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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.13 no.1 São Paulo 2011
ARTIGO ORIGINAL
O passeio de Bia (vídeo): apresentação e validade interna e externa de um recurso para a promoção de habilidades sociais de pré-escolares
Bia walk (video ): presentation and internal and external validity of a resource to promote social skills of preschoolers
El paseo de Bia (vídeo ): presentación y validez interna y externa de um recurso para promover las habilidades sociales de preescolares
Camila Negreiros Comodo; Almir Del Prette; Zilda Aparecida Pereira Del Prette; Carina Luiza Manólio
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos SP Brasil
RESUMO
O aprendizado de habilidades sociais pode ocorrer de forma natural, porém, quando isso não ocorre, é necessário criar condições para essa aprendizagem. Uma dessas condições é o uso de diferentes recursos (livros, vídeos, jogos), associados ou não a programas de habilidades sociais. Este trabalho descreve o processo e o produto da elaboração de um vídeo em que a personagem principal (Bia) apresenta modelo de alternativas de habilidades sociais diante de seis demandas: fazer pedido à mãe, recusar oferta de carona, solucionar uma briga entre amigas, ajudar uma senhora a atravessar a rua, fazer pedido e negociar para tomar sorvete, e fazer convites. As etapas de pré-produção, produção, filmagem e pós-produção do vídeo são descritas, e analisam-se posteriormente os indicadores de validade interna e externa obtidos.
Palavras-chave: Habilidades sociais, Pré-escolares, Recursos de vídeo, Validade interna e externa, Intervenção.
ABSTRACT
Learning social skills can occur naturally, but when this doesn't occur, it is necessary to create conditions for such learning. One such condition is the use of different resources (books, videos, games) associated or not with social skills programs. This paper describes the process and product of making a video in which the main character (Bia) presents models of social skills alternatives on six demands: make request to her mother, refuse offer of a ride, to resolve a fight among friends, helping an old lady to cross street, request and negotiate to get ice cream, and make calls. The stages of pre-production, production, filming and post production of video are described, and the indicators of internal and external validity later obtained are analyzed.
Keywords: Social skills, Preschool, Video resources, Internal and external validity, Intervention.
RESUMEM
El aprendizaje de habilidades sociales puede ocurrir de forma natural, sin embargo cuando eso no ocurre, es necesario crear condiciones para ese aprendizaje. Una de esas condiciones es el uso de diferentes recursos (libros, vídeos, juegos) asociados o no la programas de habilidades sociales. Este trabajo describe el proceso y lo producto de la elaboración de un vídeo en que el personaje principal (Bia) presenta modelo de alternativas de habilidades sociales delante de seis demandas: hacer pedido su madre, rechazar la oferta de ser llevado en coche, solucionar una disputa entre amigos, ayudar una señora a cruzar la calle, hacer pedido y negociar para tomar un helado, y hacer invitaciones. Las etapas de pre-producción, producción, filmación y postproducción del vídeo se describen, y los indicadores de validez interna y externa obtenidos posteriormente se discuten.
Palabras clave: Habilidades sociales, Preescolares, Recursos de vídeo, Validez interna y externa, Intervención.
Introdução
A aquisição de comportamentos novos tem grande importância especialmente na infância, pois eles formam a base para o aprimoramento do repertório do indivíduo. Um dos processos que influenciam o desenvolvimento emocional, sexual e cognitivo é a socialização, que adquire uma importância significativa nesse período (CAIRNS, 1986). No desenvolvimento social na primeira infância, conforme Del Prette e Del Prette (2005), a criança adquire valores, padrões de comportamento e conhecimento da cultura na qual está inserida, o que é mediado pelos adultos de maneira intencional ou não.
