qualidade nova da psique humana nas condições da cultura, o que faz da subjetividade um momento inseparável do desenvolvimento da humanidade. O subjetivo não é o contrário do objetivo, é uma forma de objetividade, aquela que caracteriza a especificidade qualitativa dos diferentes processos humanos. Toda atividade humana tem um momento subjetivo que não pode ser ignorado, o que até hoje foi profundamente desconhecido em muitos campos da atividade humana.
Um pensador que influenciou muito uma representação diferente da essência humana, facilitando assim a emergência de uma nova psicologia, foi Marx, quando definiu a essência humana como o conjunto das relações humanas. Essa colocação levantada por Marx permitiu integrar a psique ao plano da ação e começar a pensar o seu caráter histórico- social. Nesse sentido da inseparabilidade entre a psique e a ação foi fundamental o pensamento de Dewey. O desenvolvimento dessas idéias marcou o caráter revolucionário da psicologia soviética e as novas representações sobre a psique que este movimento acrescentou ao desenvolvimento da Psicologia.
Nesse movimento apareceram conceitos e representações que permitiram retomar o tema da subjetividade em um outro nível, em particular a partir do trabalho de Vigotsky e Rubinstein. Porém, a interpretação mecanicista e reducionista do marxismo, que caracterizou o poder político soviético, também levou a uma negação da subjetividade por considerá-la uma reminiscência do pensamento idealista.
Sendo assim, no interior da própria psicologia soviética, como tem sido analisado por autores como Chudnovsky (1982), Zinchenko (1997), Menchinskaya (1977) e outros, ignorou-se o conceito de subjetividade e foi desenvolvida uma psicologia da atividade que, embora tivesse seus méritos, desconsiderou os aportes de Vigotsky e Rubinstein, que abriram as portas para o desenvolvimento do tema dentro de uma nova perspectiva.
É nessa direção que venho desenvolvendo meu trabalho no tema da subjetividade numa perspectiva histórico-cultural nos últimos vinte anos (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS, 1989; GONZÁLEZ REY, 1995, 1997, 2000, 2003, 2004, 2005), e, assim, pretendo fazer a articulação das representações sociais com a subjetividade. Esta aproximação do tema da subjetividade tem na sua base o desenvolvimento sentido da categoria introduzida por Vigotsky na última fase de sua obra.
Pelo fato de ter dedicado a este tema muitos trabalhos anteriores, e pelas limitações próprias que impõe um artigo, me conduzirei a destacar os conceitos de sentido subjetivo e configuração subjetiva (GONZÁLEZ REY, 1995, 1997, 1999, 2003, 2004). Nesses trabalhos referidos, o sentido subjetivo aparece como a unidade inseparável do simbólico e o emocional, onde um evoca ao outro sem estar determinado por ele (GONZÁLEZ REY, 2002). O sentido subjetivo sempre aparece associado a definições simbólicas produzidas pela cultura, conceitos e práticas que configuram a nossa realidade social e que constituem a matéria-prima de nossa subjetividade.
O sentido subjetivo se expressa de forma permanente na processualidade da ação humana, na qual uma imagem evoca emoções que não estão associadas àquele contexto e que, por sua vez, geram novas imagens, em um processo infinito que marca os diferentes processos e comportamentos presentes nas diferentes atividades humanas. Por exemplo, uma criança em sala de aula, ao perceber uma atitude do professor, mesmo não sendo em relação a ela, pode sentir emoções características de sua relação com o pai, o que lhe traz imagens e reflexões que terminam constrangendo-a, impedindo seu bemestar e seu rendimento em sala de aula. Esse sentido subjetivo que aparece no contexto da ação social pode iniciar um núcleo de subjetivação que, no seu desenvolvimento, define uma configuração individual em relação ao estudo ou à escola, ou em ambos.
