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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Jung, entrelinhas: reflexões sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuação em Cartas

 

Jung, between lines: considerations on the foundations of the jungian theory departing from the study of the theme individuation in Letters

 

Jung, entre líneas: reflecciones sobre los fundamentos de la teoría junguiana desde el estudio del tema individuación en Cartas

 

 

Paola Vieitas Vergueiro

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma contribuição para o campo da Psicologia Analítica. O escopo do trabalho é a análise do conceito de individuação de Carl Gustav Jung. O objetivo do estudo é apontar alguns dos fundamentos científicos de sua teoria, bem como tecer considerações sobre certas questões conceituais. Para isso, analisaram-se os trechos associados aos conceitos “individuação” e “processo de individuação”, ao longo dos três volumes de Cartas, de Jung. A técnica utilizada para efetuar o exame desses volumes foi a de análise de conteúdo. Identificaram-se, nesses volumes, categorias com base nas quais se abordaram os conceitos. Os resultados evidenciam aspectos do conceito de individuação, assim como outros conceitos ainda não esclarecidos. Um resultado relevante é a coerência dos fundamentos do paradigma junguiano, encontrado nos volumes analisados

Palavras-chave: Psicologia Analítica, Individuação, Ciência, Paradigma junguiano.


ABSTRACT

This article is a contribution to the maturity of Analytic Psychological. The article intended to analyze Carl Gustav Jung’s individuation concept. It was intended to clarify some of the scientific foundations of his theory, as well as to weave considerations about some conceptual failures was analyzed fragments associated to the themes of “individuation” and “individuation process” across the three volumes of Letters, by Jung. . It was identified, through those volumes, The results evidence aspects of the individuation concept and other concepts. Some important result is the coherence of the Jungian paradigm foundations, which can be found through the analyzed volumes.

Keywords: Analytic Psychology, Individuation, Science, Jungian paradigm.


RESUMEN

Este artículo se propone aclarar algunos de los principios del paradigma junguiano con el fin de contribuir a la madurez de la ciencia psicológica. Por medio de la análise de lo concepto de individuación de Carl Gustav Jung se propone aclarar tanto algunos de los fundamentos científicos de su teoría, como tejer consideraciones sobre sus fallas conceptuales. Realiza este objetivo mediante el análisis de trechos asociados al tema “individuación” y “proceso de individuación” a lo largo de los tres volúmenes de Cartas, de Jung. Identifica en los mismos categorías, a partir de las quales aborda lo concepto. Los resultados muestran aspectos del concepto de individuación así como otros conceptos no esclarecidos todavia. Un resultado relevante es la coherencia de los fundamentos del paradigma junguiano encontrado en los volúmenes analizados.

Palabras clave: Psicología Analítica, Individuación, Ciencia, Paradigma junguiano.


 

 

Introdução

A leitura do tema “individuação”, nas Cartas de Jung, promove um efeito curioso. Se, por um lado, conhecimentos acrescentam-se sobre o tema, por outro, instalam-se algumas questões. Jung parece-nos contraditório: ao mesmo tempo em que é dedicado e cuidadoso com muitos aspectos da sua construção teórica, deixa dúvidas conceituais.

A Psicologia nasce da filosofia no século VII a.C. A Psicologia Científica, por sua vez, é jovem; nasce no século XIX, com Wundt e experimentos laboratoriais. Desde então, busca apresentar teorias cada vez mais consistentes (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002). O fato de ser uma ciência jovem é um dos motivos que faz com que a Psicologia tenha diferentes modelos teóricos para explicar o mesmo fenômeno e poucas definições consensuais acerca do funcionamento psíquico.

Outro fator que favorece a diversidade de abordagens é que, dada a natureza de seu objeto de estudo, a Psicologia não possui, como área da ciência, a possibilidade de visualizar ou mesmo de comprovar diretamente seu conhecimento da psique. Assim, cada modelo teórico propõe uma forma de conceber o funcionamento psíquico baseando sua metodologia em fundamentos ontológicos e epistemológicos que oferecem sustentação às diferentes metodologias (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002).

O desconhecimento que as diferentes abordagens possuem umas das outras pouco favorece a Psicologia em geral, que pode evoluir como ciência mediante a compreensão e a investigação de limites e possibilidades dos diferentes modelos. Quanto maior a abertura para tais esclarecimentos e para o debate, maior o ganho em compreensão dos modelos teóricos psicológicos. Nessa direção, a Psicologia como área de produção científica depende de produções críticas de diferentes modelos para ganhar em consistência teórico-prática. Este artigo, portanto, tem a finalidade de colaborar com a área de produção científica, buscando aclarar alguns dos fundamentos e aspectos conceituais da teoria junguiana.

Com esse propósito, tomou-se o estudo do conceito individuação como primeiro foco deste artigo. Realizou-se uma seleção das cartas de Jung em que o conceito é abordado e, em seguida, um estudo é feito. Entre as mais de mil cartas publicadas nos três volumes de Cartas, há 43 que tratam diretamente do tema individuação ou processo de individuação. Procuramos citar todas as 43 para oferecer ao leitor um panorama o mais abrangente possível das idéias de Jung sobre o assunto.

Segundo Sharp (1991), a individuação é um processo de diferenciação psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual. Esse objetivo, todavia, é alcançado por meio de informações arquetípicas e depende da relação vital existente entre ego e inconsciente. Para Samuels, Shorter e Plaut (1988), individuação é um processo em que a pessoa torna-se si mesma, inteira, indivisível e distinta de outras pessoas ou da psique coletiva. Os autores consideram que individuação é um conceitochave da teoria de Jung que trata do desenvolvimento da personalidade. Dada a importância do conceito, dedicaremo-nos a explorar a abordagem de Jung, nas Cartas, segundo esse aspecto.

A maior parte das cartas que tratam deste conceito aborda, também, questões epistemológicas bastante polêmicas. Por isso, elegeu-se um segundo foco para este estudo: a compreensão da essência da postura do autor, de seus princípios e recortes epistemológicos. Nesse sentido, será tomada como figura a investigação do tema individuação e, como fundo, a concepção de ciência de Jung e a forma como ele se propôs a investigar o psiquismo. Por meio da relação de uma com a outra, visamos evidenciar um quadro mais completo de compreensão da teoria junguiana.

Os textos de Cartas têm a particularidade, por serem parte de um processo de comunicação via carta, de deixarem o contexto dos textos nebuloso, pois não é possível ter contato com todas as cartas enviadas e recebidas. Muitas cartas são respostas a outras cujo conteúdo é desconhecido pelo leitor. Em razão disso, somente o conteúdo de algumas delas pode ser entendido. Por sua vez, a linguagem é mais direta que a das Obras completas, e, por isso, de mais fácil compreensão.