O estudo dos processos de socialização é tema de várias disciplinas na psicologia, entre as quais o campo teórico e prático das habilidades sociais. Dois conceitos são especialmente importantes nesse campo, o de habilidades sociais e o de competência social. As habilidades sociais são classes de comportamentos com alta probabilidade de produzir ou maximizar consequências reforçadoras para o indivíduo e eliminar ou reduzir estimulação aversiva, contribuindo para a efetividade e a qualidade de sua relação com os demais (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2009). Já a competência social é vista como um constructo avaliativo da capacidade de "articular pensamentos, sentimentos e ações em função de objetivos pessoais e de demandas da situação e da cultura, gerando conseqüências positivas para o indivíduo e para sua relação com as demais pessoas" (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005, p. 33).
Procurando especificar as principais habilidades sociais na infância, Del Prette e Del Prette (2005) propõem um sistema de sete classes de habilidades sociais como se seguem: autocontrole e expressividade emocional, civilidade, empatia, assertividade, fazer amizades, solução de problemas interpessoais e habilidades sociais acadêmicas. Tais habilidades não atuam isoladamente, mas são interdependentes no processo de socialização da criança. Um repertório pobre em habilidades sociais está correlacionado com problemas de comportamento e com dificuldade de aprendizagem (COOK et al., 2008; FEITOSA et al., 2009; TRENTACOSTA; IZARD, 2007), enquanto um repertório adequado pode ser relacionado ao desempenho escolar satisfatório e a várias outras condições favoráveis ao desenvolvimento socioemocional da criança (MOLINA; DEL PRETTE, 2006).
A literatura do campo das habilidades sociais indica que os pais promovem o aprendizado de comportamentos novos por meio de três estratégias principais: o manejo de consequências, a instrução e a modelação. O manejo de consequências tem como base os conceitos de reforço, punição e extinção. Skinner (1953) destaca a modelagem e a instrução como maneiras de os pais ensinarem comportamentos novos para seus filhos. Na modelagem, há o reforço diferencial de respostas que se aproximam do comportamento desejado e, em aproximações sucessivas, chega-se a um desempenho complexo e não existente anteriormente no repertório do organismo. Já a instrução refere-se ao aprendizado sob controle de antecedentes verbais fornecidos pelos cuidadores que especificam contingências (ABREU-RODRIGUES; SANABIO-HECK, 2004).
Um terceiro e importante processo é a aprendizagem por meio de modelação que tem Bandura como seu principal proponente. Bandura (1977) defende que uma maneira de as crianças aprenderem regras sociais e comportamentos novos ocorre por meio de aprendizagem programada ou incidental de comportamentos de modelos. A teoria social cognitiva possui uma grande importância para a área de habilidades sociais como afirmam Saldaña, Del Prette e Del Prette (2002, p. 275).
Pode-se argumentar, segundo Bandura (1965) e Bandura, Ross e Ross (1961, 1963), que a aprendizagem básica para a aquisição de comportamentos novos é a observacional, na qual os eventos perceptuais, simbólicos ou sensoriais, possuem propriedades de sinalização que posteriormente servem como estímulos discriminativos para as mesmas respostas abertas que foram observadas. Com isso, o observador tende a emitir a mesma resposta diante de situações semelhantes ou, no caso de punição, inibi-la.
Para Bandura (1965), o importante é que imitar não se refere apenas a reproduzir de forma motora um comportamento, e sim aprender maneiras novas de agir e relações entre o comportamento e as condições pessoais e ambientais que acompanham essa ação. De acordo com a teoria social cognitiva, há um observador que aprende comportamentos realizados por um modelo, e, para que isso seja possível, são necessárias quatro condições pessoais: o observador deve estar atento para indícios relevantes da ação do modelo, deve ser capaz de reter na memória o que foi visto, de reproduzir de forma motora as respostas aprendidas e, por fim, deve ser motivado a colocar em prática esse novo conhecimento (SALDAÑA; DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2002).
Bandura (2008) ressalta que todos esses processos devem ser analisados ao se considerar a aprendizagem observacional, pois um modelo, além de emitir respostas desejáveis, pode ser importante para instruir outros a reproduzir seu comportamento, estimular os observadores fisicamente e recompensá-los quando obtêm sucesso. As falhas na imitação do modelo podem ocorrer por causa de diferentes fatores: o observador pode não atentar para as características relevantes, ter uma inadequada representação de memória, falhar em reter o que foi aprendido, não ser hábil para reproduzir a ação ou ter incentivo insuficiente para reproduzi-la (COSTA, 2008). Quando isso acontece, devem ser conduzidos procedimentos para a aprendizagem dos comportamentos-alvo, como um treinamento de habilidades sociais.