O sentido subjetivo representa a forma como a realidade torna-se subjetiva e está sempre alimentado por uma experiência vivida, só que esta toma um caráter singular a partir dos sentidos subjetivos que intervêm nesse processo no qual participarão não apenas os sentidos produzidos no contexto da ação, mas sentidos historicamente configurados naquele sujeito, o que implica uma complexa rede que tem de ser estudada de forma singular e diferenciada. Essa complexa rede de sentidos subjetivos organizados em relação a um tema ou ação humana é o que definimos como configuração subjetiva.
As representações sociais, em palavras de Moscovici (2003, p. 209-211), representam um certo modelo recorrente e compreensivo de imagens, crenças e comportamentos simbólicos. Mais adiante, no mesmo trabalho, o autor explica:
as representações sociais são sociais pelo fato de serem um fato psicológico de três maneiras: elas possuem um aspecto impessoal no sentido de pertencer a todos; elas são a representação de outros, pertencentes a outras pessoas ou a outro grupo; e elas são uma representação pessoal, percebida afetivamente como pertencente ao ego.
É precisamente essa multiplicidade de facetas que faz da representação social uma produção subjetiva complexa que, simultaneamente, está constituída na subjetividade individual e na social. O aspecto emocional que o autor associa à percepção afetiva como pertencente ao ego, na verdade, responde, a nosso ver, aos sentidos subjetivos que em cada sujeito individual se organizam na representação social (GONZÁLEZ REY, 2003). Esta imbricada configuração subjetiva das representações sociais precisa de uma aproximação qualitativa, orientada a estudar em profundidade a expressão dos sujeitos e suas diferentes práticas, como foi feito nos trabalhos de Herzlich (1973) e Jodelet (1989).
Metodologia
O material empírico do presente estudo foi tomado de uma pesquisa mais abrangente intitulada Identidade e representação subjetiva da doença: seu significado para repensar a prevenção de saúde no câncer e no enfarto do miocárdio. O estudo apóiase na epistemologia qualitativa (GONZÁLEZ REY, 1997), que destaca o caráter construtivo- interpretativo e dialógico da produção do conhecimento, assim como a significação do singular no conhecimento científico.
Serão apresentados trechos de informação obtidos em conversações individuais com pessoas que estão passando ou passaram pela experiência de ter câncer ou hipertensão. Neste tipo de pesquisa, ao contrário do que acontece na pesquisa hipotético-dedutiva de caráter quantitativa, orientada à medição e à verificação, o processo da investigação orienta-se para a produção de um modelo de inteligibilidade que nos permite avançar na compreensão da organização e dos processos que caracterizam o problema estudado. O valor e a legitimidade do conhecimento passam a estar mais relacionados à viabilidade e ao desenvolvimento de modelos do que a demonstrações pontuais sobre relações entre variáveis.
Referindo-se às exigências epistemológicas da pesquisa social, Moscovici (2005, p. 14) expressou-se recentemente da seguinte forma:
Ainda hoje, o psicólogo e o psicólogo social, particularmente, encaram seus objetos, seus estímulos, à maneira dos físicos, isto é, como dados, data do real. Sua atitude os impede de se lembrarem dos processos mentais, das práticas que produziram tais objetos.
Mesmo que no campo epistemológico tenha crescido a consciência crítica no interior da Psicologia, essas considerações epistemológicas, que vêm praticamente de todos os campos da Psicologia atual, ainda se expressam de uma forma muito tímida no campo da pesquisa psicológica, até pelo fato de as exigências formais da maioria das revistas, no campo da pesquisa, ainda responderem completamente a uma representação metodológica centrada no empírico e numa forma rígida de formalização, que, para muitos, segue sendo sinônimo do científico. Para isso contribuiu, e muito, a falta de cultura, de leitura e atualização de muitos psicólogos com capacidade de decisão institucional.
