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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.13 no.2 São Paulo ago. 2011

 

ARTIGO DE REVISÃO TEÓRICA

 

Integralidade e saúde mental no SUS à luz da teoria da complexidade de Edgar Morin

 

Integrality and mental health in the SUS under the light of Edgar Morin's complexity theory

 

Integralidad y salud mental en el SUS a la luz de la teoría de la complejidad de Edgar Morin

 

 

Dulce Maria Bedin; Helena Beatriz Kochenborger Scarparo

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta os processos históricos que colocam o conceito da integralidade em cena, por meio de uma contextualização acerca da construção do Sistema Único de Saúde (SUS), situando os princípios que embasam as políticas de saúde e suas relações com a integralidade. No campo da saúde coletiva, a expressão passou a ganhar inúmeros sentidos, como neste estudo, que a associa à complexidade e à transdisciplinaridade. Resgata o processo de construção da reforma psiquiátrica brasileira, para refletir sobre as possibilidades de práticas de integralidade na saúde mental. O conceito da integralidade é percebido como imbricado em toda reflexão sobre as mudanças nos modelos de atenção em saúde, expressando o desejo de construção de uma sociedade mais justa e mais solidária. Mostram-se possíveis as articulações entre a integralidade e o pensamento complexo, associados às questões da saúde mental como alternativa de superação dos modelos tradicionais que ainda se colocam.

Palavras-chave: assistência integral à saúde; Sistema Único de Saúde; saúde mental; reformas dos serviços de saúde; psicologia social.


ABSTRACT

The article situates the historical processes that put the concept of integrality in scene, through a contextualization on the building of the Unique Healthcare System (SUS), placing the principles that support the health policies and their relations to integrality. In the field of collective health, the term began to present many senses, as in this study, which associates it to the complexity and transdisciplinarity. It redeems the process of building the Brazilian psychiatric reform, to reflect on the possibilities of integrality practices in mental health. The concept of integrality is perceived as being imbricated throughout the reflection on changes in the models of healthcare, expressing the wish to build a fairer and more solidary society. The links between integrality and complex thinking are possible ones, associated to the issues of mental health as an alternative to overcome the traditional models that are still there.

Keywords: comprehensive healthcare; Unique Healthcare System; mental health; health services reforms; social psychology.


RESUMEN

El artículo sitúa los procesos históricos que el concepto de integralidad escena, mediante una contextualización sobre la construcción del Sistema Único de Salud (SUS), colocando los principios que apoyan políticas de salud y sus relaciones con la integralidad. En materia de salud colectiva, el término comenzó a ganar muchos sentidos, como en este estudio, que lo asocia a la complejidad y transdisciplinaridad. Rescata el proceso de construcción de la reforma psiquiátrica brasileña, para reflexionar acerca de las posibilidades de prácticas de integralidad en salud mental. El concepto de integralidad es percibido como estando entrelazados por toda reflexión sobre los cambios en los modelos de atención sanitaria, expresando el deseo de construir una sociedad más justa y más solidaria. Son posibles los vínculos entre la integralidad y el pensamiento complejo, asociados con las cuestiones de salud mental como alternativa para superar los modelos tradicionales que todavía existen.

Palabras clave: atención integral de salud; Sistema Único de Salud; salud mental; reforma de servicios de salud; psicología social.


 

 

Introdução

Para refletir sobre integralidade e saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS), necessita-se de apoios teóricos que favoreçam a compreensão de conceitos associados ao tema e não gerem processos de fragmentação do conhecimento. É o caso do pensamento complexo que tem, entre seus principais operadores conceituais, a dialogicidade, a recursividade e o holograma. A dialogicidade implica entender os fenômenos como simultaneamente antagônicos, concorrentes e complementares. A recursividade indica a compreensão de que efeitos de um processo são também seus coprodutores. O holograma, por sua vez, refere-se à ideia de que a parte está no todo, assim como o todo está na parte (MORIN, 2007).