Deve-se ressaltar também que a criatividade não é excluída dessa forma de aprendizagem, uma vez que o observador não irá simplesmente imitar o comportamento do modelo: ele irá criar seu próprio padrão de comportamento se tiver acesso a aspectos de diversos modelos, adotando os elementos que lhe pareçam vantajosos, modificando-os e aplicando-os a situações específicas de modo que esse arranjo de informações dificilmente se repete de pessoa para pessoa (BANDURA, 2008). D essa forma, a teoria atribui ao indivíduo um papel ativo e propõe que seu comportamento final é resultado da interação entre variáveis pessoais, ambientais e comportamentais (OLAZ, 2009).
Para dar base empírica à sua teoria, Bandura realizou diversos experimentos, dentre os quais o famoso estudo do "João Bobo", com o objetivo de demonstrar o efeito da modelação para atos de agressão (BANDURA; ROSS; ROSS, 1961). Os pesquisadores expuseram crianças a modelos adultos que se comportavam de maneira agressiva ou não agressiva, e, em seguida, as crianças eram testadas na ausência do modelo. Os resultados obtidos confirmaram a hipótese da teoria social cognitiva, pois as crianças que observaram os adultos violentos apresentaram mais comportamentos agressivos do que aquelas que observaram adultos não agressivos. Resumidamente, com base em múltiplos estudos nessa área, foram identificadas outras características que tornam os modelos mais efetivos, como sexo e idade semelhantes ao do observador, situando a identificação com o modelo como um elemento importante desse processo de aprendizagem.
A modelação é um dos processos mais importantes no aprendizado de comportamentos sociais, especialmente na infância. Pais e colegas podem ser bons ou maus modelos, e as atividades que os pais propiciam na educação dos filhos podem agregar diferentes tipos de modelos, reais ou simbólicos. Na cultura ocidental contemporânea, é grande a exposição das crianças a modelos reais e, mais ainda, a modelos simbólicos presentes na televisão (desenhos, filmes etc.), revistas e livros, ainda que nem sempre sob controle dos pais. No entanto, estes também poderiam explorar esses recursos direcionando-os para objetivos coerentes com seus valores e metas na educação dos filhos.
Assim, a elaboração e utilização de materiais educativos para promover a aprendizagem de habilidades sociais tornam-se um empreendimento importante em prol do desenvolvimento socioemocional das crianças, especialmente quando as condições presentes nos contextos naturais não são suficientes para garanti-lo. Diversas falhas podem ocorrer nas práticas educativas, como a falta de modelos adequados, a punição de comportamentos desejáveis (por exemplo, a assertividade) e a recompensa a comportamentos indesejáveis (por exemplo, agressividade) (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005). Além de atuarem na superação dessas falhas, a escola e a família poderiam se valer de recursos educativos em intervenções preventivas de problemas nessa área por meio da promoção de habilidades sociais na infância, utilizando recursos variados para isso. Entre os recursos disponíveis atualmente, pode-se destacar a tecnologia multimídia, com vídeos instrucionais e interativos.
Bandura (2008) também faz menção ao uso desse tipo de recurso na promoção de comportamentos novos por meio da modelação simbólica. Dilworth, Mokrue e Elias (2002) propuseram um programa de promoção de habilidades sociais em que trechos de vídeos eram apresentados a crianças de primeira a quarta série, consideradas de risco por terem sido expostas a violência. Esses trechos de vídeo mostravam sucessos e insucessos na resolução de problemas que envolviam habilidades sociais e eram acompanhados por discussões e role-play das situações. Os resultados mostraram um aumento no autoconceito, na autoeficácia acadêmica e no senso de popularidade, além de maior satisfação com a aparência física.
