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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. v.9 n.2 São Paulo dez. 2007
RESENHA BIBLIOGRÁFICA
Resenha bibliográfica sobre o livro “O ser interior na psicanálise” de Walter Trinca
Iraní Tomiatto de Oliveira
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Nessa obra o autor apresenta a construção de um sistema geral unificado de compreensão da vida mental, um modelo para a compreensão psicanalítica das perturbações psíquicas. Como se vê, não é nada simples o objetivo a que se propõe. Constitui, na verdade, tarefa hercúlea, e o resultado é fruto de mais de trinta anos de trabalho psicanalítico.
A exposição se inicia pela idéia central do modelo que será proposto: o ser interior. Trinca detalha, no Capítulo 1, o conceito, suas características e especificidades. Trata-se do “ser que essencialmente somos [...] um ser que nos define como pessoas e que compõe os alicerces mais profundos de nossa existência” (TRINCA, 2007, p. 22). É uma realidade primária, ou seja, uma forma originária de ser, desde o início da vida. É estável, isto é, expande-se de acordo com o que intrinsecamente é. O autor esclarece que não se refere a um conceito metafísico nem místico, e localiza sua proposta no campo da psicanálise. Daí decorre, inclusive, o título da obra, O ser interior na psicanálise, que explicita a idéia central – o ser interior – e localiza seu referencial teórico – na psicanálise.
A questão nuclear a ser levada em conta é que cada pessoa estabelece com seu ser interior diferentes graus e tipos de contato, o que varia também no decorrer do tempo, e esses diferentes graus determinam a noção que ela tem de si própria e o tipo de influência que o ser interior exerce sobre o self.
O Capítulo 2 é utilizado para estabelecer a diferenciação, considerada extremamente relevante, entre a noção de ser interior e a de self, e as relações que se estabelecem entre eles, sendo o segundo um campo de experiências e conflitos, uma forma de organização que tem relação com adaptação e sobrevivência.
A seguir, e dando continuidade ao processo de discorrer sobre os conceitos que serão fundamentais na construção que realizará posteriormente, o autor trata do papel da sensorialidade, que corresponde aos elementos beta ou coisas-em-si-mesmas de Bion e à tendência ao inanimado de Freud. A sensorialidade é considerada um fator inerente à vida humana, que se manifesta em um contínuo que vai do nível normal ao da sensorialidade psicótica. São elementos saturados de concretitude, que resultam em tendência a “objetificar e tornar factual os dados da realidade psíquica e da realidade externa” (TRINCA, 2007, p. 39).
Ao contínuo da sensorialidade corresponde, desconsiderando-se a interferência de outros fatores, e em razão inversa, um contínuo de mobilidade psíquica, que permite abertura para a experiência e para o contato. Esses dois contínuos variam de acordo com o grau de influência que o self sofre do ser interior.
Os capítulos seguintes – 4, 5 e 6 – descrevem detalhadamente características destes últimos, de seu funcionamento e das relações entre eles.
No Capítulo 7, é examinada a questão do contato com o ser interior, e o autor descreve o contínuo em que ele se dá, que abrange três estados: o oclusivo, o inconsciente e o consciente. Cada um deles inclui graus variáveis de contato, que vão do nível baixo ao nível alto. Examina ainda cada uma dessas possibilidades e define a que configuração psíquica fundamental cada uma delas corresponde.
No Capítulo 8, é introduzido o conceito de constelação do inimigo interno, um dos principais fatores de distanciamento de contato com o ser interior. É um dos fatores centrais da personalidade, que trabalha no sentido oposto ao do ser interior: vinculada à pulsão de morte, essa constelação se refere a ataques contra toda forma de vida, em especial aos dirigidos contra o próprio indivíduo. Evidencia-se, segundo o autor, em estágios clinicamente observáveis, que são citados e descritos: dúvidas e descréditos, autodepreciação, desqualificações amplificadas, auto-invalidações, alastramento do sistema, bandeamento para o inimigo, buraco negro, dimensão de possibilidades infinitas e anestesia, colapso e aniquilamento.
No Capítulo 9, são estudadas as relações e articulações entre as três esferas essenciais: o self, o ser interior e a constelação do inimigo interno. Descreve-se como as duas últimas influenciam continuamente a primeira, em graus inversamente proporcionais, e as implicações das variadas intensidades dessas influências, inclusive em termos de perturbações psíquicas. Resulta deste capítulo uma conclusão essencial ao modelo que será proposto: a graus de distanciamento de contato com o ser interior correspondem diferentes naturezas, qualidades e intensidades de perturbações psíquicas, e o distanciamento de contato é um fator essencial para o diagnóstico e o tratamento das patologias.