A partir do posicionamento epistemológico que assumi com a definição da epistemologia qualitativa, para encarar os desafios do estudo da subjetividade nesta perspectiva, venho trabalhando no desenvolvimento de um tipo de pesquisa qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2002, 2005) condizente com aqueles princípios epistemológicos que enfatizam os seguintes aspectos:
A produção de um cenário social que permita a incorporação voluntária dos participantes em condição de sujeitos da pesquisa. Ou seja, a criação de um clima que estimule o interesse dos participantes a se envolverem na investigação e na discussão de temas de sua experiência, permitindo a sua reflexão e a sua emocionalidade, única forma de facilitar a expressão dos sentidos subjetivos. Neste tipo de pesquisa se dá uma particular atenção ao cenário social que estimula a participação e as relações entre os sujeitos.
Em relação aos instrumentos, propõe-se a ruptura com o ritual da estandardização, confiabilidade e validade que caracteriza até hoje o imaginário psicométrico em Psicologia, mas que foi além da psicometria, constituindo-se em parte do imaginário metodológico da Psicologia. O método se associa à via objetiva para garantir a cientificidade do dado. Como coloca Adorno (2001, p. 22): Em geral a objetividade da pesquisa empírica é uma objetividade do método, não do pesquisado. Consideramos o instrumento como um indutor da informação numa situação social propiciadora (GONZÁLEZ REY, 2002).
Propõe-se, também, que se passe de uma lógica da resposta para uma lógica da construção. Metodologicamente o que nos interessa é que as pessoas falem a partir de suas experiências, se envolvendo em sistemas de conversação que as cativem e lhes permitam expressar-se livremente, sem os recortes arbitrários que as perguntas impõem a partir da lógica do pesquisador. Um dos precursores desses sistemas conversacionais foi M. Billig (1987).
A construção da informação vai ser desenvolvida no próprio processo de emergência da informação. À medida que os participantes se expressam, nos diferentes instrumentos verbais ou escritos, o pesquisador vai desenvolvendo hipóteses, idéias e reflexões que organizam a produção do conhecimento sobre o tema estudado (GONZÁLEZ REY, 2005).
Na presente pesquisa, trabalhou-se com pacientes com câncer e hipertensão. Os instrumentos utilizados foram: sessões de conversação e complemento de frases. Foram feitos estudos de casos, acompanhando cada sujeito de forma diferenciada no curso de vários encontros, o que foi definido de acordo com a necessidade de cada caso.
Análise e construção da informação
Apresentaremos as informações analisando trechos das conversas, assim como as construções feitas no complemento de frases, as quais relacionaremos pelos indicadores para o acompanhamento das hipóteses que levantamos no curso da análise. Os indicadores são essenciais na lógica construtivo-interpretativa que norteia nossas pesquisas, uma vez que eles representam construções hipotéticas formuladas no processo de construção da informação, convertendo-se, assim, nos elementos ao redor dos quais a informação se torna conhecimento produzido. Como afirmamos antes, o objetivo do trabalho é começar a desenvolver modelos teóricos que nos permitam identificar os processos de subjetivação das doenças crônicas e a significação das representações sociais nesse processo.
Entendemos o modelo de forma muito semelhante ao que foi definido por Bourdieu et al. (1975), como um sistema de hipóteses que se articulam entre si produzindo uma coerência, mas, junto a esse elemento ressaltado pelo autor, acrescentamos que o modelo torna-se responsável por diferentes significações que nos permitem uma representação teórica em desenvolvimento daquilo que é estudado, levando a eixos de construção teórica que se complementam entre si ao longo do processo de construção da informação.
A representação social e o sentido subjetivo da doença
Quando a pessoa recebe o diagnóstico da doença, este é um momento em que o nível de diferenciação de sua resposta subjetiva é extremamente baixo, em particular naquelas doenças associadas com a morte, dado o caráter definitivo e sem opções com que se tem enfrentado o tema da morte em nosso imaginário cultural. É por isso que o momento do diagnóstico torna-se muito significativo para o estudo das representações sociais das doenças.
