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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.13 no.3 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A relação ator-palco-plateia: um estudo da aprendizagem do devir-consciente no teatro

 

The relation stage-actor-audience: a study of learning of becoming aware in the theater

 

La relación actor-público-escena: un estudio del aprendizaje del devenir-consciente en el teatro

 

 

Gilead Marchezi Tavares; Vivianni Barcellos de Araujo

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória - ES - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata do processo de criação da personagem no teatro, enfocando os dispositivos cognitivos que rompem com o modo de funcionamento do pensamento cunhado na modernidade. Como ferramenta conceitual, foi utilizado o conceito de devir-consciente que se refere ao ato de tornar consciente algo que nos habita de modo pré-reflexivo, afetivo e opaco. O objetivo é apresentar a percepção do ator relativa à construção da personagem e suas implicações no modo de vida do artista a partir da investigação da relação ator-palco-plateia. Com base em estudo etnográfico de peça teatral, no qual foi realizado o acompanhamento de ensaios e apresentações públicas, observa-se que cada ator, nos ensaios e apresentações da peça, atualizando o devir-consciente, empreende uma aprendizagem sobre tal processo, criando suas personagens e recriando a si mesmo em uma cadência entre ele próprio, o público e o espaço que utiliza para atuar.

Palavras-chave: cognição; teatro; criação; atenção; etnografia.


ABSTRACT

This article discusses the process of creating the character in the theater, focusing on the cognitive devices that disrupt the operation mode of thought coined in modernity. As a conceptual tool it was used the concept of becoming-conscious, which refers to the act of becoming aware of something that dwells in a pre-reflective, affective, and opaque way. The objective is to present the perception of the actor on the construction of character and its implications on the livelihoods of the artist from the investigation of the relationship stage-actor-audience. Based on a ethnographic study of a play, which was conducted the monitoring of rehearsals and public presentations, it is noted that each actor, in rehearsals and performances of the piece, updating the becoming-conscious, embarks on such a learning process, creating their characters and recreating himself in a cadence between himself, the public and space used to work.

Keywords: cognition; theatre; creation; attention; ethnography.


RESUMEN

Este artículo aborda el proceso de creación del personaje en el teatro, centrándose en los dispositivos cognitivos que perturban el modo de operación del pensamiento acuñado en la modernidad. Como una herramienta conceptual utilizado fue el concepto de devenir-consciente, lo que se refiere al acto de toma de conciencia de algo que habita en una pre-reflexivo, afectivo y opaco. El objetivo es presentar la percepción del actor en la construcción del personaje y sus implicaciones en la vida de la artista de la investigación de la relación etapa-actor-público. Con base en estudios etnográficos de juego, que se llevó a cabo el seguimiento de los ensayos y presentaciones públicas, se observa que cada actor, en los ensayos y representaciones de la obra, la actualización del devenir-consciente, se embarca en un proceso de aprendizaje, la creación de sus personajes y recreándose a sí mismo en una cadencia entre él, el público y el espacio que utiliza para trabajar.

Palabras clave: cognición; teatro; creación; cuidado; etnografía.


 

 

Introdução

Este artigo busca discutir os processos cognitivos envolvidos na construção da personagem pelo ator no teatro, com base na proposição analítica da "ontologia do presente", expressão cunhada por Foucault (1985). Tal dimensão do pensamento científico foi forjada na modernidade, momento em que se bifurcam formas de pensamento que geram, por um lado, um pensamento paradigmático mecanicista, denominado por Foucault (1985) de dimensão analítica da verdade, e, por outro, um pensamento transdisciplinar e histórico, denominado pelo autor de dimensão da ontologia do presente. A dimensão ontológica do presente é caracterizada pela análise das produções e transformações das formas históricas que, na dimensão analítica da verdade, se colocam como verdades, como modelos a-históricos.

A dimensão analítica da verdade está pautada pelo modelo representacionista do mundo que alude a uma busca de verdades, uma busca de origens, cujo núcleo matricial encontra-se na metafísica platônica associada ao racionalismo cartesiano.