No Brasil, o estudo realizado por Lopes (2009) utilizou esquetes de vídeo do Sistema Multimídia de Habilidades Sociais para Crianças (SMHSC-Del Prette, 2003)1 em um programa que tinha por objetivo promover e ampliar o repertório de habilidades sociais em crianças com dificuldade de aprendizagem. Os resultados apontaram a aquisição de repertório de habilidades sociais por crianças e uma melhoria na competência acadêmica, mostrando a potencialidade de recursos desse tipo.
Tendo em vista essas considerações, o presente estudo tem como objetivos: descrever o processo de elaboração de um vídeo instrucional destinado a promover o aprendizado de habilidades sociais de crianças de 4 a 6 anos por meio da exposição destas a modelos de comportamento em diferentes situações do cotidiano, apresentar o produto final em suas características e conteúdo, e apresentar indicadores de aceitabilidade do recurso a profissionais da área (validade de conteúdo) e usuários, no caso as crianças (validade social ou externa).
Método
Nesta seção, são descritas as etapas de produção do vídeo O passeio de Bia e de avaliação do produto final pelos juízes e pelas crianças.
Etapas do processo de produção do vídeo
Para a elaboração do produto final, o vídeo em DVD, algumas etapas como pré-produção, produção, filmagens e pós-produção tiveram que ser realizadas. Todos os procedimentos utilizados em cada uma dessas etapas são descritos a seguir.
A pré-produção envolveu os cuidados éticos, a elaboração do roteiro, o recrutamento de participantes e da equipe de filmagem e a escolha do local da gravação. Em relação aos cuidados éticos, o estudo foi elaborado de acordo com os critérios estabelecidos na resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 196/96.
A elaboração dos roteiros levou em conta as sete classes de habilidades sociais infantis propostas por Del Prette e Del Prette (2005), e, em cada cena, pelo menos uma dessas classes era explorada. Para cada situação, ficou estabelecido que a protagonista teria três possibilidades de desempenho de acordo com o instrumento SMHSC-Del Prette (2003): desempenho habilidoso (emissão de comportamentos como assertividade, empatia, civilidade, expressão adequada de sentimentos, resolução de problemas ao emitir o comportamento e outras habilidades sociais adequadas para as situações), desempenho não habilidoso passivo (fuga ou esquiva da situação) e desempenho não habilidoso ativo (agressividade, negativismo, ironia, autoritarismo). Para cada uma das situações, foi construído um roteiro, contendo os objetivos da cena, as falas dos personagens, o contexto da ação, a narração com os possíveis desempenhos da personagem principal para o contexto, os participantes e seus desempenhos.
Após a elaboração do roteiro, convidaram-se crianças e adultos que frequentavam a universidade da qual os pesquisadores fazem parte e que pudessem desempenhar um papel no vídeo elaborado. Participaram da produção do vídeo: crianças de 6 a 7 anos, sendo três meninas e dois meninos; dois jovens de 23 anos; uma mulher de aproximadamente 30 anos; e uma senhora de 80 anos. Todos os participantes, e no caso de menores de idade seus responsáveis, leram e assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e os Termos de Cessão de Imagem. Já a equipe de filmagem foi composta pelos pesquisadores e uma aluna de um curso de graduação em Imagem e Som. As filmagens foram realizadas no campus de uma universidade pública e em condomínios de uma cidade do interior do Estado de São Paulo.
Na etapa de produção, realizaram-se todas as ações necessárias antes da filmagem: a solicitação à universidade dos equipamentos necessários para a viabilização da filmagem, a caracterização e o figurino das personagens, e a escolha dos objetos de cena; tudo isso de acordo com os roteiros. E por fim, foram realizados ensaios das cenas a serem gravadas. A filmagem teve como objetivo produzir as cenas de vídeo propriamente ditas, que foram gravadas diversas vezes, considerando que os atores eram amadores, pela primeira vez atuando em trabalho como esse. Todo o trabalho técnico foi realizado por profissionais da Imagem e Som.