Por exemplo, M, do sexo feminino, 34 anos, operada de câncer de mama, expressa em relação ao momento em que recebeu o diagnóstico de câncer:
Não dormia com medo de não acordar. Hoje deixo o barco correr. Engraçado é que quando se tem uma doença como o câncer, começa uma lenta espera pelo fim e, nessa espera, tantas pessoas saudáveis morrem num piscar de olhos, ou seja, troquei minha incerteza de antes para o prazer de estar aqui hoje, junto com os meus e pronto.
Como resultado de nossas rotinas, do nosso modo de vida carregado no dia-a-dia, geralmente, nós nos sentimos e vivemos o hoje como condição do futuro, ou seja, trabalhando hoje para recolher amanhã. Isso, inclusive, tem sido usado por certos regimes políticos e instituições, ao longo da história, para pedir o sacrifício hoje com vistas a garantir o amanhã. Em geral, existe um elemento de sentido subjetivo no imaginário da população ocidental, no qual o tempo não é desfrutado no presente, o que aparece com toda a sua força na representação social da doença. As doenças associadas à morte quebram a temporalidade futura em que se apóia a segurança da pessoa. No nível individual, esse primeiro momento do impacto da morte está subordinado completamente à representação social da doença, mas, progressivamente, vai dando espaço para novos sentidos subjetivos naquelas pessoas que conseguem ir além desse primeiro impacto, o que permite, como no caso de M., a produção de novas representações, alternativas em relação àquelas que são dominantes. Esse indicador, associado à mudança do sentido subjetivo do tempo, que faz parte da representação social da doença e que aparece no trecho apresentado, pode ser visualizado também no complemento de frases quando ela expressa:
Eu gosto muito: de entrar no mar.
Considero que posso: viver cada dia bem.
Diariamente me esforço: por não me desanimar.
O presente: está aqui.
Se eu pudesse: mergulharia no mar à luz do luar com meu marido.
A vida: é belíssima. Valorize-a!
Não posso: deixar de curtir cada dia.
Quero viver: plenamente cada momento.
A competição: para mim é um desprazer.
A mudança do sentido subjetivo do presente, a que M. se referiu no trecho transcrito, reafirma-se nessas frases apresentadas, nas quais o presente não aparece apenas como dimensão temporal, mas como prazeres imediatos do cotidiano, que estão sempre nas possibilidades do dia-a-dia. No entanto, os sentidos subjetivos configurados na representação social do cotidiano, que hegemonizam um certo modo de vida, impedemnos de ver. Assim, como o presente aparece como um referente explícito de sua ação e seus esforços, surge o prazer por entrar no mar, pela luz do luar, indicando a abertura de um nível de sensibilidade para aquilo que está no cotidiano do mundo, o que está estreitamente relacionado com o sentido subjetivo da recuperação do presente. Essa recuperação do presente, na sua capacidade de ser vivido por meio de novas emoções e expressões simbólicas, expressa um sentido subjetivo novo, que permite novas opções de vida diante das novas situações.
A representação social da doença configura-se por sentidos subjetivos e práticas simbólicas que fazem parte da rotina das pessoas. Esse cotidiano só pode organizar-se de práticas aceitas e compartilhadas, que são condições sociais das quais derivam a aceitação social, o status, o reconhecimento e todas essas dimensões subjetivas do social, que são essenciais para a segurança e a aceitação individual, e que nos fazem viver na competição com os outros. Portanto, a representação social da doença traz muito dos sentidos subjetivos da representação social do cotidiano que, neste caso, aparecem como sentidos subjetivos que contribuem para a desvalorização social e a exclusão do doente e com todas as conseqüências que isso tem em termos da configuração da subjetividade individual.
Consideramos a representação social do cotidiano como o sistema de atividades, crenças e compromissos que o definem como certo, integrando as práticas, relações, formas de avaliação e comunicação de um determinado grupo social. Esse cotidiano é a forma como vivemos nossas realidades sociais, que se objetivam nas rotinas e valores do dia-a-dia e que passam a ser consideradas como o real para as pessoas.