O processo de construção do conhecimento, desse modo, reside em situar o objeto em relação aos contextos. Para tal, estudaram-se, inicialmente, aspectos históricos da adoção da integralidade no cenário das práticas em saúde com a constituição de novos paradigmas (MORAES, 2006) e a articulação entre direitos humanos e ações sociais. Tal processo instaurou movimentos de luta pela garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais e fortaleceu o movimento da Reforma Sanitária que teve a integralidade como meta e desafio na operacionalização das práticas em saúde em geral (AMARANTE, 2001; MORAES, 2006).

Contextos de construção do Sistema Único de Saúde: a Reforma Sanitária

O atual modelo de prestação de serviços de saúde do Brasil é marcado por lutas sociais que se intensificaram a partir da segunda metade dos anos 1970, quando o enfraquecimento da ditadura vigente propiciou processos de redemocratização da sociedade. Anteriormente, o regime instituído pelo golpe civil-militar de 1964 impediu a participação da sociedade nos rumos da assistência à saúde, e a administração estatal era orientada pelo governo. Transformaram-se, assim, os modelos de saúde pública e medicina previdenciária com processos de centralização da autoridade decisória, marcada pela criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1966 (MENDES, 1993).

Tais circunstâncias reforçaram a lógica da prestação de assistência apenas aos trabalhadores formais, nos moldes de práticas lineares, com foco na recuperação e reabilitação de doenças. Aos demais restavam a promoção da saúde e a prevenção relacionadas aos agravos de elevada prevalência. Isso porque, antes da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a saúde pública pertencia ao setor da saúde, e a assistência médica, ao da previdência social (CECCIM; FERLA, 2008-2009).

As mudanças impostas focalizavam os cuidados individuais, o que resultou na proliferação de egressos, laboratórios, hospitais e serviços privados. Assim, saúde passou a ser um produto a ser consumido (LUZ, 1991), o que acarretou a compra de serviços de corporações médicas privadas, especialmente hospitais e indústrias farmacêuticas multinacionais. Esse modelo provocou, por um lado, a capitalização crescente do setor privado e, por outro, crises na saúde que apontaram para a insustentabilidade do modelo e o agravamento dos indicadores de saúde. Ampliou-se, assim, a insatisfação da população com o regime autoritário (LUZ, 1991; MENDES, 1993). Na segunda metade dos anos 1970, a insatisfação da população intensificou as críticas a esse modelo. Ao mesmo tempo, mundialmente, os movimentos pela expansão da assistência em saúde congregavam-se na realização da Conferência de Alma-Ata, em 1978, reivindicando "Saúde para todos no ano 2000", lema preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (MALIK, 1998).

Nessa época, estudantes e profissionais da saúde e, posteriormente, outros segmentos da sociedade iniciaram o "Movimento Sanitário". Esse movimento criticava o tratamento curativo com a manutenção da lógica problema-solução que subjugava o usuário, sem considerá-lo no processo da construção de vida (MALIK, 1998). Pleiteavam, então, políticas democráticas, descentralizadas, universais e hierarquizadas. Como decorrência, priorizou-se a criação de modos de relação nos processos de cuidado que considerassem a diversidade de necessidades e o protagonismo dos usuários (MATTOS, 2001). Transforma-se, assim, a dicotomia saúde-doença, pautada na lógica causa e efeito, por meio de um processo recursivo que reforça a ideia de integralidade.

As problematizações geradas nesse processo transformaram concepções e práticas em saúde. Por exemplo, engendrou-se a noção saúde coletiva, uma "matriz teórico-conceitual do Movimento Sanitário" (TEIXEIRA, 1985, p. 97) que registrou um espaço contra-hegemônico ao criticar o modelo sanitário (NUNES, 2005). Era um contraponto à lógica biomédica predominante na época, no que tange às fragmentações e à medicalização da sociedade brasileira (BIRMAN, 2005).