Varela (1994, p. 31) auxilia na compreensão do modelo representacionista da ciência moderna, presente na concepção de cognição, ao apontar o despropósito de buscar a homogeneidade entre o processamento computacional e o "processamento mental" humano, que promove uma comparação do cérebro humano a uma máquina:

[...] a única solução para explicar a inteligência e a intencionalidade reside na justificativa de que a cognição consiste em agir na base de representações que têm uma realidade física sob forma de código simbólico num cérebro ou numa máquina.

Pensar a cognição pela dimensão ontológica do presente é, segundo Kastrup (2007a), imprimir àquela o sentido de invenção, criação de formas, de híbridos, tais como sujeito e objeto. Concebida como invenção de si e do mundo, a cognição refere-se às potencialidades que se encontram no fluxo entre as duas margens - indivíduo e meio -, já que uma se dá por meio da outra.

Kastrup (2007a) parte dos estudos de Maturana e Varela (2002), que propõem o aforismo "viver é conhecer" e defendem a ideia de que o processo de conhecer do ser vivo é exatamente o que faz com que o organismo se mantenha vivo, ativo no mundo, num movimento contínuo do ato de conhecer. A cognição, nesses termos, não é uma atividade "mental", mas uma ação, um processo corporal. Na esteira de tal pensamento, a aprendizagem configura-se como corporificação do conhecimento, não se referindo, portanto, a uma repetição mecânica a partir de instruções prévias, mas a uma atividade criadora com um grande número de variações, que vai deixando de lado as regras e normas a priori, eliminando distâncias entre o conteúdo a ser apreendido e o corpo, passando a ter um acoplamento direto com este, extinguindo o intermediário da representação.

É em razão de tal entendimento da cognição que este artigo se propõe a discutir o processo de criação da personagem no teatro (considerada como obra de arte), tornando visíveis os dispositivos que fazem romper com as formas duras e estáveis de pensamento para colocar em processo agenciamentos singulares, efetuações emergentes das condições de possibilidade do campo relacional.

No processo teatral, o ator encontra-se a todo o momento cercado de questões relativas à apresentação de sua personagem, assim como influências que ela pode trazer para seu cotidiano. Duas grandes questões estão implícitas no processo de criação na vida teatral:

• Até que ponto a personagem está no ator e até que ponto o ator está na personagem?
• Qual é o lugar e a importância da plateia durante o desdobramento da personagem na fase das apresentações públicas da peça?

Na tentativa de responder a tais questões, este artigo utilizará como ferramenta conceitual o conceito de devir-consciente:

[...] trata-se do ato de tornar consciente, de modo explícito, claro, intuitivo, algo que nos habitava de modo pré-reflexivo, afetivo e opaco. O que se tem em vista é o conhecimento de uma experiência humana em ato, mutável e fluido (KASTRUP, 2005, p. 48).

Devir-consciente é a tradução sugerida por Kastrup (2005) da expressão becoming aware, proposta por Depraz, Varela e Vermesch (2006). A partir de uma metodologia de redução fenomenológica husserliana, os autores promovem uma revisão da épochè, concebendo-a como becoming aware e resumindo-a, para efeitos da investigação científica, às seguintes etapas: suspensão, uma mudança no tipo de atenção; conversão, uma inversão da atenção do exterior para o interior do sujeito; e deixar vir, um acolhimento da experiência (DEPRAZ; VARELA; VERMESCH, 2006).

Neste trabalho, considera-se que investigar o devir-consciente é buscar, para a psicologia, novas soluções teóricas e metodológicas para o problema perene da cognição a partir da compreensão da cognição não mais como um estado ou estrutura mental, mas sim como processo constante da organização autopoiética (MATURANA; VARELA, 2002), "dando mais um passo para o esclarecimento de um processo sem sujeito, que as ciências cognitivas evidenciaram desde seu surgimento" (DUPUY, 1996 apud KASTRUP, 2005, p. 48).

Este artigo deriva de um projeto de iniciação científica justificado pela carência, no campo da psicologia cognitiva, de estudos que analisem o processo de aprendizagem envolvido nos acontecimentos dramatúrgicos. Acredita-se que estes podem trazer contribuições para os processos de formação humana, ampliando as suas possibilidades de extensão, por exemplo, pela utilização do recurso da construção cênica na educação.