No Capítulo 10, Trinca inicia a exposição de seu modelo para a compreensão psicanalítica das perturbações psíquicas. Esclarece que não busca construir uma teoria, nem ser original ou reformulador, mas oferecer um instrumento para a prática clínica da psicanálise. Repete que a base de seu modelo é a questão do distanciamento de contato com o ser interior e os demais fatores relevantes já citados desde a introdução do livro – a constelação do inimigo interno, a sensorialidade, a fragilidade do self, a angústia de dissipação do self, a estruturação inconsciente –, a forma como eles se relacionam e seu papel nas patologias psíquicas. Neste longo capítulo, analisa como o distanciamento de contato, em diferentes graus, ocasiona, em conjunto com os demais fatores, determinadas organizações patológicas, e a ação da constelação do inimigo interno neste interjogo de forças, atuando em diferentes estágios. Explica como cada estágio de distanciamento, em conjunto com a combinação dos demais fatores, se relaciona com as perturbações psíquicas em graus crescentes de gravidade, analisando vários tipos de perturbações.
A formulação do modelo se estende para o Capítulo 11, no qual se atém a outros aspectos importantes na determinação de perturbações psíquicas: a sensorialidade, a fragilidade do self, a angústia de dissipação do self e a estruturação inconsciente, e sua participação etiopatogênica. Continua a trilhar esse caminho no capítulo que se segue, no qual, após discorrer sobre cada um dos fatores já citados, estuda as relações entre eles e como elas correspondem a configurações psíquicas relativamente precisas e estáveis, que geram determinadas perturbações. É descrita a hipótese de que há duas grandes categorias de patologias, determinadas por sistemas mentais formados pela predominância ou da fragilidade do self ou da sensorialidade, ambas diretamente proporcionais aos graus de distanciamento de contato. Cada uma dessas situações é examinada, assim como a ação dos sistemas mentais determinantes, que são componentes básicos das perturbações psíquicas.
A partir da exposição do modelo realizada até aqui, surge, no Capítulo 13, a proposta de unificação das perturbações psíquicas, organizadas em um contínuo, a partir do sistema mental determinante. É o contínuo de contato com o ser interior. Cada patologia é analisada de acordo com a dinâmica dos fatores já expostos e com o grau de distanciamento de contato.
Trinca estabelece graus para a sensorialidade (1, 2, 3 e 4) e para a fragilidade do self (1 e 2) que, supõe, definem uma ordem de importância e aos quais correspondem sistemas mentais determinantes. A partir daí, constrói escalas organizadas por graus de distanciamento de contato, isto é, por graus de gravidade das perturbações. A classificação das perturbações psíquicas nessa escala é feita inicialmente por partes, de acordo com os diferentes sistemas mentais determinantes (diferentes tipos de sensorialidade e de fragilidade), nos diferentes estados (oclusivo e inconsciente), até chegar à escala completa de gravidade decrescente.
Após a exposição da escala unificada das perturbações psíquicas, o autor examina, no capítulo 14, uma série de aspectos de seu modelo, confrontando-os com conceitos psicanalíticos e analisando a relação entre eles. Assim, trata da definição de self, da sensorialidade, da sexualidade e das pulsões, das relações objetais, do papel do ambiente, da pulsão de morte, do papel do superego. Explicita novamente suas referências, localizando-as em Freud, Klein, Winnicott e Bion, e seu objetivo de trabalhar para organizar conhecimentos psicanalíticos na composição de um modelo utilizável na prática clínica. Unindo dessa maneira os conhecimentos, considera que se caminharia de uma psicanálise “de elementos” a uma psicanálise “de fatores”, e que estaria construindo as bases de uma psicanálise “compreensiva de conjunto” (TRINCA, 2007, p. 290). Fica novamente evidente, nesse capítulo, o quanto o autor considera que o conceito de ser interior é central e determinante em sua proposta.
A seguir – Capítulo 15 – esclarece que, nos capítulos anteriores, somente tinha examinado o eixo de contínuo de contato com o ser interior, o espaço que vai do infinito negativo ao ponto zero. Já nesse Capítulo 15, o autor introduz a análise do espaço que vai do ponto zero ao infinito positivo, que corresponde ao estado consciente e caminha em direção a configurações mais saudáveis, em que os sistemas mentais até agora examinados são substituídos por padrões pessoais de existência e de comportamento. Essa parte do contínuo corresponde à normalidade e aos estados ampliados de consciência e compõe, com as neuroses e as psicoses (que se localizam no intervalo entre o infinito negativo e o ponto zero), um único sistema geral.
Características e estados da parte mais saudável do contínuo de contato são examinados nos capítulos seguintes – 16 e 17: a consciência de si, a consciência expandida que permite grande abertura para a experiência, a tendência à unificação, a experiência de imaterialidade, a experiência de totalidade.
O Capítulo 18 fornece uma síntese das principais idéias apresentadas e, em seguida – Capítulo 19 –, são consideradas ainda outras questões, como os sonhos e as imagens espontâneas, à luz da idéia central: o contato com o ser interior.
O vigésimo e último capítulo oferece respostas a questões que o autor considera relevantes, antecipando dúvidas e discussões que o livro certamente suscita.