O fato de este artigo ser baseado em escritos que não fazem parte da obra principal de Jung não parece fazer grande diferença no que tange ao rigor do pensamento científico ou à fidelidade aos princípios norteadores de sua obra. Examinando as cartas de Jung, visa-se acrescentar alguns elementos ao entendimento de sua concepção sobre o processo de individuação, bem como de sua orientação científica.

 

Método

O artigo teve como objetivos realizar uma revisão teórica do tema individuação nos três volumes de Cartas, de Jung (1999, 2002, 2003) e identificar os pressupostos científicos do tema por meio da análise. Diferentemente do uso do método experimental, o método clínico, que embasa a pesquisa qualitativa, pressupõe que o ser humano seja descrito do ponto de vista histórico-antropológico, de maneira que possam ser captados aspectos específicos dos dados do contexto em que eles acontecem. Essa abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre mundo real e sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito (TRINCA, 1997; CHIZZOTTI, 1995; ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999; BARDIN, 2002; SERAPIONI, 2000).

A técnica utilizada para abordar o conceito de individuação foi a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2002, p. 42). De acordo com a autora, a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção ( variáveis inferidas) dessas mensagens.

Dessa maneira, objetivou-se evidenciar os conteúdos relacionados ao conceito que o autor abordou, elegendo as categorias de análise com base nos textos selecionados. Por meio dos trechos que tratam do conceito, discutem-se categorias temáticas emergentes, tendo sido a análise do conteúdo realizada com base nas seguintes categorias: individuação e religiosidade, definição de individuação, a meta da individuação, trabalho necessário para a individuação e modelos de individuação. Finalmente, são discutidos fundamentos científicos da teoria por meio das proposições de Penna (2003, 2006).

 

Discussão de resultados

Das 43 cartas que tratam do tema individuação ou processo de individuação, uma grande parte é endereçada a pastores e padres de diferentes países ou trata diretamente do tema da religiosidade. Esse fato é, por si só, um indicador da forte relação entre os dois temas. Para Jung, a religiosidade é o caminho para a realização da personalidade total ou do si mesmo. Uma vez que a realização é também a meta da individuação, a compreensão da relação entre os dois conceitos reveste-se de especial importância.

Categoria: individuação e religiosidade

O sentido original de religiosidade, para Jung, pode ser esclarecido pela origem latina da palavra religare. Esta nos remete à capacidade humana de religar, reconectar dimensões da personalidade que tendem a um natural afastamento, especialmente na primeira metade da vida. Ou seja, a religiosidade é, para Jung, a capacidade de religar a dimensão do ego, centro do campo da consciência, à do si mesmo, totalidade psíquica. Uma vez desenvolvida e exercida esta religação, o ego pode realizar as demandas do si mesmo, que visam à individuação. Em suas cartas a pastores e religiosos, esclarece alguns dos aspectos da relação entre individuação, religião e religiosidade.

Particularmente ao pastor Hans Wegmann de Zurique, Jung (1999, p. 401) afirma ser a individuação um processo religioso, mas não dependente de uma Igreja. Acaba por indicar sua independência em relação a qualquer Igreja: “O processo de individuação é um desenvolvimento no solo nativo do cristianismo. Mas ele não é uma Igreja, nem será Igreja, muito menos uma anti-Igreja, ainda que tenha suas raízes na Igreja, na Igreja primitiva e em sua tradição”.

Ao se referir à Igreja primitiva e à sua tradição, Jung remete-se às origens da Igreja, quando o herege, ao se ligar a ela, sente-se conectado a um solo materno e a toda a cristandade. Ao longo da carta, dedica-se ao argumento de que tanto o protestantismo como o catolicismo estão afastados desse sentido original dado à Igreja primitiva. Sua análise busca demonstrar como o sentido original da religiosidade está sendo perdido nas igrejas atuais.

Apesar de sua concepção de religiosidade não depender de religião formal, Jung não nega a importância dessa última, isto é, da ligação a uma Igreja. Assim, a escolha de qualquer religião depende de cada ser e pode desempenhar uma função importante no processo de individuação.

Em carta escrita em 11 de junho de 1960, Jung (2003) fica curioso em relação à seguinte frase do reverendo norte-americano Keneth Gordon Lafleur: “Espero que o senhor não desanime diante da possibilidade de a religião desempenhar um papel no processo necessário da individuação da personalidade”. Jung não entende a razão dessa colocação, uma vez que foi o primeiro a afirmar a relação entre psicoterapia e religião no que se refere aos aspectos práticos e à importância da religião no processo de individuação. Foi, também, acusado de ser ateu, agnóstico, materialista e místico. Precisou de coragem e ânimo para enfrentar todos esses mal-entendidos. Em resposta ao reverendo, pede para se explicar melhor.

Categoria: definição de individuação

A definição de individuação aparece em uma carta a Hélène Kiener, de Estrasburgo. Nela, explica como a psicologia compreende a imagem de Deus e sua importância. Acaba por definir individuação como, em última análise, um processo religioso que exige atitude religiosa correspondente: a vontade do eu de submeter-se ao si mesmo. Em 15 de junho de 1955, escreve (JUNG, 2002, p. 432):

“Si-mesmo” é algo que podemos verificar psicologicamente. Nós experimentamos “símbolos do si-mesmo” que não se deixam distinguir dos “símbolos de Deus”. Não posso provar que o si-mesmo e Deus sejam idênticos, mesmo que na prática pareçam idênticos. Naturalmente, individuação é em última análise um processo religioso que exige uma atitude religiosa correspondente – a vontade do eu de submeter-se à vontade de Deus. Para não provocar mal-entendidos digo si-mesmo em vez de Deus. Empiricamente também é mais exato. A psicologia analítica ajuda-nos a conhecer as potencialidades religiosas [...].

Nesse trecho, Jung afirma que a individuação é o processo que ocorre a partir da aceitação, por parte do ego, das orientações de uma dimensão da personalidade que denomina “si-mesmo”, que, por sua vez, traz informações simbólicas acerca do caminho da realização plena da personalidade.

Fica claro quanto Jung reconhece a importância da religiosidade para a individuação. Também fica claro o seu rigor científico, pois toma o cuidado de conceituar o processo por meio da Psicologia. Exemplo disso é o fato de nomear as expressões psíquicas da totalidade como “símbolos do si-mesmo”, em vez de utilizar “símbolos de Deus”, embora eles pareçam idênticos na prática.