A aparição de um sentido subjetivo associado ao presente permite à pessoa não se desmobilizar socialmente, mantendo seus interesses pelo trabalho, pela profissão, pelo estudo, pelas atividades culturais e pelos seus relacionamentos sociais. Manter isso significa romper com a exclusão social que coloca o doente como não útil e no caminho do fim. Assim, M. expressa no complemento de frases: 78 Fernando Luis González Rey Psicologia:
Minha principal ambição: é concluir o mestrado e fazer o doutorado.
Se trabalho: me sinto útil.
Quando estou sozinha: gosto de deitar e ver um bom filme.
Meus amigos: são preciosos.
Meu grupo: é seleto.
As frases anteriores evidenciam que os interesses se mantêm vivos, assim como seu grupo de relacionamentos. A reorganização de sentidos subjetivos lhe permitiu recuperar suas diferentes relações com a vida, mas numa perspectiva diferente do cotidiano e de seu próprio lugar nesse cotidiano. Em outras frases ela coloca:
Cabe a mim: lutar por mim mesma.
Dedico a maior parte de meu tempo: para mim.
Luto: contra a dor.
Se as mulheres: acreditassem mais em si mesmas seriam mais felizes e menos submissas.
Eu: amo ser quem sou.
Nessas frases evidencia-se o valor que ela sente como pessoa e o direito que atribui a si mesma de cuidar e atender às necessidades de sua vida, o que é fundamental para alcançar essa disposição que ela expressa para lutar pela vida e enfrentar a situação que vive hoje. Resulta interessante sua reflexão associada à questão de gênero e que pode estar associada à nova configuração subjetiva desenvolvida no processo de viver a experiência da doença.
M. também evidencia como sofreu a condição da doença, a partir da representação social dominante associada a tudo o que foi comentado anteriormente. Em vários trechos da conversa ela expressa: eu não queria falar no assunto, né... a gente fica muito constrangida, eu tinha vergonha de ter o problema que eu tive. Eu acho que a pessoa doente se sente muito inferior.
Da mesma forma que no trabalho de Jodelet aparece o medo do contágio da loucura, aqui acontece em relação ao câncer, que, sem dúvida, tem muito mais a ver com a insegurança e o medo que estão associados à doença e com a representação social dela, do que com a informação que a pessoa domina, pois a grande maioria da população sabe que o câncer não é contagioso. Esse medo é um sentido subjetivo associado à representação da doença. M. explica: muitas (mulheres) têm amizade comigo mas... um pouco assim... de longe; é um oi só, não se aproximam muito... mudou, deixou de ser....
A análise deste caso nos confirma uma forma de observar as representações sociais, não pelos atributos cognitivos declarados pelo sujeito doente, mas pela processualidade de sua fala e de sua expressão aberta, caminho para conhecer tanto os sentidos subjetivos vividos, a partir das representações sociais dominantes, quanto os novos sentidos subjetivos que, na experiência do estar doente, lhe permitem processos de subjetivação orientados a seu desenvolvimento pessoal. As representações sociais dominantes nos processos de subjetivação da doença produzem um efeito subjetivo destrutivo sobre a pessoa doente, devido ao seu impacto nas dimensões de sentido subjetivo associadas ao cotidiano, em termos de temporalidade, aceitação social, incapacidade etc. No nível individual, pelo contrário, a pessoa é capaz de gerar sentidos subjetivos que levam a configurações subjetivas alternativas, facilitadoras do desenvolvimento pessoal.
Esta relação entre representação social da doença crônica e processos de subjetivação individual aparece em muitos pacientes que têm conseguido viver sua doença com qualidade de vida, mantendo sua identidade e sua integração social.