O presente artigo visa apresentar a percepção do ator relativa à construção da personagem e suas implicações no modo de vida do artista a partir da investigação da relação ator-palco-plateia. A tentativa é discutir os processos cognitivos como produção de mundo e de sujeitos, que pode ter no teatro seu expoente lúdico e, ao mesmo tempo, político.

 

Método

A metodologia empregada neste estudo se caracteriza como um estudo etnográfico a partir do acompanhamento de uma temporada de apresentação pública de um "musical" do Grupo Teatral Empório.

O método etnográfico, construído pelas ciências sociais, favoreceu a investigação de processos sócio-históricos de difícil apreensão quando se isolavam os fatores envolvidos no fenômeno. Inicialmente utilizada em pesquisas sobre etnias distanciadas do polo cultural ocidental, a etnografia hoje tem sido cada vez mais empregada para acompanhar processos em espaços sociais familiares, como a escola (FINO, 2010).

As técnicas do método etnográfico baseiam-se em observação participante, com eventuais gravações em áudio e vídeo, e registros em diário de campo de tudo o que se passa na situação investigada: quem, quando, onde e o que aconteceu. Os passos do processo de pesquisa seguem: ambientação do pesquisador para que as pessoas ajam de forma natural na sua presença; apresentação do pesquisador aos "rituais" cotidianos da situação a ser investigada; participação do pesquisador em todas as ocasiões que compõem a situação a ser investigada; registro pelo pesquisador em diário de campo de tudo o que ocorre na situação a ser investigada.

Dessa forma, a investigação foi realizada no formato de observação participante nos ensaios do grupo teatral, envolvendo o registro em diário de campo de tudo o que acontecia na situação investigada. Tal técnica possibilitou uma análise que permitiu "apreender os vários elementos envolvidos, propiciando uma visão panorâmica e um primeiro delineamento dos significados e sentidos na situação investigada" (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004, p. 31).

Como parte do procedimento de coleta de dados, observaram-se cinco apresentações públicas da peça, momento em que a pesquisadora colocou-se como plateia e fez uma descrição detalhada da interpretação do protagonista da peça, visando realizar uma comparação e, desse modo, evidenciar as diferenças entre a atuação do ator nos ensaios e na apresentação pública. A principal ferramenta de análise foi o diário de campo, no qual foram registradas conversas, observações, impressões e experiências, e em que se descrevem detalhadamente as apresentações do protagonista da peça e os depoimentos espontâneos dos atores do grupo, coletados durante o processo de observação participante.

Foi realizada uma restituição das análises propostas pelo trabalho aos atores do grupo teatral, para que eles "validassem" os dados e as considerações advindos das conciliações com a literatura científica estudada para elaboração do projeto. Dessa forma, consideramos os participantes da pesquisa como colaboradores do trabalho, uma vez que são chave primária para as conclusões elaboradas por este estudo, estando todos eles de acordo com a realização da pesquisa e livres para acessar as análises propostas pela equipe pesquisadora.

Como responsabilidade ética, assegurou-se que os atores fossem informados da realização da pesquisa e de seus objetivos e métodos antes que esta se iniciasse. O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

 

Discussão dos resultados

O funcionamento da atenção do ator nas apresentações da peça

Quando se discute a respeito da atenção, comumente nos remetemos a um dispositivo cognitivo complexo de coleta de dados ou um mecanismo de focalização com a finalidade de uma representação do ambiente, suas formas e seus objetos (KASTRUP, 2007b). Contudo, aqui se adota o termo atenção de maneira diferenciada, na qual a atenção se configura como um dispositivo de invenção, a partir do qual se dá um "reconhecimento atento", como nos traz Bergson (2006). Tal concepção aproxima-se da ideia de "atenção flutuante" que Freud (1969) descrevia como principal mecanismo da terapia por parte do analista. A proposta que se faz com o dispositivo de invenção é de um esvaziamento, um voo e um pouso, etapas em que a atenção se encontra aberta para o acontecimento, sem foco, como numa concentração voando à deriva e à espera de um pouso, um resgate de algo percebido. Esse pouso seria não como uma parada do momento, mas como uma parada no momento experienciado. O voo e o pouso dão ao pensamento certo movimento, no qual a atenção possui um papel primordial: uma atenção sem focalização, aberta, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado, desdobrando-se na qualidade do encontro (KASTRUP, 2007b).