Estudos no campo da saúde coletiva que criticavam o universalismo naturalista do saber médico inauguraram, assim, o conceito da integralidade (MORAES, 2006). Isso se mostra em publicações e debates que, ao relativizarem a hegemonia dos saberes biológicos, ressaltaram os prejuízos de hierarquizar diferenças entre saberes (BIRMAN, 2005). Aproxima-se, novamente, o conceito da integralidade ao da complexidade no ponto em que fica expressa, dialogicamente (MORIN, 2007), a convivência de lógicas antagônicas, concorrentes e complementares nas formas de pensar e produzir saúde. Destaca-se a busca de articulação entre democracia e saúde e o intento de superação das fragmentações entre o curativo e o preventivo por meio da participação social: "Tal movimento disputava pela ‘atenção' no lugar da ‘assistência', pela integralidade no lugar da polaridade prevenção-cura e pela processualidade saúde-doença em lugar da promoção versus reabilitação" (CECCIM; FERLA, 2008-2009, p. 444).

Em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) – considerada marco histórico para os avanços nos cuidados em saúde e para a criação do SUS –, foram consagrados os princípios da Reforma Sanitária. Em 1987, instituiu-se o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), uma consolidação das Ações Integradas de Saúde (AIS), que manteve como diretrizes a universalização, a equidade, a integralidade dos cuidados, a regionalização dos serviços com criação de distritos sanitários, a descentralização das ações, o desenvolvimento de instituições colegiadas gestoras e de políticas de recursos humanos (MALIK, 1998).

Finalmente, ao ser promulgada em 1988, a Constituição (BRASIL, 1988) reconheceu a saúde como direito de todos e dever do Estado. No capítulo VIII (da "Seguridade Social"), artigo 198, afirma que as ações e serviços de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada em um sistema único, organizado pelas seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas e participação da comunidade. Aparece, então, a expressão "atendimento integral" que, além de unificar ações e garantir atendimento conforme cada necessidade, renova críticas às práticas hegemônicas.

Em 1990 foi promulgada a Lei Orgânica da Saúde – Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990a), que legitima o SUS e refere a integralidade como "conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema". Nessa lei, definiram-se os princípios doutrinários: universalidade, equidade e integralidade. Definiram-se também princípios organizativos: regionalização e hierarquização, descentralização e participação dos cidadãos (BRASIL, 1990a). Por meio do artigo 198 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o SUS integra a descentralização do poder de execução (da União e dos Estados para os municípios) e a participação da comunidade por meio de conferências e conselhos de saúde. A primeira gera a ideia de um sistema administrativo capaz de atender à diversidade de um país continental, ampliando a autonomia dos municípios para o gerenciamento das ações em saúde. A segunda, definida na Lei n. 8.142/90 (BRASIL, 1990b), orienta a formulação de estratégias e o controle da execução das políticas de saúde, tendo em vista a democracia representativa (MORAES, 2006).

Com as possibilidades de participação e criação nos modos de fazer saúde, pode-se conferir ao SUS um caráter organizacional. Ao contrário das estruturas, as organizações interagem no todo e ganham sentido no contexto das relações. Referem-se, assim, a movimentos, produções, transformações e articulações constantes (MORIN, 2005). Ceccim e Ferla (2006) sugerem a imagem da "mandala", associada a redes, fluxos e movimentos, no lugar da clássica figura da pirâmide para pensar esses processos. Assim, saúde é fruto de processos dialógicos, recursivos e hologramáticos, e considera a produção de ordem e desordem constantemente (MORIN, 2005). Tais processos são cotidianos, e a perspectiva da integralidade evidenciou a necessidade de atentar para a articulação de cuidado e subjetividade na efetivação das práticas, associando saúde ao direito de ser (MATTOS, 2001). Isso significa afirmar a diversidade e considerar a complexidade da produção de sentidos de integralidade.

Sobre os sentidos de integralidade

A integralidade, conceito formulado no campo da saúde coletiva (MORAES, 2006), é dispositivo de anúncio e efetivação de práticas em saúde. Os usos do termo revelam inusitados propósitos, inclusive para fundamentação de práticas de saúde tradicionais (MERHY, 2005). A integralidade, mais do que um princípio doutrinário, é "um conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relaciona a um ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária" (MATTOS, 2001, p. 43). Essa concepção ampliada permite aproximações do pensamento complexo (SCARPARO, 2006).