A pós-produção incluiu todos os procedimentos necessários para a realização da mídia em DVD. Essa etapa foi realizada com a edição de imagens, a seleção de trilha sonora, sua inclusão na gravação e a "autoração" do DVD. Nessa etapa, elaborou-se um breve texto instrucional para pais, professores e profissionais fazerem o uso adequado do material. Também realizou-se a narração das cenas com os possíveis desempenhos da personagem principal.
Avaliação do produto
A avaliação do recurso audiovisual foi feita em duas etapas: a de validade interna, efetuada por juízes especialistas em habilidades sociais, e a de validade externa, efetuada por crianças-alvo.
Avaliação por juízes
Esta etapa envolveu a elaboração de um protocolo de avaliação submetido a 14 juízes, de 20 a 30 anos de idade, com conhecimento na área de habilidades sociais, alunos de graduação em psicologia ou de pós-graduação na área, membros do grupo de pesquisa "Relações interpessoais e habilidades sociais" (RIHS). Os juízes avaliaram o filme quanto à sua adequação aos conceitos da área e quanto ao seu potencial uso como recurso para promover habilidades sociais por meio de modelação. O protocolo era composto por duas perguntas abertas:
• Que habilidades sociais infantis estão relacionadas com cada cena do filme? Comente.
• O filme ajuda na aprendizagem de habilidades sociais? Caso a resposta seja positiva, diga como isso ocorre.
Os resultados dessa avaliação encontram-se no Quadro 1, que mostra os objetivos que nortearam a construção de cada situação pelos pesquisadores e o número de juízes que apontaram as respostas possíveis. Na coluna relativa à avaliação dos juízes, há uma indicação de quantos deles relataram todas as respostas possíveis ou apenas algumas delas de acordo com os objetivos da pesquisadora.
O Quadro 1 mostra que houve coerência entre as respostas dos juízes e os objetivos da pesquisadora, uma vez que, em quatro cenas, a maioria dos juízes apontava todas as classes de respostas possíveis definidas pela pesquisadora. Além disso, em todas as situações, pelo menos um juiz identificou todas as habilidades definidas pela pesquisadora, o que demonstra que a maioria dos objetivos propostos pode realmente ser alcançada com a utilização do vídeo.
Em relação à adequação do material para o seu propósito, todos os juízes relataram que o recurso audiovisual produzido poderia ser efetivo no aprendizado de habilidades sociais. Diversos juízes referiram positivamente sobre a estratégia de explorar várias habilidades sociais em uma mesma situação e sobre a importância da narração, apontando alternativas de reação da personagem principal. Foi relatado que o vídeo pode contribuir para a aprendizagem de habilidades sociais porque apresenta contextos sociais próximos ao vivenciado por crianças no cotidiano, facilitando a generalização do que foi ensinado. Como afirmou um juiz: "as cenas são bem parecidas com o cotidiano de crianças dentro dessa faixa etária".
Nove juízes apontaram a narração como uma característica fundamental do recurso, pois ela permite que as crianças entrem em contato com as diversas possibilidades de reação da personagem e reflitam sobre qual o comportamento mais adequado para a situação. Uma resposta ilustra a importância da narração pelos juízes:
[...] sim, o filme propicia o aprendizado por meio da apresentação de um modelo [Bia] em interação com diferentes interlocutores e em diferentes contextos. Uma característica importante do vídeo é a narradora, a qual, ao comentar as alternativas de comportamentos de Bia, pode explicitar e tornar mais claras as habilidades envolvidas em cada situação.
Os especialistas em habilidades sociais também relataram que, para um melhor aproveitamento do recurso audiovisual, visando a uma aprendizagem mais adequada e efetiva, reforçando o conteúdo, seria importante a discussão com pais, terapeutas e cuidadores. Esse aspecto apontado está contemplado no breve texto explicativo que a pesquisadora incluiu no DVD destinado a pais, professores e profissionais que trabalham com crianças sobre como fazer o uso adequado do material.
Avaliação pelas crianças
Também foi elaborado um protocolo para a avaliação do material por crianças da faixa etária da população-alvo. Esse protocolo era composto por sete perguntas:
• Quantos anos você tem?