Essas afirmativas explicitam o que, para Penna (2003, p. 110), caracteriza um rigor científico invejável, pois ele “distingue o aspecto metafísico e teológico da religião de seu papel psicológico”. A autora considera a relação entre psicologia e religião um dos assuntos mais controversos para um pesquisador de ciências humanas.

A individuação é um processo psicológico da máxima importância. Ela consiste no desenvolvimento pessoal e na realização o mais plena possível da personalidade, representada pelo “si-mesmo”. Jung (2003, p. 124) escreve a Jaffé, em 1958, frisando a importância desse processo, como se mostra a seguir: “Parece que a individuação é uma tarefa impiedosamente importante, em vista da qual tudo o mais vai para segundo plano”. É, também, uma meta transcendental, em parte consciente e em parte inconsciente. Em parte mística e numinosa e em parte racional. Essa experiência não pode ser traduzida e jamais será de todo conhecida. Além disso, essa passa a ser uma das dificuldades encontradas para a compreensão do pensamento de Jung, já que, para ele, o enigma é parte da vida. Esse é um dos fundamentos epistemológicos fundamentais da teoria, para a qual a realidade inconsciente jamais será conhecida como um todo, pois a consciência é limitada em relação a ela (PENNA, 2003).

Categoria: a meta da individuação

Ao diferenciar as metas da teologia e da psicologia médica, Jung acaba por definir a meta desta última. Em carta ao doutor Joseph Rudin de Zurique, enviada em 30 de abril de 1960, explicita a diferença de metas das duas áreas de conhecimento e afirma que onde o doutor Rudin aplica Deus, Jung aplica Anthropos. Jung (2003, p. 251) busca sempre uma ponte entre as duas disciplinas, que visam à cura animarum:

A diferença de nosso point de départ, de nossos clientes e de suas experiências espirituais implica uma “diferença exterior” de nossas metas. Sua orientação teológica se pauta pelos eixos da Igreja enquanto eu me vejo forçado a seguir as linhas imprevisíveis do caminho da individuação e de seu simbolismo; isto é, onde o sr. fala Cristo eu devo empregar Anthropos, pois este possui uma história de mais de 5.000 anos como arquétipo.

Também em relação à meta da individuação, escreve ao pastor Werner Niederer, em 26 de março de 1951. Na carta, aborda a diferença entre perfeição e totalidade, apontando essa última como a meta da individuação (JUNG, 2002, p. 189-190):

O “mérito” psicológico (melhor: significado) de Cristo consiste em ser ele, como “primogênito”, o protótipo do , do ser humano integral. Conforme testemunho da história, esta imagem é numinosa e, por isso, só pode ser respondida por outra numinosidade. Ela atinge a imago Dei, o arquétipo do si mesmo em nós, e assim desperta este último. Torna-se “constelado” e, devido à sua numinosidade, força a pessoa à totalidade, isto é, à integração do inconsciente ou à subordinação do eu à vontade integral que, com razão, é entendida como “vontade de Deus”. No sentido psicológico, a , significa uma integralidade e não uma perfeição da pessoa. A totalidade não pode ser consciente, pois abrange também o inconsciente.

Para o Monsieur le Pasteur William Lachat, Jung escreve, em 29 de maio de 1955, sobre o tema. Pode-se observar como, neste texto, enfatiza a união da luz com as trevas e a presença do erro e do pecado na busca da experiência de graça (JUNG, 2002, p. 435):

Do ponto de vista psicológico, a vida de Cristo em nós é idêntica à aspiração do inconsciente à individuação, e isto devido ao fato de a luz de Cristo ser acompanhada pelas “trevas da alma”, da qual fala S. João da Cruz e que os agnósticos de Irineu chamavam “umbra Christi”; estas escuridões são idênticas ao aspecto ctônico do qual já falei. É ele que nos obriga a viver totalmente nossa vida, uma aventura muitas vezes heróica e trágica. Sem erro e sem pecado não há nenhuma experiência de graça, isto é, nenhuma união entre Deus e os homens.

Um dos fundamentos ontológicos e epistemológicos de sua obra está aqui esclarecido. O desenvolvimento obriga a uma vivência total da vida, que inclui aspectos trágicos e sombrios. Diante disso, a meta da individuação é a realização plena de sentido, o que inclui erros. Isso nos remete à união de opostos, como meta da individuação. Em diversos momentos, Jung (2002, 2003) refere-se à união de luz e sombra, sofrimento e alegria, masculino e feminino, entre tantos outros.

Categoria: trabalho necessário para a individuação

O primeiro estágio deste processo é o confronto com a sombra. O reconhecimento do desconhecido em nós mesmos é, muitas vezes, tarefa desagradável e dolorosa. Isso se dá porque o conteúdo desconhecido é freqüentemente a expressão do mal em nós. Jung 2002) explicita essa concepção em carta ao Father Victor White, escrita em 24 de novembro de 1953:

Quando um paciente sai de seu estado de inconsciência defronta-se imediatamente com sua sombra e deve decidir-se pelo bem, caso contrário estará perdido. O primeiro passo na tarefa da individuação consiste em diferenciar entre ele e a sombra. Neste estágio o bem é a meta da individuação e Cristo representa o si-mesmo.

Reconhecer a sombra significa admitir aspectos desconhecidos e freqüentemente indesejáveis de nós mesmos. A admissão de tais elementos de nossa própria personalidade é tarefa nem sempre fácil ou agradável. Trata-se, contudo, de tarefa imprescindível para o desenvolvimento pessoal, mediante o qual a personalidade desenvolve-se. A confrontação com a sombra é uma das tarefas impostas pelo si-mesmo no processo de individuação.

Outro fator que fica claro em suas cartas é o de que o relacionamento concreto é necessário para a individuação. No entanto, às vezes a distância é necessária, como afirma, em 20 de setembro de 1928, em carta para Oscar Shmitz (JUNG, 2003): “Diminuir a distância entre as pessoas é um dos pontos mais difíceis e mais importantes do processo de individuação. O perigo é suprimir a distância unilateralmente, causando violação ou ressentimento. Todo relacionamento tem seu ponto ótimo em distância”.

Por sua vez, a solidão também tem o seu papel. A Robert Rock escreve, em 11 de novembro de 1969, sobre a importância da solidão como forma de encontrar certo conteúdo necessário ao relacionamento:

St Louis (Mo.)/EUA

Dear Sir, concordo com o Sr. Sem o relacionamento, a individuação é quase impossível. [...] Se alguém procurar, encontrará certamente o interlocutor conveniente. É sempre importante ter um conteúdo para trazer para um relacionamento e, muitas vezes, é na solidão que podemos encontrá-lo.