A ideia da integralidade como desejo de construção de outra sociedade extrapola a recusa ao reducionismo e sugere implicação com o contexto. Hologramaticamente, é a percepção de que cada ação para o outro é, ao mesmo tempo, para si. Assim, atribui-se outro sentido à integralidade: a corresponsabilidade e a decorrente recursividade sujeito-contexto (MORIN, 2002). Disso decorre a compreensão de que as mudanças conquistadas pela Reforma Sanitária levam a conceber a saúde como processualidade, como resultado de interações, o que lhe atribui caráter complexo e avesso aos reducionismos (CECCIM; FERLA, 2006).

Sentidos de integralidade podem ser explorados também pela ideia de "imagem objetivo" que se formula no desejo de superação do contexto. Ela indica direções para construir outra configuração em um horizonte temporal definido e possibilita a participação de atores distintos que comungam de indignações semelhantes (MATTOS, 2001). A integralidade enuncia, então, características do sistema de saúde de modo a contemplar de valores que primam por transformações sociais (MATTOS, 2001). Nas práticas de cuidado, associa-se à superação do olhar centrado na doença. Pode-se tomar como exemplo o atendimento no qual o profissional, além de tentar reduzir o sofrimento manifesto pelo usuário, interessa-se por seu contexto de vida (MERHY, 2005). Cabe destacar aqui a emergência de um sentido de integralidade, que busca abandonar o modelo profissional-paciente para pensar em relações sujeito-sujeito (SCARPARO, 2006). Pensar o usuário como sujeito de necessidades múltiplas leva o trabalhador da saúde a sucessivos deslocamentos na construção das práticas de integralidade (CECCIM; FERLA, 2005). Esses fazem com que o trabalhador se depare com limitações resultantes do olhar unidisciplinar e valorize a inserção de outros saberes na ação. Resultam interações interdisciplinares, articulações entre serviços e setores como formas de integralidade (ALVES, 2001).

Assim, a integralidade associa-se a modos de agir que potencializem a cidadania pelo estabelecimento de relações assimétricas e, dialogicamente, pelo respeito às diferenças, consideradas formas de compor saberes (MATTOS, 2001). Desse modo, a integralidade é ferramenta para pensar estratégias de saúde. Especificamente no caso da saúde mental, a busca de cuidado integral redundou na Reforma Psiquiátrica e na formulação de espaços de vida com qualidade (PINHEIRO; FERLA; SILVA JR., 2007).

Mudanças nas políticas de saúde mental: a Reforma Psiquiátrica

A Reforma Psiquiátrica é um processo político, social e eticamente complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens que incidem em territórios diversos. É compreendida como conjunto de transformações de práticas, saberes e valores e tem avançado, mas é marcada por impasses, tensões e desafios. Trata-se da expressão de críticas coletivas ao saber psiquiátrico clássico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005).

A Reforma foi influenciada por experiências internacionais de movimentos ligados às mudanças nas formas de tratamento em saúde mental1. Podemos citar como exemplo a experiência italiana, liderada por Franco Basaglia, que, em 1961, assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia e transformou aquele manicômio em uma comunidade terapêutica com princípios humanistas. O modelo lançou um movimento que possibilitou mudanças na compreensão e no tratamento da loucura que considera as especificidades nos processos de produção da vida (AMARANTE, 2001).

No final da década de 1970, concretizou-se o movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, que criticava a cronificação do doente mental, suas internações prolongadas e perdas subjetivas legitimadas pelo saber psiquiátrico clássico2 e pelas instituições manicomiais. O processo da Reforma culminou, na década de 1980, com a proposição de alternativas a esses modelos segregadores e excludentes. Em 1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental propunha "uma sociedade sem manicômios" e deu início ao movimento da "luta antimanicomial". Tal movimento ampliou o debate sobre os hospícios e as possibilidades de tratamento fora dos hospitais psiquiátricos (AMARANTE, 2001). Tornou-se evidente para parcelas significativas do governo e da sociedade o esgotamento do modelo assistencial vigente (carcerário) e passou-se a buscar formas de cuidado voltadas à criação de serviços substitutivos para a consecução de estratégias de inserção psicossocial do usuário e de resgate de sua cidadania.