Dessa maneira, vê-se que a detecção e apreensão dos sinais do público, assim como alguns "erros" de interpretação por parte do ator principal ou outros atores, são informações que vêm inesperadamente. O ator, no momento da apresentação, encontra-se em uma atenção desfocada, despretensiosa de informações, aberta a conteúdos a serem acolhidos, que favorecerá uma invenção por parte do ator/personagem na experiência, uma reinvenção de sua ação no mundo e continuidade de uma construção da personagem em consonância com o público.

Um espaço, um homem que ocupa esse espaço e outro homem que os observa

Como todo ser no mundo, somos, a cada momento, constituídos por nossas relações. E assim também se mostraram os atores com suas personagens e seu contato com a plateia. Nas apresentações, o processo de encenação é como uma dança, na qual o público é o condutor que dará pistas para o ator em cena sobre como continuar sua atuação: o que minimizar, o que enfatizar para que a relação entre plateia e atores seja mantida e tenha qualidade. Dessa forma, fica evidente a influência do público na encenação teatral, desde a montagem da peça até as apresentações públicas. Pode-se dizer, então, que se encontra no processo teatral a relação entre um espaço, um homem que ocupa esse espaço e outro homem que os observa (PEIXOTO, 2003).

Um homem que ocupa o espaço

Processo teatral: alguns pensam que o ator está pronto para encenar a personagem, mas muitos atores acham que o ator constrói a personagem a todo o momento em que o vive. O diretor disse que o ator e sua concepção pessoal da personagem (sua performance e sua experiência, que obteve a todo o momento como ator) influenciam em seu processo de interpretação. Ele traz de suas experiências mecanismos, trejeitos e emoções já experienciadas e as transforma a cada momento em que está contracenando (Diário de campo, 28.7. 2009).

Ao ser encenada, a personagem se forma em torno de um enredo (o texto), que é o que o ator deseja passar para outro alguém e deseja que este alguém acredite nele. Contudo, não se espera que ele acredite totalmente, mas que se deixe encantar. A ideia colocada no teatro tradicionalmente era a de que aquela personagem que está ali sendo encenada é dotada de uma falsidade, de uma fantasia, que, no decorrer da peça, se dissolve naquele que lhe dá a palavra, exorcizando-se no momento em que a cortina se abre para os cumprimentos finais. Esse pensamento se propagou a partir dos gregos na Antiguidade Clássica quando tiravam suas máscaras após as apresentações de suas tragédias: eles queriam que sua plateia entendesse que o que eles viram não era de todo verdade.

O ato de "representar", do "interpretar algo dado", é uma noção típica do público teatral leigo ou daqueles que não estudam as artes cênicas. Para os atores entrevistados, esses termos lhes parecem vagos ou pobres em relação ao trabalho que eles se propõem a fazer. Para eles, não há o "representar" propriamente dito, pois não há um molde que eles têm que seguir para dar vida à personagem. Há a encenação, sempre dotada do inesperado e do ato criativo de reinventar-se a cada apresentação e a cada peça teatral. As falas presentes nos textos teatrais criam-se de maneira diferente de ser dita em dias diferentes do espetáculo. Assim, a cada momento marcante, a cada apresentação, a cada novo palco teatral, veem-se ator e personagem serem reinventados.

Dessa maneira, quem então ocupa o espaço: o ator ou a personagem? Essa é a pergunta que nunca se cala ao pensarmos o processo teatral. Seria o ator, ao encenar, ao mesmo tempo ele mesmo e aquilo a que ele se propõe? Afinal, a personagem usa de seu corpo para ganhar vida? Unanimemente foi verificado que, para os atores colaboradores da pesquisa, não existem aí dicotomias, pois ator e personagem, além de não estarem separados, também não são entidades estáticas. Não se trata, então, de polos opostos e distantes, mas sim de organizações abertas uma a outra, com fluxos contínuos de elementos de naturezas diversas. Dessa forma, as organizações (ator e personagem) são compostas nesse movimento constante de troca de fluxos relativos ao modo de falar, modo de andar, modo de pensar, modo de sentir etc. de uma e de outra.