Em outro caso temos M.T., operada de câncer de mama, com 50 anos, também com nível escolar superior, que se expressa em relação à mudança que viveu no processo da doença da seguinte forma:
Acho que hoje eu dou muito menos valor para o dinheiro, dou muito mais valor para a qualidade de vida... porque quando você tem um câncer você tem a impressão que está vendo a morte de perto e todas essas coisas que fazem parte do seu dia-a-dia são uma coisa, assim, que te inspira tanta vida, tudo é diferente, eu me lembro que eu fiquei muito tempo sem trabalhar. Aí teve um dia em que fui para o meu trabalho buscar uns documentos e voltei bem na hora do meio-dia e vim pelo eixo monumental e peguei aquele trânsito, estava um sol quente e eu dentro do carro, mas gente, que felicidade estar no congestionamento, que coisa boa estar sentindo aquele calor, aquele sol, suando, aquele barulho, e engraçado que no mesmo dia eu cheguei com esse pensamento, aí o meu marido chegou em casa dizendo, eu peguei um congestionamento terrível e eu fiquei pensando quando você deixa se envolver no dia-a-dia, você não tem idéia...
Percebe-se, da mesma forma que em M.T. e em muitas pessoas por nós estudadas, o valor do presente, de viver os detalhes aparentemente sem importância do cotidiano, mas que encerram uma expressão de vida desapercebida pela representação social que norteia a nossa forma de viver esse dia-a-dia, e que é responsável por uma realidade social que não é mais do que o resultado da subjetividade social dominante, à qual nos subordinamos completamente sem ter consciência disso.
A representação social da doença não se apresenta apenas em significados limpos suscetíveis de serem falados de forma imediata perante um questionário. A representação social aparece associada a sentidos subjetivos diferenciados, associados a práticas simbólicas e sistemas de avaliação social que passam a se naturalizar, eliminando outras formas de viver e sentir essa realidade do mundo, infinitamente mais complexa e cheia de opções do que o mundo restrito e definido pelas nossas produções subjetivas. Se esse deslocamento do foco dos processos de subjetivação não acontece, as pessoas portadoras das doenças, que entram em contradição com as representações sociais dominantes, não têm a menor condição de ter uma vida saudável.
Nos trechos e frases apresentados, percebe-se que a representação social da doença se expressa por meio de um conjunto de sentidos subjetivos associados às práticas sociais, como o da temporalidade. O câncer traz uma ruptura com a temporalidade situada no futuro. O sentido subjetivo da morte, que faz essa temporalidade aparecer como morte sentida e iminente, é um elemento muito importante da representação social do câncer. A morte, nesta perspectiva, deixa de ter um significado com o qual transitamos num plano intelectual, para converter-se em uma emoção esmagadora e intensa, desdobrada em múltiplos processos simbólicos como aqueles que impedem M. de dormir. Os sentidos subjetivos da morte e da temporalidade são inseparáveis na representação social do câncer. Só a produção de novos sentidos subjetivos, como acontece em ambas as pacientes, permite um processo de subjetivação sadio da doença.
A representação social do cotidiano, o que perpetuamos pela força subjetiva de ser a única opção de vida, surge como elemento de sentido subjetivo do câncer. Ao não poder manter esse modo de vida que garante o nosso espaço social, o sentido de perda irreparável aparece de forma muito forte. Desse modo de vida assumido vão depender os sistemas de avaliação social, o reconhecimento e os sentidos subjetivos associados à vivência de auto-estima, inseparáveis de nossa identidade.
Essa pressão do social no cotidiano apareceu com clareza no trabalho de Herzlich (1973, p. 30) em outro contexto cultural e temporal, quando um dos participantes de sua pesquisa expressou-se: É muito difícil mudar o nosso modo de vida atual. Se você deseja, como indivíduo, viver de uma forma mais balanceada, você será profissionalmente e pessoalmente destruído. A representação social do cotidiano, na qual o tempo é ação relacionada ao ganho econômico e em que se valoriza a ocupação total, está apoiada em um modo de vida centrado no consumo, no qual você deve possuir um conjunto de bens como condição de status e de reconhecimento social. As suas possibilidades econômicas passam a definir seu valor nos diferentes espaços sociais, em grande parte, porque muitas pessoas sentem, pelo menos, que conquistaram esses espaços pelas suas possibilidades econômicas.