A Reforma Psiquiátrica corrobora a ideia de integralidade no cuidado, ao propor a superação do tratamento significado como esbatimento de sintomas e ao enfrentar posturas medicalizantes e individualizantes. No Estado do Rio Grande do Sul (BRASIL, 2004a), em 1992 criou-se a Lei n. 9.716 (que dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica estadual). Já em termos nacionais, em 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, a Lei n. 10.216, "Lei Paulo Delgado", foi sancionada. Ela dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona a assistência, privilegiando o tratamento em serviços de base comunitária. Com base nisso, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2004b) busca organizar o cuidado em saúde mental por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Estes devem funcionar como serviços ambulatoriais especializados, integrados aos demais serviços do sistema e na lógica do território, buscando construir, especialmente junto à atenção primária, planos terapêuticos singulares. No final da década de 1990, o país contava 208 Caps, com 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a saúde mental destinados aos hospitais psiquiátricos. Em 2008, com mais de 1.394 Caps, decaiu para 34,46% a destinação de recursos para hospitais psiquiátricos. Assim, é possível considerar ter havido avanços na implementação de redes substitutivas (BRASIL, 2005, 2009).

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, de fato, houve mudanças nos modos de pensar, olhar, planejar e oferecer atenção às pessoas em sofrimento psíquico e a seus familiares. Porém, para que se alcance o desenvolvimento de ações mais potentes e abrangentes, visando à abordagem dos usuários como pessoas de direitos e desejos, seguem ainda muitos desafios conforme a Política Nacional de Saúde Mental – PNSM (2009). Entre eles, a garantia da continuidade da redução progressiva dos leitos psiquiátricos, a qualificação, expansão e fortalecimento da rede extra-hospitalar, a ampliação do número de unidades psiquiátricas em hospitais gerais e a garantia de avaliação contínua dos hospitais psiquiátricos por meio do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/ Psiquiatria (POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 2009).

As reformas Psiquiátrica e Sanitária possibilitaram criar modos de fazer saúde incessantes e múltiplos. Contudo, mantém-se um cenário que, apesar de apresentar expansão dos serviços (BRASIL, 2005), denota fragmentações (FURTADO, 2006), o que aponta para a necessidade de intensificar ideias de integralidade em saúde mental.

Práticas de integralidade em saúde mental

Um dos primeiros objetivos da Política Nacional de Saúde Mental (2009) para avanços na área refere-se à garantia da redução progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos. Na prática, esse objetivo se coloca como um desafio devido a resistências e ao número insuficiente de serviços que, em muitos casos, estão desarticulados. Além disso, a Lei Federal n. 10.216/2001, apesar de privilegiar a oferta de serviços de base comunitária, não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Isso favorece disputas políticas. Usando como argumento as ferramentas da Reforma Psiquiátrica – a desconstrução da cultura manicomial concomitante à construção de outras culturas (BASAGLIA, 1996) –, as forças que lutam pela manutenção do modelo hospitalocêntrico argumentam a não existência de novas culturas, ou seja, indicam que não se estabeleceu uma rede substitutiva para que se possa abrir mão do modelo existente. Além disso, justificam a manutenção da lógica hospitalocêntrica em ideias de "integralidade", alegando que, desinstitucionalizado, o usuário não teria assistência continuada. Utiliza-se, dessa forma, o conceito da integralidade para justificar modelos de práticas corporativo-centradas (MERHY, 2005).

Dialogicamente, o movimento pela manutenção dos hospícios acaba por tornar mais visíveis a necessidade de redes de atenção de base comunitária, a carência e fragmentação dos serviços de rede substitutivos. Com isso, aposta-se na possibilidade de investir em práticas de integralidade como alternativa de buscar formas de garantir o acolhimento das necessidades da saúde mental em espaços de liberdade.