A compreensão do símbolo é uma das demandas do processo de individuação. Ela faz a ponte entre as polaridades psíquicas, promovendo a sua união, e traz à consciência parte do conteúdo desconhecido pelo ego. Dessa maneira, o ego, centro do campo da consciência, pode manter-se em contato com a dimensão do si-mesmo.

Quando a imagem de Deus se presentifica, ela remete o sujeito ao seu processo de individuação. Trata-se da aparição da dimensão arquetípica mediante o símbolo de Deus. Nesse sentido, o entendimento do símbolo pode servir ao processo de individuação (JUNG, 2003, p. 61): “No que se refere à integração das partes da personalidade, é preciso ter em mente que a personalidade do eu como tal não contém os arquétipos, mas é apenas influenciada por eles, pois os arquétipos são universais e pertencem a uma psique coletiva sobre a qual o eu não pode dominar”.

Nesse momento, Jung indica que a imagem de Deus é arquetípica, e não pertence à dimensão egóica. O arquétipo é uma potência psíquica respaldada na experiência da humanidade e que serve à sua individuação quando aparece como símbolo. Certas imagens remetem o sujeito à dimensão coletiva e arquetípica da psique distinta da pessoal, que pertence ao ego.

Ao Pater Lucas Menz, da Alemanha, Jung reafirma, em 1955, que se tornar “si-mesmo” é tornar-se inteiro, embora isso não signifique estar livre de opostos. Ao contrário, conforme explicita em outras cartas (como na enviada ao professor Karls Schmid, em 25 de fevereiro de 1958), o princípio da individuação é a conciliação suprema de opostos. Deus é a imagem da conciliação suprema de opostos. A C. H. Josten, afirma, em carta de 3 de maio de 1952, a importância do relacionamento do homem com o feminino, sinalizando, mais uma vez, a importância da integração de polaridades (no caso, a integração entre o masculino e o feminino).

Em carta a James Kirsh, de 16 de fevereiro de 1954, afirma que não acredita que os judeus devam aceitar o Deus cristão, pois ao quererem transformar Javé num Deus moral do bem, separaram-se os opostos que estavam unidos em Deus. Cabe ao ego humano decidir entre o bem e o mal, e essa diferenciação moral é imprescindível no caminho da individuação.

À pastora Dorothee Hoch, da Basiléia, escreve, em 3 de julho de 1952, que, sob todos os aspectos, a vida de Cristo é um protótipo de individuação e por isso não pode ser imitada. Só podemos viver a nossa própria vida com todas as suas conseqüências (JUNG, 2002, p. 250):

E nós? Nós imitamos a Cristo e esperamos que ele nos livre de nosso próprio destino. Nós seguimos como ovelhinhas o pastor, naturalmente para boas pastagens. Não se fala nada em unir o nosso em cima com o embaixo! Ao contrário, Cristo e sua cruz nos libertam de nosso conflito, que nós deixamos simplesmente como está. Nós somos fariseus fiéis à lei e à tradição; enxotamos a heresia e só pensamos na imitatio Christi, mas não na realidade que nos foi imposta, na união de opostos em nós; preferimos acreditar que Cristo já o fez por nós.

O trabalho psicológico para realizar o processo de individuação é um opus divinum que consiste em uma série de atos simbólicos que aproximam polaridades. Do ponto de vista psicológico, a vida de Cristo, em nós, é idêntica à aspiração do inconsciente à individuação. Cristo é um modelo da realização integral da personalidade, meta da individuação.

Categoria: modelos de individuação

O autor não esclarece se considera a individuação um processo que acontece em todo o ser humano, de maneira natural, ou se, para que ela ocorra, é necessário que a consciência e o inconsciente se aproximem. Há a hipótese de compreender o processo de individuação como de todos, mas indicar que os conscientes ganham algo.

Em carta ao Mr O, de 1947, por exemplo, Jung sugere a imaginação ativa para o diálogo entre o consciente e o inconsciente e descreve como pode ser realizada. Em seguida, comenta a importância desse diálogo para o processo de individuação (JUNG, 2002, p. 66): “[...] Assim poderá não apenas analisar o seu inconsciente, mas também dará uma chance ao seu inconsciente de analisar o senhor. Assim, o senhor criará aos poucos a unidade do consciente e do inconsciente, sem a qual não haverá individuação alguma” (grifo nosso).

Nesse texto, a individuação aparece como um processo que só ocorrerá se houver unidade entre a consciência e o inconsciente. Diferentemente disso, o texto a seguir aborda o processo de individuação como sendo de todos, permitindo um diferencial àqueles que usam a consciência em seu benefício (JUNG, 2002, p. 48):

Ao Mr Erlo van Waveren, em Nova Iorque

Poderíamos dizer que o mundo todo, com seu tumulto e miséria, está num processo de individuação. Mas as pessoas não se dão conta disso, e esta é a única diferença. Se soubessem disso, não estariam em guerra uns com os outros, pois quem tem a guerra dentro de si, não tem tempo nem prazer de lutar com os outros. A individuação não é uma coisa rara ou luxo de poucos; mas aqueles que sabem que estão nesse processo devem ser considerados felizes. Eles ganham alguma coisa, caso sejam conscientes o bastante. [...] A individuação é a vida comum e aquilo de que temos consciência (grifo nosso).

Ou seja, a vinculação do processo à consciência dá a chance da cura pela individuação. Em carta a Jolande Jacobi (12 de junho de 1945), afirma o mesmo. A Joaquim Knopp, de Dusseldorf, em 10 de julho de 1946, reafirma esse ponto, enfatizando que quando se toma consciência do sentido da doença, ela passa a ter um sentido mais amplo (JUNG, 2002, p. 33):

Não se pode dizer que todo sintoma seja um desafio e que toda cura ocorra no espaço intermediário entre o psíquico e o físico. Pode-se dizer, apenas, que é aconselhável abordar toda doença também do ponto de vista psicológico, porque isto pode ser de suma importância também para o processo de cura. Quando esses dois aspectos atuam juntos, pode facilmente acontecer que a cura se dê no espaço intermediário, ou, em outras palavras, que ela consista numa complexio oppositorum, como o lápis. Neste caso a doença é um estágio do processo de individuação no sentido mais pleno (grifo do autor).