A representação social do cotidiano define um conjunto de práticas e processos em que se expressam os sentidos subjetivos compartilhados das diferentes esferas da subjetividade social. A representação social da doença concentra precisamente esses mesmos elementos na sua expressão negativa, o que leva a se considerar a doença como a impossibilidade de acompanhar aquele sistema de práticas e valores em que está sedimentada a condição de sucesso social. É por isso que os sujeitos portadores de doenças associadas à idéia de morte ou limitação social passam a ter seu valor diminuído naqueles espaços definidos pela representação social do cotidiano, que foi gerada a partir do nível atual da sociedade de consumo.
A representação social da hipertensão já apresenta características diferentes daquela que caracteriza o câncer. A hipertensão é percebida como um mal que pode ser controlado com medicamento e que, portanto, se controlada, não mata.
No estudo de casos com L.M., paciente hipertensa de 45 anos, separada e mãe de duas filhas, percebe-se a diferença entre a representação social do câncer e da hipertensão. Para L.M. a hipertensão:
agora é só dor de cabeça, e como eu já tenho há mais de dez anos, não faz muita diferença. E o dia que ela está muito alta, dá tontura, mas é muito raro isso[...] não sinto nada, para mim é como se não tivesse problema de pressão alta[...] Eu sei que com o tempo você tem que se cuidar, porque você pode ter derrame. Mas isso aí é pressão alta por muito tempo[...].
Nas colocações de L.M., percebe-se não apenas um profundo desconhecimento da significação da pressão alta para a saúde, mas também uma representação social em que esta aparece associada a uma doença que avança de forma crônica no tempo, não tem problema quando não há um sintoma, e seus danos se mostram somente numa temporalidade distante. É interessante como a não-associação com a morte converte-se em uma limitação para o desenvolvimento de novos sentidos subjetivos, permitindo a expressão de atividades e comportamentos que facilitem o controle da doença e uma melhor qualidade de vida. Isso se vê reforçado pela própria posição dos médicos, centrada na indicação de medicamentos, o que leva muitos pacientes a colocarem na medicação a opção de cura, ignorando completamente o modo de vida.
L.M., em outro fragmento de conversação, expressa:
O que me estressa é trabalhar um monte e não ter dinheiro para fazer as coisas, eu vou continuar trabalhando um monte e não tendo dinheiro. Como vou mudar isso? Não tem como mudar[...]. De todas as coisas que o cardiologista falou, a única coisa que eu poderia fazer para mudar é fazer exercício[...] eu não faço exercício, é preguiça, eu sei que é [...] a gente nunca tem tempo, e o tempinho que eu teria para deitar numa rede, assistir televisão, ler um livro, eu teria que fazer exercício. Eu não gosto de fazer exercício, e eu não teria nem um tempinho para descansar, fazer o que eu gosto. Então eu não faço.
Percebe-se no depoimento anterior de L.M. que ela não tem desenvolvido novos sentidos subjetivos ante a doença, o que a diferencia das pacientes que tiveram câncer, analisadas anteriormente. A hipertensão, pela sua própria representação social, não tem um impacto no sujeito que lhe permita, como acontece no caso do câncer, desenvolver novos sentidos subjetivos e ir além dos constrangimentos atuais definidos e naturalizados na representação social do cotidiano. L.M. está totalmente presa a seu modo de vida atual, o qual parece bastante alienado.
A forma de vida de L.M., que sente isso como inevitável, é muito prejudicial para sua saúde, evidente quando ela lembra como uma maravilha uma internação hospitalar a que teve de se submeter, como resultado de uma crise de hipertensão. L.M., lembrando aquela experiência, diz:
uma maravilha, que saudade que eu tenho do hospital, não recebia ligação, não podia receber visita a não ser de minhas filhas, que escolhi para poderem me visitar. Telefonema era um por dia, e escolhia de quem queria receber[...] Não tinha problema, pra começar que não tinha que fazer nada, o máximo que eu tinha que fazer era arrumar a minha cama, conversava com o pessoal[...] Dormia legal, depois do almoço[...] umas férias, ótimo! Tomava remédio, fazia terapia ocupacional, que era ótimo: pintava, desenhava, fazia uma hora de sessão com o psiquiatra. Foi um descanso, uma maravilha.