A integralidade implica a noção da saúde mental como parte da saúde, então, hologramaticamente, a saúde mental é também a saúde como um todo. A pessoa em sofrimento psíquico não deixa, por esse motivo, de apresentar as demais necessidades de saúde, pois não é divisível em suas necessidades (ALVES, 2001). Além disso, pode-se utilizar o princípio da recursividade para apontar o fato de que a saúde mental afeta a saúde, assim como as condições de saúde afetam a saúde mental. É uma relação complexa e está prevista em publicações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2003, 2005) que tratam de aspectos relativos às práticas de saúde mental vinculadas aos serviços de saúde:

Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença, às vezes atuando como entrave à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudáveis [...] todo problema de saúde é também – e sempre – de saúde mental, e [...] toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde (BRASIL, 2005, p. 33).

Com isso, fica claro que as necessidades em saúde mental são indissociáveis das demais necessidades em saúde e, portanto, devem ser acolhidas em qualquer serviço de saúde, com facilidade no acesso, conforme o grau da necessidade, e não em espaços segregadores. Assim, as necessidades devem ser acolhidas em serviços de qualquer área, como a educação, de acordo com o que as especificidades exijam (ALVES, 2001).

No cotidiano dos serviços da saúde, especialmente nas dificuldades de articulação e corresponsabilização entre eles, a integralidade pode ser disparadora de melhorias nas condições de vida dos usuários. Ela indica a necessidade de envolvimento de todos na garantia do acesso, do acolhimento, do estabelecimento de vínculos e do acompanhamento continuado. Nesse sentido, a legislação de saúde aponta a imprescindível relação entre as práticas de saúde mental e o SUS, denotando a necessidade de construir modelos de atenção aliados ao movimento da Reforma Psiquiátrica (AMARANTE, 2001). Esses modelos devem prever práticas intersetoriais e interdisciplinares para conquistar qualidade de vida em ações de integralidade (MINAYO; BUSS; HARTZ, 2000). Conforme orientações do Ministério da Saúde, a proximidade das unidades da atenção primária com famílias e comunidades revela um recurso estratégico para o enfrentamento de problemas em saúde mental (BRASIL, 2005), o que também está previsto nas políticas de saúde mental (BRASIL, 2004b), que priorizam os Caps como organizadores das ações, articulando-se estreitamente com os serviços da atenção primária (BRASIL, 2003). Assim, a atenção primária compõe parte do conjunto de prioridades políticas apresentadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2006). Ela trabalha com a lógica do território como facilitador do acesso e da ampliação dos vínculos entre os serviços de saúde e as comunidades.

As práticas de integralidade, nos serviços da atenção primária, podem fazer crer na ocorrência de articulações pela construção de planos terapêuticos que respondam às necessidades dos usuários. Porém, esses modos de atenção ainda estão em construção. Os usuários com necessidade em saúde mental, que antes tinham como única alternativa os hospitais psiquiátricos, chegam às unidades de saúde e, não raro, são imediatamente encaminhados aos Caps ou ambulatórios de saúde mental ou hospitais. A dificuldade se apresenta na medida em que esses procedimentos nem sempre ocorrem na lógica da continuidade do cuidado, mas, sem articulações, na lógica da desresponsabilização.

Uma das principais questões que dificultam as práticas de integralidade, nas ações em saúde, refere-se a questões de formação. O próprio contexto das reformas apontou para as insuficiências no ensino das profissões da saúde (CECCIM; FERLA, 2008-2009). Porém, a necessidade de deslocamentos entre as disciplinas é imprescindível para a ocorrência de mudanças nas práticas em saúde.

Alternativas têm sido propostas no sentido de desenvolver capacitações e realizar ações de apoio matricial para dar suporte na realização da atenção (BRASIL, 2003). Ocorre que, por muito tempo, o paradigma dominante na ciência preocupou-se em compartimentar os saberes, levando-nos à contínua divisão do conhecimento em disciplinas, e, estas, em subdisciplinas. Essa hiperespecialização fez com que muitos profissionais se fechassem sobre seus objetos de trabalho, dificultando o diálogo com outras áreas e, como decorrência, as práticas de integralidade, indispensáveis na construção de ações que acolham necessidades em saúde mental (MORIN, 2007).