Walter Trinca é um autor que, em nosso meio, dispensa apresentações. Figura eminente da psicologia brasileira, já nos ofereceu contribuições de extrema relevância na área do psicodiagnóstico e da prática clínica da psicanálise. Basta citar seus estudos sobre as formas de pensamento clínico e o Procedimento de Desenhos-Estórias, técnica para a investigação da personalidade criada por ele, que gerou e continua gerando grande número de pesquisas.
No livro que é objeto desta resenha, ele retoma algumas idéias já introduzidas em trabalhos anteriores (TRINCA, 1999), desenvolvendo-as e buscando uma articulação com novas idéias para a construção de seu modelo. Trata-se de uma obra para iniciados, tanto nos conhecimentos teóricos das principais vertentes psicanalíticas quanto em sua prática clínica. Para a compreensão de alguns trechos, é útil também que o leitor já tenha conhecimento de algumas das idéias do autor.
Escrito na linguagem culta e bem articulada, que é sua característica, o livro parece revelar sua preocupação em se fazer compreender por meio de uma detalhada repetição do que considera essencial e nuclear em sua proposta. Assim, percorrer as mais de 370 páginas da obra exige do leitor alguma persistência.
O objetivo de buscar a construção de um quadro geral que organize elementos ou achados psicanalíticos cunhados por diferentes autores, e que permita estabelecer um diálogo entre eles, assim como o de articular a construção de parâmetros norteadores da prática clínica, é, sem dúvida, de extrema relevância, e exige enorme esforço. É nessa direção que Trinca elabora um sofisticado modelo que, como afirma, é o resultado das respostas que conseguiu elaborar para as principais perguntas que lhe surgiram durante muitos anos de trabalho. Sentimos falta, no entanto, de que ele nos permitisse acompanhar mais de perto o desenvolvimento de seus pensamentos, que o levaram às suas principais afirmações e às bases de sustentação de sua proposta. Não podemos concordar com a idéia de que um clínico hábil possa, sem dificuldade, observar o que se afirma, sem que isso seja demonstrado. Se assim fosse, não seriam as idéias apresentadas construção própria do autor. Ele mesmo, quando diz que sua proposta cria uma perspectiva a partir da qual Freud, Klein, Bion e Winnicott poderiam dialogar, completa: “Certamente, isso ficaria evidente se fosse possível a apresentação concomitante de material clínico que desse suporte a cada afirmação” (TRINCA, 2007, p. 360). Sem esse suporte, o leitor nem sempre tem meios para construir sua própria análise sobre o que se afirma. Ainda mais porque, segundo o autor, os alicerces de seu modelo, como o conceito de ser interior, a importância do distanciamento do contato, os fatores essenciais para a determinação das patologias e as relações entre eles, todos estão baseados na observação clínica. Mesmo a afirmação de que o modelo proposto facilita muito o trabalho clínico deixa no leitor um desejo de ter a possibilidade de verificar como isso ocorre.
É certo que, em algumas passagens, encontra-se a afirmação de que se trata de estudos preliminares, que poderão ser submetidos a estudos de validade, ou de idéias que abrem um campo de pesquisas, ou de que o relato de material clínico que evidencie o que se afirma é trabalho a ser realizado. Mas, especialmente em algumas partes da obra, há passagens muito afirmativas, que dão toda a impressão de uma estrutura já construída. Isso parece mais evidente nos capítulos em que os sistemas mentais determinantes são organizados no contínuo de contato para que se possa chegar ao sistema unificado das patologias psíquicas. Toda a construção está baseada na hipótese fundamental de que são os graus de distanciamento de contato com o ser interior que determinam a gravidade das perturbações psíquicas. Ainda, admite-se que os quatro fatores que formam os sistemas mentais determinantes – constelação do inimigo interno, distanciamento de contato, fragilidade do self e sensorialidade – guardam entre si relações hierárquicas, podem ser representados por variáveis contínuas que se distribuem do zero ao infinito negativo e que são homotéticas, termo emprestado da geometria para designar a qualidade unívoca da correspondência que há entre elas.
Ao final da leitura, veio-nos à memória o alerta que, honestamente, Trinca nos faz ainda na introdução do livro: “Todo profissional carrega sobre os ombros a tarefa de descobrir por si só a verdade ou a falsidade dos referenciais disponíveis, utilizando-os ou descartando-os em conformidade com os fatos” (TRINCA, 2007, p. 19). Resta-nos o desejo de que ele, junto a outros pesquisadores, possa dar prosseguimento à sua construção, naquilo que ele mesmo considera que está por ser realizado.
Referências
TRINCA, W. Psicanálise e expansão da consciência: apontamentos para o novo milênio. São Paulo: Vetor, 1999.
Endereço para correspondência
Iraní Tomiatto de Oliveira
Rua da Consolação, 896 – Prédio 38
São Paulo – SP – Brasil
CEP 01302-907
E-mail: iranitomiatto@mackenzie.br
Tramitação
Recebido em setembro de 2007
Aceito em novembro de 2007