É muito interessante observar que muitas coisas, das quais ela gostava no hospital, eram atividades que poderia fazer em sua vida cotidiana. Por exemplo: desligar o telefone e não receber chamadas, reunir-se com quem gosta, pintar, desenhar etc. No entanto, ela não mostrava capacidade de assumir decisões que gerassem conflito com os sentidos subjetivos dominantes na representação social de cotidiano, nos quais ela estava imersa. Essas mesmas situações que ela desfrutou no hospital pareciam não ser possíveis na representação social de cotidiano que ela compartilhava.
A representação social do cotidiano de L.M. é muito semelhante à de M. e M.T., só que neste caso a doença não é percebida como um perigo de vida, o que não facilita a emergência de novos sentidos subjetivos em L.M., que lhe permitam mudar o mundo social produzido pelas suas representações sociais. No complemento de frases estão expressos, de formas novas, os sentidos subjetivos que governam o seu modo de vida e que lhe incomodam, mas diante dos quais não tem opções subjetivas no momento atual. Nas frases a seguir, ela expressa:
Eu gosto: de praia, de mar, de ficar sozinha, sem horário e sem compromisso à beira-mar. Lamento: não ter me rebelado contra o tipo de vida atual e carregado minhas filhas para o interior. Meu maior problema: é não ter ânimo para fazer exercício. Tratarei: de conseguir um tempinho para fazer o que gosto.
Nessas frases ela mostra consciência do que gostaria e certa rejeição ao seu mundo atual, o que vem a ser mais um indicador do aparecimento de um certo mal-estar atual dela com a forma como tem vivido. Mas, mesmo tendo consciência, é incapaz de propor alternativas, pela impossibilidade de gerar sentidos subjetivos que lhe permitam opções. A representação social que compartilha dentro do seu cotidiano, unida por múltiplos elos ao funcionamento da subjetividade social, lhe impede alternativas de subjetivação individual.
Conclusões
O presente trabalho traz novamente para discussão do próprio conceito de representação social evidências sobre a forma como as representações atuam, como sentidos subjetivos no nível da subjetividade individual. As representações sociais dominantes definem sentidos subjetivos que limitam as opções da subjetividade individual, mesmo que, em situações críticas, este mesmo conflito converta-se num facilitador para o desenvolvimento de novos sentidos subjetivos.
A representação social aparece de forma direta e indireta, não apenas em forma de juízos e conceitos claros, mas como efeitos indiretos, que definem sistemas de práticas compartilhadas, institucionalizadas e avaliadas de determinada forma em diferentes contextos educacionais. No trabalho, evidencia-se o vínculo das representações sociais com outros sentidos subjetivos configurados na subjetividade social.
As doenças crônicas, como toda experiência humana expressa, estão inseridas em uma produção subjetiva, social e individual que é parte de sua qualidade e tem um valor central no processo de cura e na qualidade de vida dos pacientes.
A representação social diferenciada do câncer e da hipertensão, que está constituída de diversas formas na subjetividade individual, é elemento essencial a ser considerado no trabalho de prevenção e promoção de saúde, pois os sentidos subjetivos que são produzidos na experiência de estar doente podem converter-se em sérias limitações ou não para o desenvolvimento de um modo de vida sadio, aspecto importante do complexo processo de recuperação da saúde.
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Contato
Fernando González Rey
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e-mail: gonzalezrey@terra.com.br
Tramitação
Recebido em junho de 2006
Aceito em agosto de 2006
1 Jodelet Denise, apresentação em simpósio Dans les marges des représenations: désirs, normes e et signification, VII Conférence Internationale des Représentations Sociales. 2004, Guadalajara, México.