Essas influências marcam condutas sem envolvimentos e compartimentadas, o que denota a dificuldade compartilharem saberes sem hierarquizar suas diferenças (ALVES, 2001). Além disso, os sentidos da integralidade implicam a concepção de saúde como processo complexo. Isso significa a ampliação da responsabilidade pelos resultados em saúde envolvendo muitos protagonistas e também tensionando lugares de poder historicamente construídos (FERNANDES; FREITAS, 2009; MERHY, 2005).

A integralidade, dessa forma, como expressão da complexidade inerente aos processos de vida, torna inconcebível a manutenção de lógicas unidisciplinares ou mesmo atribuições a um único setor ou disciplina (no caso, a saúde) a responsabilidade pelas ações de cuidado em saúde. Pensar a complexidade aqui é fazer esforços no sentido de religar, de buscar mecanismos de apoio ao crescimento disciplinar com manutenção da unidade (MORIN, 2001). É importante salientar que a complexidade não funde seus opostos em um todo homogêneo; ela mantém a distinção entre as partes e valoriza cada saber ao considerar suas relações.

O sentido de integralidade aproxima-se, então, da ideia da transdisciplinaridade. Esta busca a realização do diálogo entre todas as disciplinas, sem que se promova a sua homogeneização ou que se crie outra disciplina (NICOLESCU, 2001). A transdisciplinaridade pretende a eliminação das fronteiras disciplinares e, ao mesmo tempo, opõe-se a qualquer forma de totalitarismo (MORIN, 2002).

A busca pela aproximação da transdisciplinaridade leva, hologramaticamente, à impossibilidade de falar sobre condições de saúde sem falar dos contextos dos modos de andar a vida (MATTOS, 2004). Assim, é impossível pensar no planejamento e na execução de qualquer ação em saúde sem levar em conta a subjetividade, a imprevisibilidade e a complexidade (MATTOS, 2001; PINHEIRO; FERLA; SILVA JR., 2007).

Qualquer serviço de saúde pensado ou exercido com base em critérios objetivos e predeterminados, além de desconsiderar a integralidade na atenção (MATTOS, 2009), incorre no risco de olhar para as pessoas como objetos, como aparelhos biológicos que se assemelham a máquinas e não a organismos (MORIN, 2002). Já é sabido que esses modos de proceder resultam em morte (NICOLESCU, 2001), e, no caso da saúde, a morte inicialmente da subjetividade não raro leva à morte do organismo como um todo.

Assim, o reconhecimento da integralidade na proposta da transdisciplinaridade e da complexidade, especialmente no caso da saúde mental, é entender que a busca por identificar as necessidades do usuário (se usuário, logo necessidades de saúde) é, hologramaticamente, o mesmo que buscar identificar suas necessidades como cidadão (garantia de direitos). Isto é, significa envolver-se em outras questões além da área da saúde, questões a serem construídas (ALVES, 2001).

Algumas dessas questões, como mostra a Reforma Psiquiátrica, referem-se à busca pela garantia do direito à vida em liberdade, ao trabalho, ao respeito e a quantas mais sejam as necessidades de qualquer cidadão. Necessidades negadas por séculos às pessoas em sofrimento psíquico grave. Então, assim como se devem considerar as necessidades dos usuários de saúde mental como as de qualquer outro cidadão, deve-se, ao mesmo tempo, distingui-lo não por uma doença, mas por seus modos diferentes de ser que lhe acarretaram, por séculos, a negação de muitos direitos básicos. Por isso, o esforço de primar pela realização de práticas de integralidade, para que se passe a considerar as necessidades de cada um conforme suas especificidades, apagando os estigmas e preconceitos que se desenvolvem em torno das diferenças. Boaventura de Souza Santos (2006) auxilia na reflexão sobre as necessidades em saúde mental, no momento em que indica que se deve lutar pela igualdade quando a diferença inferioriza as pessoas, mas que se deve lutar pela diferença quando a igualdade as descaracteriza.