Nesse mesmo sentido, afirma ao seu primo, Rudolf Jung (em 11 de maio de 1956), que o carcinoma pode ser a expressão de um processo de individuação que parou em algum lugar essencial, e não consegue vencer o obstáculo. Nesse caso, a constituição está no fim das suas possibilidades, mas isso não quer dizer que esses casos sejam acessíveis à psicoterapia (JUNG, 2003, p. 22):

Assim como o carcinoma pode surgir por razões psíquicas, também pode desaparecer por razões psíquicas. Casos semelhantes foram constatados com certeza. Isto, porém, não quer dizer que estes casos sejam incondicionalmente acessíveis à psicoterapia ou que se possa impedir seu surgimento através de um desenvolvimento psíquico especial.

Também em carta a Kesser, em 1949, a individuação aparece, como, a um só tempo, fatalidade e realização (JUNG, 2002, p. 136): “A individuação é tanto fatalidade quanto realização. A psicologia do si-mesmo não é filosofia, mas um processo empiricamente constatável que, enquanto processo natural, poderia transcorrer harmoniosamente se não recebesse uma conotação trágica no ser humano pela colisão com a consciência”.

Isto é, a consciência é importante e favorece a individuação. Em função disso, toda análise está a caminho da meta longínqua da individuação, mas não a garante. Nesse sentido, permanece uma dúvida conceitual, pois Jung afirma tanto que ela é um processo natural, como que só ocorrerá se houver unidade entre a consciência e o inconsciente. Não obstante, fica claro que a consciência torna o processo tanto mais difícil como mais vantajoso para o desenvolvimento.

Ao abordar processos psíquicos, ressalta a importância da vivência de fatos, incluindo do processo de individuação e da assimilação da sombra. Enfatiza ser a experiência aquela que dá sentido à vida. Em carta à baronesa Vera Von Der Heydt, de 1958, isso fica claro (JUNG, 2003, p. 178):

Sua pergunta provém certamente de um ambiente onde soam muitas palavras. Não se pode esclarecer a verdadeira situação apenas com conceitos, mas com experiência interior correspondente. Com os conceitos, entra-se num beco sem saída porque eles não são idéias filosóficas, mas simples nomes das experiências. Por isso, quando se fala a partir do lado experimental, as coisas que antes pareciam confusas se tornam de repente claras (grifo nosso).

A experiência interior é essencial para Jung. Sem ela, não há aprendizagem. E, sem aprendizagem, não há individuação. Ao ressaltar a necessidade da experiência, esclarece um aspecto epistemológico de sua abordagem. O ato de conhecer depende da experiência, sem a qual não há construção de conhecimento pessoal. Em carta de 22 de dezembro de 1958, faz a seguinte afirmação à baronesa Vera Von Heyt, de Londres (JUNG, 2003, p. 179): “Também é óbvio que toda introspecção naquilo que chamo de sombra é um passo no caminho da individuação, sem que se deva chamar isso de processo de individuação”.

Há uma nota do revisor técnico nesta carta à baronesa Von Heydt. Na nota, ele entende por “individuação” o desenvolvimento natural do indivíduo, e por “processo de individuação” o respectivo desenvolvimento, enquanto observado e estimulado pela consciência. Em seus escritos, usa os dois conceitos como sinônimos.

Levantou-se a hipótese de que o revisor das publicações de Cartas tenha buscado normatizar o conceito de individuação, tarefa para a qual Jung não se dedicou em especial. Parece mais adequado que se permaneça com as afirmações de Jung, com suas contradições e direções, e que se busque, por meio dessas, um sentido.

Em sua obra, Jung discute, extensa e detalhadamente, as premissas epistemológicas da psicologia analítica (PENNA, 2003). Além de suas preocupações, há, em sua obra, formulações aparentemente contraditórias, que mantêm questões abertas.

Antecipando, talvez, a necessidade de esclarecimento de suas palavras, na carta de 1958 à baronesa, faz a seguinte afirmação (JUNG, 2003): “Dessas discussões se vê o que me espera depois que me tornei póstumo. Então, tudo o que foi fogo e vento será espírito e reduzido a preparados sem vida. Os deuses serão enterrados em ouro e mármore, e os simples mortais como eu em papel”.

Seu receio de ser transformado em preparados sem vida e de ser enterrado em papel revela o imenso perigo que vê para o futuro de sua obra. Reconhece, em sua teoria, aspectos vitais passíveis de serem perdidos por estarem escritos. Com isso, sinaliza que a vitalidade da obra independe da maneira como foi registrada.

A dúvida essencial que permanece refere-se à função da consciência no processo de individuação. É curioso observar como a concepção de individuação (processo que pode ser iluminado pela consciência e, ao mesmo tempo, desenrolar-se naturalmente) retoma o paradoxo consciência versus inconsciente como fundamento da teoria. Jung, portanto, levanta a questão da função da consciência no desenvolvimento humano.

Análise dos fundamentos científicos do conceito de individuação

Tem-se como meta, neste momento, sinalizar, mesmo que de maneira breve, alguns aspectos dos fundamentos científicos da obra de Jung, mediante a análise de seus escritos sobre o conceito individuação, reunidos nos três volumes de Cartas. Procura-se, com isso, esclarecer alguns dos princípios do paradigma junguiano e demonstrar sua coerência com o modelo de ciência pós-moderno.

Não se pretendeu, com este estudo, esgotar o debate sobre os fundamentos científicos da obra de Jung. Buscou-se apenas sinalizar sua aproximação a um paradigma contemporâneo de ciência, que envolve dada complexidade e atualidade das quais vale a pena se aproximar.

Vasconcelos (2007) sugere que o paradigma da complexidade de Edgard Morin pode favorecer as construções científicas do mundo atual, à medida que contempla uma visão de mundo e de homem compatível com os fenômenos contemporâneos. A abordagem de Jung apresenta forte coerência com esse paradigma, tendo anunciado, desde o início, fundamentos divergentes dos da ciência da época. Dados os limites deste artigo, não se deterá à descrição de complexidade de Edgard Morin, mas se irão sugerir as perguntas iniciais de Vasconcelos (2007, p. 23) que podem nos aproximar do paradigma junguiano:

Como vemos o mundo em que vivemos? Em que medida somos originais ou apenas reprodutores de uma percepção pré-fabricada e padronizada dos diversos fenômenos e elementos do ambiente que nos cerca, induzida pela cultura hegemônica, por uma forma rotinizada de vivenciar o mundo, e por uma subjetividade pessoal medrosa, defensiva, que teme a variação, o novo, a ventura interior e a ousadia de transformar a história?