O entendimento dos atores acerca do processo de formação de si mesmos e de suas personagens remete à ideia de inventividade subjetiva proposta por Winnicott (2005), para quem há conexão entre a vida e a criatividade. A partir do pensamento winnicottiano de que "o indivíduo é desde o início criativo", Ortega (2007, p. 2) traz a compreensão de que a criatividade é sempre ação criativa, impulso agressivo-criativo, que se encontra no respirar, no andar, no falar etc. E essa criação não é só parte do sujeito que pratica a ação, mas perpassa o indivíduo e o mundo com o qual ele se relaciona. Winnicott (2005) considera essa construção subjetiva exteriorizada, pois a dimensão analítica de toda ação humana se dá na relação do sujeito com o meio em que ele se encontra (uma espécie de acoplamento entre o indivíduo e seu meio).

Quando se revê a relação indivíduo-meio, entende-se a importância da concepção de acoplamento estrutural de Maturana e Varela (2002) para a tentativa de produção de um novo paradigma nas ciências cognitivas. Os biólogos chilenos apresentam a ideia de que o indivíduo se configura a partir de sua relação com o ambiente, ou seja, em razão de relações intersistêmicas duradoras. Entende-se aqui "duradouras" não de acordo com o tempo cronológico, linear, mas como um passado que coexiste no presente, como experiência psíquica permanente e inventiva (BERGSON, 2006).

É nesse caráter inventivo, corporal, que o homem se constrói. O sujeito possui em si todo potencial criativo e ativo de se transformar a todo o momento. Isso só pode acontecer por meio de seu corpo, isto é, todo o potencial reside em seu corpo. Dessa maneira, a cada momento o ser humano está em mudança e é nessa mudança que suas experiências passadas e atuais configuram sua experiência subjetiva. Não se trata aqui de uma construção de identidade, ou de um "eu" preestabelecido, mas de um eu que a cada relação se transforma, seja no teatro, como se discute aqui, seja em seu cotidiano, como nos propõe a política cognitiva inventiva (MATURANA; VARELA, 2002; KASTRUP, 2005, 2007a, 2007b).

Outro homem que observa

A plateia é nosso resultado. A gente precisa chegar nela. A gente não pode fazer teatro pra ninguém ir. Então, por exemplo, se eu faço uma peça, eu tenho que pensar na sensibilidade, no conforto, num monte de coisa, mas principalmente pra que plateia eu estou fazendo. Isso se chama público alvo (Diário de campo, 29.11.2009).

De acordo com os atores colaboradores do estudo, uma apresentação de teatro se distingue das encenações feitas nos ensaios primordialmente pelo fato de ser apresentada na íntegra para alguém, independentemente do número de pessoas. Esse alguém possui o controle do ritmo da apresentação, pois é a relação mantida durante o espetáculo entre personagens e público que une ativa ou passivamente aquele que ocupa o espaço e outro homem que o observa, configurando todo o decorrer da apresentação.

O teatro não possui uma origem comprovada, porém se sabe que até mesmo os primitivos e os gregos helênicos da Antiguidade Clássica usavam o espaço lúdico de seus rituais para trazer à materialidade seus deuses, seja louvando-os, seja imitando-os (ROSENFELD, 2009). Todos os jogos teatrais da época baseavam-se na premissa do "ser outro", seja tomando lugar dos animais que caçavam, seja representando essa caça, seja trazendo à encenação seus medos e seus anseios. Contudo, o teatro nasce no instante em que o encenador, fazendo uso de sua máscara ao interpretar sua persona, desprende-se dela diante do espectador, deixando todos (ator e público) conscientes de que o que foi visto e experienciado foi uma "simulação" - aceita-se, assim, que o deus ali encenado era o intérprete disfarçado.