Por fim, considerar a complexidade e a integralidade nas práticas de vida reflete simultaneamente posturas de envolvimento e responsabilidade nas relações, de modo a garantir constantemente a reflexão e avaliação da necessidade de mudança ou de manutenção de práticas. Isso pode levar a ações de cuidado, de atenção, de comprometimento, de cumplicidade, e a outras que garantam relações solidárias e emancipatórias para com o(s) outro(s) e para consigo.

Como apontado anteriormente, justamente por sua complexidade, não se esgotam as análises acerca dos desafios colocados para o desenvolvimento de práticas de integralidade. Cabe, desse modo, que tenham continuidade pesquisas e práticas que investiguem as melhores formas de alcançar ações promotoras de emancipação e melhorias na qualidade de vida das pessoas.

 

Considerações finais

As práticas e políticas de saúde mental no Brasil são marcadas pelos processos de construção do SUS. Entre eles, destacam-se as reformas Sanitária e Psiquiátrica, iniciadas na década de 1970, que geraram políticas direcionadas para mudanças importantes na organização e efetivação das práticas na área. A luta pela democracia conquistou a garantia constitucional da saúde como direito fundamental e responsabilizou o Estado pelo provimento das condições para seu pleno exercício.

O desejo de transformação da sociedade e dos modelos de atenção, motivos das reformas, além de alcançar a garantia da saúde para todos, como preconizou a OMS em 1978, possibilitou a formulação do campo de conhecimentos da saúde coletiva. Esse campo deu origem a operadores que favoreceram pensar as mudanças desejadas. Dentre estes, podemos citar o princípio da integralidade, pautado na intenção de articular e desfragmentar modelos de apoio às práticas em saúde pública em vigor.

O conceito ganhou repercussão e tem sido amplamente utilizado em reflexões e problematizações sobre as práticas em saúde, primando por favorecer transformações sociais. Na área da saúde mental, os sentidos da integralidade, à luz da teoria da complexidade de Morin, potencializam o diálogo sobre as possibilidades de efetivação de práticas que associem ao cuidado a ideia da corresponsabilidade pelos processos de vida em sociedade. Isto é, estimulam a busca por um posicionamento crítico e de envolvimento que resulte em transformações pela inclusão das diferenças e pelo direito à vida em liberdade. Essa compreensão é possibilitada pela articulação dos operadores conceituais propostos por Morin que, por meio da dialogicidade, recursividade e holograma, alertam para a impossibilidade de fragmentações nas práticas e na produção do conhecimento. Isso leva à necessidade de envolvimento e comprometimento em quaisquer relações, bem como às produções de processos de vida.

Mostra-se, assim, a necessidade de considerar constantemente a invenção nas práticas cotidianas de trabalho em saúde mental, pois a proposta do SUS, com base no princípio da integralidade, confere, tanto aos gestores quanto aos trabalhadores e aos usuários, a responsabilidade de desenhar e redesenhar os modos de efetivar as políticas. Trata-se de criação e desinstituição cotidiana, numa proposta transdisciplinar que procure o diálogo entre todas as disciplinas, esperando alcançar um mundo melhor.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Contato
Dulce Maria Bedin
e-mail: dulcebedin@uol.com.br

Tramitação
Recebido em setembro de 2009
Aceito em março de 2011

 

 

Notas

1 Um resgate bastante completo e aprofundado sobre o tema pode ser encontrado na dissertação de Gondim (2001). 2 Na Idade Clássica, era considerado dever dos hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos, mas também ter o direito de decidir por eles e os julgar. Os hospitais tinham o poder de autoridade, direção, administração, correção e punição. O louco não era dono de seu chão, de seu pensamento e de sua cidadania, tampouco de seu comportamento, além de ser submetido a condições de habitação subumanas (FOUCAULT, 2000).

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