• Conte para mim qual é a história do filme.
• Você gostou do vídeo?
• De qual cena você mais gostou?
• Você já passou por alguma situação que aconteceu com a Bia no filme?
• Você aprendeu alguma coisa com a Bia?
• Você assistiria ao filme de novo?
Assistiram ao filme 86 crianças de 3 a 6 anos, de uma escola particular de uma cidade do interior de São Paulo, sendo 49 meninas (57%) e 37 meninos (43%). Dessas crianças, 24 tinham 3 anos, 23 tinham 4, 19 estavam com 5, e 20 com 6 anos.
Em relação à aceitação do recurso educativo pela população-alvo, ou seja, pelas crianças, uma das questões envolvia o entendimento do filme, sendo importante que elas soubessem relatar a história depois de terem assistido ao vídeo. Todos os participantes de 5 e 6 anos conseguiram relatar a história de forma articulada, com uma sequência. Porém, as crianças de 3 e 4 anos tiveram mais dificuldade de lembrar a história toda e todos os acontecimentos, principalmente as mais novas. Para avaliar o quanto as crianças gostaram do vídeo, foram criadas categorias de resposta: muito, mais ou menos e não gostou. A maioria dos participantes, 95,3%, afirmou que gostou muito do filme. Apenas 3,5% afirmaram ter gostado mais ou menos do recurso audiovisual, e 1,2% relatou não ter gostado do filme.
Sobre a situação do filme de que mais gostaram, muitas crianças se referiram a mais de uma situação. As cenas mais mencionadas foram as duas últimas (Bia recusando a carona de um desconhecido e a garota convidando Leo para brincar com ela e seu amigo Pedro), ambas citadas por 93% das crianças. Entretanto, nenhuma situação deixou de ser comentada, e a primeira situação (Bia fazendo um pedido para a mãe) teve a preferência de 50% dos participantes. Quando perguntadas se alguma vez já passaram por alguma situação parecida com as que a Bia viveu no vídeo, a maioria das crianças mencionou que vivenciou mais de uma situação em comum com a garota. As cenas mais mencionadas foram: Bia fazendo um pedido para a mãe (88,4% dos participantes), a garota ajudando duas amigas em uma briga (81,4% dos participantes) e Bia convidando Leo para brincar com ela e com Pedro (79,1% dos participantes). A situação menos citada foi a de Bia recusando a carona de um estranho, e apenas 2,3% das crianças afirmaram ter vivenciado um caso como esse.
A maioria das crianças afirmou que aprenderam com Bia a negar carona de um desconhecido (75,6%) e a ajudar os mais velhos ou os amigos (60,5%). Também foram mencionadas as habilidades de pedir "por favor" e agradecer (26,7%) e de convidar um amigo para brincar quando este estiver sozinho (17,4%). Um garoto de 6 anos relatou: "Eu aprendi que tenho que ajudar o Igor, meu amigo que quebrou o braço". Algumas crianças de 3 anos disseram que aprenderam com a Bia, mas não souberam explicar exatamente o quê. Por fim, quando perguntados se convidariam um amigo ou colega para assistir ao filme com eles, 98,8% dos participantes relataram que chamariam algum conhecido. Uma garota de 3 anos comentou: "Eu chamaria meu primo, minha prima, minha amiga e minha vizinha". Antes de ser feita essa pergunta a uma menina de 4 anos, esta questionou a pesquisadora: "Tia, a gente pode assistir o vídeo de novo?".