Sugere-se a leitura de Jung com esse olhar. Talvez seja possível identificar, em alguns conceitos junguianos, uma visão de mundo inovadora e incompatível com a ciência convencional. Segundo Penna (2003, p. 40) as principais características do pós-modernismo são: “pluralidade, imprecisão, paradoxalidade, incerteza, relatividade com ênfase na polivalência do significado e a integração da individualidade na coletividade”.

A autora (PENNA, 2003) cita vários autores, como Boaventura Santos, Tarnas, Roland Omnés, Dora Fried Schnitman e Christopher Hauke, dentre outros que têm se dedicado à análise da crise epistemológica no panorama científico atual. Diversos fatores vêm interferindo para inserir, na ciência contemporânea, essas noções de mundo e de homem. A partir da segunda metade do século XX, surgem importantes movimentos que abalam os principais pilares daquele paradigma que buscava a objetividade, a observação, a exclusividade do pensamento dedutivo e a ênfase na quantificação. Ainda coloca:

Os horizontes da cientificidade parecem estar se ampliando em relação aos limites estritos propostos pela filosofia iluminista e pelo rigor científico do positivismo lógico. Estes têm se mostrado não somente insuficientes e insatisfatórios, mas, sobretudo, impeditivos para o desenvolvimento do conhecimento (PENNA, 2003, p. 40).

A abordagem de Jung antecipa, já na segunda metade do século XX, algumas formulações epistemológicas e metodológicas contemporâneas. Uma vez que o objeto de estudo da psicologia do inconsciente é distinto do das ciências naturais e exatas, há particularidades ontológicas, epistemológicas e metodológicas.

Penna (2003) analisa a obra de Jung à luz do conceito atual de paradigma científico, no qual as perspectivas ontológica, epistemológica e metodológica articulam-se de modo que formem um todo. Define-se, assim, pela perspectiva simbólico-arquetípica que norteia o tratamento metodológico dispensado ao material psicológico. Nas palavras de Penna (2003, p. 214), a perspectiva simbólico-arquetípica pode ser comparada ao olhar da águia, que é ao mesmo tempo abrangente para contemplar panoramas amplos, e focalizada para se concentrar e ver com nitidez o que é essencial e importante. A denominação simbólico-arquetípica sintetiza e abarca diversas características do método junguiano analisadas neste estudo e expressa sua essência e amplitude.

Uma vez que as perspectivas ontológica, epistemológica e metodológica articulam-se na composição do conceito atual de paradigma, esses três aspectos são contemplados na presente análise do paradigma junguiano, com base na autora e na obra supra citada.

Perspectiva ontológica

A perspectiva ontológica refere-se ao ser em geral, e o termo ontologia refere-se ao estudo do ser. A perspectiva ontológica de um paradigma levanta questões básicas sobre a natureza da realidade.

A Psicologia de Jung compreende o mundo e o ser humano como unidades indissolúveis. A conseqüência dessa visão está na compreensão de que cada aspecto relacionase ao todo, tanto em termos de ontogênese, como em termos de filogênese. Cada aspecto da existência está, portanto, ligado a outros extratos.

Observa-se, nas citações, a concepção de que a realidade é primariamente inconsciente e depende da consciência para constatá-la, averiguá-la e fazer uso dela para o seu desenvolvimento. Esse princípio ontológico fundamental é bastante importante, pois é dele que surgem outros dois princípios fundamentais: 1. o inconsciente dá origem à consciência, e, portanto, é ele que está mais próximo da origem e da fonte de informações; 2. a consciência, que aparece em um estágio posterior do desenvolvimento, exerce um papel fundamental, pois, sem ela, não há discriminações e evolução na construção de conhecimento.

Desse modo, fica claro o modo como se dá o trabalho na teoria: ambas as dimensões, a consciente e a inconsciente, são importantes para a individuação. É importante considerar que toda informação original, uma vez traduzida pela consciência, perde sua integridade. O trabalho psicológico sofre dessa limitação. Em função disso, há um cuidado especial de Jung em diferenciar as dimensões da realidade: consciente e inconsciente.

É de extrema importância a discriminação feita por Jung dos critérios adotados pela ciência da época para validar a investigação científica. Grande parte da ciência da época e da ciência de hoje, de acordo com o que afirma Zoja (2005), não se propõe à investigação subjetiva, realizada por Jung. Nesse sentido, observa-se que, na perspectiva de Jung, subjetividade é um dos aspectos da realidade.

Outro aspecto abordado na citação de Jung é o de que a ciência da época não se ocupava dos indivíduos em sua singularidade. Dedicava-se, na verdade, à abordagem quantitativa que buscava uma média nas ocorrências. Tal aspecto também nos remete ao aspecto ontológico da perspectiva, demonstrando o contraponto existente entre uma visão de mundo calcada na singularidade de cada ser humano e na singularidade dos fenômenos observados e uma abordagem calcada na visão global, que busca uma média. Nesse sentido, observa-se uma enorme diferença entre a teoria de Jung e a ciência do seu tempo, mas uma aproximação dela em relação aos paradigmas atuais.

Perspectiva epistemológica

Entende-se epistemologia como o estudo dos fundamentos, da origem, da natureza, do valor e do limite dos conhecimentos dentro de um modelo científico filosófico. Ela busca diferenciar a realidade em si da sua percepção.

Para Jung, a realidade em si não é diretamente acessível ao homem. Em função disso, em psicologia analítica não se falou, por exemplo, de Deus, mas da imagem de Deus. Por outro lado, as percepções de imagens, sentimentos e pensamentos são a maneira pela qual temos acesso ao mundo interior. Em função disso, Jung enfatiza a importância de se lidar com fatos e experiências. Sua metodologia de trabalho é, portanto, baseada na observação e na comprovação, guardadas as limitações de uma ciência que tem como foco de investigação a psique, já que se parte do princípio de que não acessamos o inconsciente diretamente.

Aqui, se observa um dado epistemológico da teoria que tem implicação direta na metodologia.

Um exemplo do rigor de Jung (2003, p. 60) ao abordar fatos da perspectiva psicológica é a carta que escreve, em 1957, a uma destinatária suíça não identificada:


Muito obrigada pela carta cujo conteúdo me interessou bastante. Impressionou-me, sobretudo, o fato de, na discussão entre a senhora e a senhora X, sempre se falar de “Deus”, do que ele faz ou que ele é. Sinto falta aqui de um reconhecimento explícito do limiar epistemológico. Não podemos falar de “Deus”, mas apenas de uma imagem de Deus que nos apresenta ou que nós fazemos.