Resultados
O produto audiovisual resultante foi denominado O passeio de Bia. Esse DVD possui 12 minutos de duração, com seis cenas nas quais a personagem principal, Bia, uma garota de 6 anos de idade, se comporta de acordo com as diferentes demandas das situações. Cada cena tem aproximadamente dois minutos e é dividida em três partes. Na primeira parte, Bia depara com uma demanda (pedido à mãe, briga entre amigas, oferta de caro na, oferta de sorvete e amigo que se encontra sozinho e quer brincar). Em cada demanda, a personagem "pensa" (o que é registrado em voz alta) sobre qual seria a melhor alternativa de comportamento a ser emitido. A narradora descreve as três possibilidades de ação: reação habilidosa, reação não habilidosa ativa (agressividade, negativismo, ironia, autoritarismo) e reação não habilidosa passiva (fuga ou esquiva da situação). Por fim, na terceira parte da situação, Bia se comporta de uma das maneiras explicitadas pela narradora e é consequenciada por isso. Em todas as cenas, foram colocados recursos para promover o caráter lúdico do vídeo, como música de fundo e pontos de interrogação que surgem na tela no momento da narração.
No Quadro 2, são resumidas as cenas do vídeo, contendo a demanda à qual a garota está exposta, as alternativas de resposta e a resposta com sua consequência.
A narração, recurso encontrado na segunda parte de cada cena, tem como intuito mostrar os pensamentos de Bia sobre qual comportamento seria mais adequado para cada situação, apresentando algumas alternativas de reação aos problemas e suas possíveis consequências. Entretanto, a narração tem outro objetivo importante para a população a qual o recurso se destina: a interação com o espectador. Isso é visto na maioria das cenas, já que a narradora conversa com as crianças sobre o que elas acham que a personagem deve fazer e, em alguns momentos, pergunta o que as crianças fariam no lugar da Bia.
Discussão
O material produzido e avaliado por juízes e pela população-alvo se mostra coerente com os pressupostos do campo teórico e prático das habilidades sociais e com a teoria de Bandura. A duração das situações, a dinâmica delas, a interação da narradora com o espectador e os recursos utilizados, como música de fundo e pontos de interrogação aparecendo na tela no momento da fala da narradora, tornam o material mais didático e atrativo para a sua população-alvo . Isso, de acordo com Bandura (1977), facilita a aprendizagem por modelo, pois o ambiente está arranjado de uma forma motivadora para que a criança emita o comportamento esperado.
O fato de a personagem principal do filme ter aproximadamente a mesma idade da população-alvo aumenta a chance de aprendizagem das crianças, o que também é afirmado por Bandura (1977), pois essa proximidade de idade facilita principalmente a identificação com o modelo. Assim, é fundamental que as situações de um recurso audiovisual tenham uma estreita relação com situações do cotidiano das crianças, o que, no caso do recurso aqui descrito, mostra ser verdadeiro por meio das avaliações, já que diversas situações foram citadas pelos participantes como vivenciadas por eles.
Outra condição necessária para o aprendizado de novos comportamentos, descrita por Bandura, é a atenção que os indivíduos devem ter ao modelo para que possam aprender com ele. No filme, essa condição foi garantida por meio da simplicidade das falas e das situações, da natureza das interações (acontecimentos do cotidiano de uma criança) e da maneira como o vídeo foi estruturado (situações movimentadas e dinâmicas), tornando o material fácil de ser compreendido pela população-alvo. Esses aspectos também influenciam a quarta condição para o aprendizado, a memória, uma vez que situações simples, curtas e cotidianas são mais facilmente relembradas no dia a dia das crianças. Assim, as crianças foram capazes de contar a história do filme de forma estruturada e com continuidade. O fato de as crianças menores (3 anos) não conseguirem relatar a história, esquecendo-se de algumas partes, pode ser explicado por elas ainda não possuírem uma memória mais complexa e uma habilidade de contar histórias, pois nessa idade a memória ainda é rudimentar (CAIRNS, 1986).
Além disso, é importante mencionar que os comportamentos de Bia são, por um lado, consequenciados positivamente quando são socialmente competentes e, por outro, consequenciados negativamente quando a menina não faz uso das habilidades sociais. Isso significa que, quando a personagem é socialmente habilidosa, ela consegue atingir seus objetivos (por exemplo, brincar na casa do amigo), porém, quando isso não ocorre, não obtém reforçadores (por exemplo, não consegue o sorvete que desejava). Essas características podem influenciar a motivação para a reprodução do comportamento e a atenção ao modelo, pois as pessoas tendem a imitar um modelo que possui qualidades socialmente desejáveis e é recompensado pelos seus comportamentos.