Esse esclarecimento torna clara a postura de Jung. Ele aborda o universo psíquico do ser humano com base naquilo que se apresenta a ele. Pauta-se nas expressões do mundo interno, das imagens e de relatos de experiências.

Ao dr. Joseph Goldbrunner Stockdorf bei Munchen, Jung afirma, em carta de 14 de maio de 1950, que é obrigação moral não se fazerem afirmações sobre o que não se pode ver nem comprovar. Fazê-lo seria uma transgressão epistemológica. Em função disso, não há, em seus trabalhos, afirmações metafísicas nem negações das afirmações metafísicas. Na individuação, o sujeito expõe-se a forças desconhecidas. Não afirma nem nega o metafísico por se pautar numa ciência empírica. Em função disso, afirma sua postura epistemológica (JUNG, 2003, p. 61):

[...] Isto são naturalmente problemas que permanecem indiscutíveis se abstrairmos da epistemologia. Eles nos tornam acessíveis só quando nos lembramos constantemente da crítica epistemológica, isto é, quando se esquece que a realidade absoluta só é imaginável psicologicamente. E, assim, a psique, ou melhor, a consciência introduz na imagem as condições do conhecimento, isto é, a distinção de particularidades que não estão separadas no mundo em si mesmo.

A afirmação “a consciência introduz na imagem” deixa bem claro um aspecto do enfoquede Jung: o conhecimento construído com base na imagem é distinto do original. O que a imagem comunica é total, diz respeito ao mundo em si mesmo. A consciência permite a discriminação de aspectos da realidade e a construção de certo conhecimento, que nunca será igual ao original. Ao mesmo tempo em que a análise (entendida como distinção de particularidades e estabelecimento de relação entre elas) permite uma ampliação da compreensão, ela também nos afasta do mundo em si.

Em carta à pastora Dorothee Hoch, de 28 de maio de 1952, Jung (2002, p. 240) deixa isso claro:

Considero uma desgraça que a maioria dos teólogos acreditem que tenham realmente mencionado Deus quando dizem a palavra “Deus”. [...] Diante dessas circunstâncias um tanto dolorosas, o empírico, em detrimento de suas convicções religiosas, não tem outra escolha senão lidar com idéias de Deus, sem abordar a questão metafísica. Ele não toma decisões com base na fé.

Sendo empírico, o cientista não toma decisões com base na fé. As palavras do cientista reconhecem sua limitação ao descreverem aquilo com que entraram em contato e a forma como este se deu, em vez de considerarem comunicar sobre a realidade em si. Sabem que nos remetem a uma realidade intangível, que é intermediada pela consciência humana. Essa mesma noção apresenta-se na carta enviada ao dr. Ph.D. Med Albert Jung em 21 de dezembro de 1960 (JUNG, 2000, p. 312): “O processo de individuação, isto é, tornar-se totalidade, inclui por definição o todo do fenômeno humano e o todo do enigma da natureza, cuja divisão em aspectos físicos e espirituais é mera discriminação que serve aos elevados interesses do conhecimento humano” (grifo nosso).

Nela, Jung parte da premissa de que a natureza pura é integrada. A consciência discrimina aspectos da realidade para poder examinar suas partes. O exame da ciência dominante, por sua vez, busca a média, trabalha estatisticamente os dados, adotando uma análise quantitativa. Contudo, não é essa a atitude de Jung. Ao professor Henry Murray, de Boston, escreve sobre isso em agosto de 1956 (JUNG, 2003, p. 43-44):

A ciência só se ocupa com a idéia média de um carvalho, de um cavalo, ou de uma pessoa, mas não com sua singularidade. Além disso, é quase impossível descrever um ser humano individualizado, uma vez que não temos pontos de referência fora da esfera humana. Por isso, não sabemos o que é o ser humano. Do ponto de vista da ciência, o indivíduo é desprezível ou mera curiosidade. Mas do ponto de vista subjetivo, isto é, do ponto de vista do próprio indivíduo, ele é o mais importante, pois é o portador da vida, e seu desenvolvimento e aperfeiçoamento são de suprema importância. [...] Todos os critérios da individuação são necessariamente subjetivos e estão fora dos propósitos da ciência (grifo nosso).

Aqui, fica claro que Jung não se dispõe a descrever uma pessoa individualizada porque, do ponto de vista geral, ela não existe. O que existe são pessoas, particulares e diferentes entre si, fato que, para a ciência de seu tempo, não tem valor nenhum.

Perspectiva metodológica

O método de investigação e análise da psique de Carl Gustav Jung é revelador do paradigma que o sustenta. Para compreender esse paradigma, são válidos alguns esforços de aproximação à sua trajetória de construção de conhecimentos com base no que propõe Penna (2003). Ela afirma que as investigações de Jung, desde o seu início, direcionam-se ao método construtivo sintético e evoluem a partir de suas observações empíricas, clínicas e culturais. Propõe uma compreensão de seu desenvolvimento por meio das seguintes etapas, aqui descritas sinteticamente.

1. Fraternidade Zofingia – 1896-1900. Nesse período, ainda muito jovem (entre 21 e 24 anos), Jung já propunha, nas palestras do seu grupo Zofingia, críticas veementes ao materialismo da época. Sua erudição é patente nas conferências, o que demonstra, desde já, a capacidade de fazer articulações entre diversas áreas do conhecimento.

2. Burgholzli – 1900-1909. Nesse período, Jung estudou e utilizou o método experimental, prevalente em seu tempo, concluindo, por fim, a sua inadequação para a psicologia do inconsciente. Por meio do teste de associação de Wundt, chega à concepção de complexos de tonalidade afetiva de origem inconsciente.

3. Freud e a psicanálise (1906-1912) – Trata-se de um método interpretativo e associativo. Período de consolidação e investigação do inconsciente na psicologia profunda.

4. Divergências com a psicanálise (1909-1913). Jung firma as seguintes noções básicas de Psicologia Analítica nesse período: a ontogênese repete a filogênese, a simultaneidade de causa e finalidade nas ocorrências simbólicas e a libido não exclusivamente sexual. Amplia suas pesquisas do material mitológico. Rompe com Freud após sete anos de amizade e cooperação profissional.

5. Psicologia Analítica (1914-1928). Nesse período extremamente produtivo, Jung estabelece as bases fundamentais de seu modelo psicológico. A abordagem simbólica do material psíquico abarca tanto a leitura causal como a final. Afirma, também, as bases ontológicas da teoria da totalidade que abrange mundo subjacente, manifesto e principais conceitos; e formula seu método de investigação da psique, sintético, hermenêutico e construtivo.