Além de estar de acordo com os pressupostos da teoria da aprendizagem social, o recurso audiovisual também apresenta validade interna, pois todos os juízes que o avaliaram apontaram determinadas habilidades sociais como objetivos de cada situação, as quais foram construídas embasadas na área. A coerência dos juízes com praticamente todos os objetivos da pesquisadora mostra que o vídeo é um material que pode servir como recurso educativo em programas que visam promover habilidades sociais. Uma alternativa de seguimento do estudo de concordância e validade interna desse produto seria, com base nas classes de respostas identificadas pelos juízes no protocolo de questões abertas, construir e aplicar um protocolo de questões fechadas que permita avaliar de forma mais precisa e abrangente a concordância entre juízes e pesquisadora.
Em relação à validade externa do recurso produzido, a análise da avaliação das crianças mostra o potencial desse vídeo como recurso de aprendizagem, pois elas relataram ter aprendido com o vídeo e citaram algumas habilidades como comportamentos aprendidos com o material (recusar carona, pedir "por favor" e agradecer, ajudar os mais velhos e os amigos, e convidar um amigo para brincar). Isso indica que o recurso audiovisual pode proporcionar a aprendizagem de habilidades sociais em crianças pré-escolares. Outra questão importante é a aceitabilidade das crianças, as quais gostaram muito do filme (95,3%), entenderam o que aconteceu com Bia e gostariam de assistir ao material novamente (98,8%).
Na avaliação do produto, o presente estudo possui uma limitação importante que foi a forma de avaliação das crianças. Os avaliadores mais novos (principalmente de 3 anos) não conseguiram contar a história do vídeo nem explicar o que aprenderam com a personagem, o que deixa margem para o seguinte questionamento: o vídeo como material educativo não abrange essa faixa etária ou essa não é a melhor forma de avaliar se essas crianças aprenderam com o recurso audiovisual. Uma avaliação com maior precisão que incluísse o assistir ao vídeo e observar o comportamento posterior das crianças teria maior probabilidade de afirmar se essa faixa etária se beneficiou das situações apresentadas no filme. Sendo assim, uma limitação do presente estudo seria a forma de avaliação das crianças, já que se avalia o comportamento verbal, prevendo que este seria igual ao comportamento na situação real, o que em alguns caso não ocorre. Para suprir essa lacuna, seria interessante que pesquisas futuras pudessem avaliar as crianças se comportando em situações semelhantes às do vídeo antes e depois de assistirem ao material, com a hipótese de que a segunda avaliação mostraria uma melhora das habilidades sociais. Outro estudo que poderia ser realizado nesse sentido seria um teste da eficácia e efetividade do uso desse recurso audiovisual por pais, professores e/ou terapeutas para ensinar habilidades sociais para pré-escolares com e sem déficits em habilidades sociais.
Considerações finais
O vídeo O passeio de Bia foi avaliado positivamente por juízes e pelas crianças a quem foi destinado e pode ser considerado um recurso importante no treinamento de habilidades sociais, na medida em que atende a demandas específicas da faixa etária em questão. Além disso, é potencialmente motivador e relativamente fácil de usar, dada sua forma lúdica de apresentação, com falas simples e cenas curtas e dinâmicas sobre situações do cotidiano. Trata-se de um material que poderia ser utilizado não apenas em contexto clínico, mas também na escola e na família. Além disso, pesquisas futuras podem ser realizadas com o propósito de aperfeiçoar o uso do material e refinar a forma de avaliação desse recurso.
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Camila Negreiros Comodo
e-mail: cami_nc@hotmail.com
Tramitação
Recebido em novembro de 2010
Aceito em março de 2011
1 O SMHSC-Del Prette é um instrumento que avalia o repertório de habilidades sociais no qual as crianças observam as situações multimídias e relatam a frequência e dificuldade com que desempenham os comportamentos apresentados no vídeo.