6. Revisão, ampliação e consolidação do método (1930-1949). Nesse período, Jung realiza uma ampla revisão de textos anteriores e reformula alguns conceitos, como os de complexo, inconsciente coletivo e arquétipo. Retoma a natureza e a dinâmica da psique. As pesquisas sobre arquétipos são intensificadas por conta dos estudos sobre alquimia e religião ocidental e oriental. A relação entre psicologia e cultura é abordada mediante a arte, eventos históricos relevantes e outros campos da ciência. O termo “amplificação” é cunhado em 1930, e remete ao embasamento de suas postulações conceituais no campo da cultura.

7. A síntese final (1950-1961). Nesse período, Jung reformula alguns de seus estudos pela última vez, lapida conceitos. A sincronicidade amplia e conclui o método junguiano. De maneira mais sintética, pode-se afirmar, com base em Stein (2006), que os primeiros 30 anos da sua vida profissional foram profundamente criativos e geraram elementos básicos de uma teoria psicológica. Dedicou-se intensamente à atividade clínica e psiquiátrica. Nesses anos, destacam-se a observação e a descrição de fatos que, unidos a uma visão do todo, que lhe era particular, indicavam um modelo de funcionamento psíquico. Nos 30 anos subseqüentes, de 1930 a 1961, Jung buscou aprofundamento e validação de hipóteses anteriores. Segundo Stein (2006, p.14), na segunda metade da vida, “ampliou ainda mais suas teorias para incluir estudos de história, cultura e religião, e para riar uma ligação essencial com a física moderna”, aplicando o chamado método hermenêutico e construtivo.

Algumas cartas que tratam do conceito da individuação demonstram aspectos de seu método de trabalho. De acordo com ele, não há postulações que partam das idéias, contudo, por meio de suas observações clínicas, tem condição de lançar hipóteses sobre o funcionamento psíquico. Em relação ao seu método de trabalho, afirmou a dra. Jolande Jacobi, em 1956 (apud Jung, 2003, p. 18), que a idéia de “totalidade da psique”, que levou Jung mais tarde à concepção do processo de individuação e aos métodos que o tornam eficaz, foi desde o início fator determinante de sua visão psicológica.

Jung (1956, p. 18), no entanto, discorda dessa afirmação, esclarecendo suas bases epistemológicas e metodológicas:

Esta idéia é incorreta. A idéia de totalidade não me levou à concepção do processo de individuação. O processo de individuação não é uma concepção, mas designa uma série de fatos observados; e, em segundo lugar, não existe método algum no mundo que possa tornar eficaz o processo de individuação. Este é a experiência de um processo natural que pode ser percebido ou não pela consciência. A “idéia de totalidade” é uma expressão que usei – e só nos últimos anos – para descrever, por exemplo, o si-mesmo. Conceitos não têm muita importância para mim, porque não faço pressuposições filosóficas; por isso nunca parti de uma “idéia de totalidade” (grifo nosso).

Jung observa e se relaciona com os fatos, e por meio deles elabora uma teoria. Enfatizando a experiência e o dado empírico, reforça essa idéia em carta de 1950 ao dr. Joseph G oldbrunner (JUNG, 2002, 164-165):

No sentido estrito, a psicologia é a ciência dos conteúdos da consciência. Seu objeto, portanto, não é metafísico, caso contrário ela seria uma metafísica. Pode-se acusar a física de não ser uma metafísica? É evidente que todos os objetos da física sejam fenômenos físicos. Por que seria a psicologia a única exceção dessa regra? [...] Estou profundamente impressionado com o fato de as pessoas estarem tão sujeitas ao erro e à ilusão. Acho, portanto, ser obrigação moral não fazer afirmações sobre aquelas coisas que não podemos ver nem comprovar, e acho que é uma transgressão epistemológica fazê-lo assim mesmo. Estas regras valem para a ciência empírica (grifo nosso).

 

Conclusão

O conceito de individuação de Jung permite, desse modo, evidenciar pressupostos de sua teoria que caracterizam determinado paradigma científico, cujo conhecimento pode colaborar na compreensão de sua obra e na comparação desta com outras abordagens. De acordo com o que foi exposto ao longo deste estudo, em sua visão, o mundo externo e o interno compõem uma unidade indissolúvel. Além disso, outras polaridades psíquicas,como o ego e o self, masculino e feminino, o pessoal e o universal, são interligadas, e cada aspecto do psiquismo está ligado aos demais. Aspectos paradoxais na teoria são freqüentes, uma vez que diferentes dimensões da psique coexistem. Como exemplo, a realidade psíquica, que se origina do inconsciente e passa a ser consciente com o desenvolvimento. A consciência é fundamental para a individuação e distingue o homem dos outros animais. No entanto, deve se manter sempre conectada à fonte original de informações, o inconsciente. À medida que o inconsciente é, também, coletivo, a atividade do cientista da psique exige o reconhecimento tanto da particularidade de cada ser como de sua ligação com o coletivo.

Essas afirmativas são concordantes com Penna (2006), para quem o paradigma junguiano apresenta uma proposta de construção de conhecimento afinada com a epistemologia científica pós-moderna em vários aspectos.

A relatividade do conhecimento humano diante da infinitude do inconsciente coletivo, a busca de interação dos opostos sem anular as diferenças, a aceitação de paradoxos e contradições inerentes à diversidade e complexidade da natureza humana são alguns dos aspectos do paradigma junguiano afinados com as características da ciência pós-moderna.

Acredita-se que a complexidade e a abertura para o desconhecido, dentro da visão de Jung, devem ter favorecido a existência de algumas lacunas conceituais. Entretanto, como Jaffé apontou (1995, p. 31), compreende-se que, diante da importância e da coerência da teoria de Jung, “a ocasional falta de uniformidade terminológica, de formulação clara ou de precisão não é, realmente, anulada por isso, mas perde sua importância básica”.

Os fundamentos da abordagem demonstram coerência interna e com o mundo atual e uma abertura para as mutações permanentes em nossa realidade. A complexidade a aproxima dos paradigmas contemporâneos, cientes de seus limites em relação a afirmações absolutas e da interdependência entre os diversos aspectos da realidade.

 

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Endereço para correspondência
Paola Vieitas Vergueiro
Rua Caropá, 433
São Paulo – SP
CEP 05447-000
E-mail: paola.vv@hotmail.com

Tramitação
Recebido em março de 2008
Aceito em junho de 2008