Dessa forma, Peixoto (2003, p. 13), grande diretor teatral do século XX, ao pensar a relação personagem-plateia como "a comunhão de um público com um espetáculo vivo", sente a insuficiência da definição do "representar". Para o dramaturgo, é necessária a "consciência de uma cumplicidade" para que haja a "encenação", ou seja, a falsa proposta de um real.

A história das artes cênicas é marcada por muitas épocas, desde os rituais dionisíacos e apolonísticos aos dias atuais com as performances teatrais. Muitos teóricos e mais tarde muitos diretores fizeram de seus princípios de dramaturgia grandes escolas teatrais, tais como: as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, as comédias de Aristófanes e Menandro, o teatro renascentista e elisabetano de William Shakespeare, o teatro naturalista de Stanislavski, o realismo de Bertolt Brecht etc. (ROSENFELD, 2009).

Dessa forma, os diferentes tipos de teatro mudam as formas de criação das personagens durante os ensaios, demandam espaços físicos diferentes para apresentações de suas peças e principalmente mudam a relação do ator com a plateia. O teatro de arena, como era organizado na Antiguidade Clássica, fazia da encenação simplesmente conexão com o público, enquanto o teatro italiano (e sua quarta parede com uma janela para o horizonte) preza por certo distanciamento, tanto corpóreo quanto léxico com a plateia que assiste à apresentação.

A 4a parede está aqui. Então a gente não pode ter contato visual, vocês não estão aí e vocês fingem que a gente não está ali. Vocês estão vendo uma recriação da realidade. Eu acho isso um absurdo! Como é o caso da televisão. Como é a TV, exatamente. A TV é a 4a parede (Diário de campo, 30.5.2010).

Algumas escolas teatrais retratam essa forma de se relacionar com o público que está assistindo. A teoria da quarta parede, proposta pelo teatro italiano e sustentada pelo teatro realista de Bertolt Brecht, considera uma quarta parede que limita o contato do público com os atores em cena. Dessa maneira, o ator recebe as influências do público para seu processo de atuação, porém ele não atua para o público, não o olha nos olhos: "E a posição fixa do espectador, no seu face-a-face com o espetáculo, reproduz exatamente a atitude de quem contempla uma pintura" (ROUBINE, 1998, p. 82).

A arquitetura do teatro italiano proveniente de meados do século XIX marca ainda hoje a estrutura física utilizada pelas casas de espetáculos contemporâneas. A visão da plateia deveria ser frontal e distanciada do palco, possuindo esse formato quadrangular, portando três paredes e a quarta parede seria aquela imaginária, que faz com que o ator seja como a pintura: observado por duas dimensões como o que nos permite a moldura do quadro.

Ainda que a quarta parede tenha sido considerada pelo diretor na peça analisada pelo estudo em questão, percebe-se, de todo modo, a grande influência que o público exerce durante o processo de encenação, principalmente quando se trata de personagens cômicas. Quando a relação dos atores com a plateia era fraca, muitas falas das personagens cômicas não surtiam efeito, desconcertando o ator e fazendo com que ele buscasse a conexão necessária com o público no momento da encenação.

Assim, os atores pesquisados consideram que existe "plateia com talento e sem talento". A plateia com talento é aquela que está conectada ao ator, que está junto dele no momento da encenação, que ri em momentos feitos para rir, emociona-se nos momentos feitos para se emocionar, fluindo o encontro com a apresentação vista. O público sem talento é justamente o contrário: não fica firmada a relação atores-plateia e todos os momentos feitos para a plateia (momentos cômicos, emotivos, românticos etc.) "passam em branco", fazendo com que, a todo instante, os atores tentem buscar a "conexão" necessária.

Como num acoplamento contínuo, plateia e atores se configuram e se reconfiguram no encontro (apresentação pública), posto que cada um necessita do outro para que ocorra essa mudança de configuração e que cada mutação implica também uma transformação naquele com que se relaciona.

O número de pessoas na plateia é independente de uma boa apresentação, mas, às vezes, quanto menor o número [da plateia], pior a apresentação. Ator, ele mede por aplauso. Ele é melhor quando sabe que vai ser mais aplaudido. Quanto mais pessoas o vendo, melhor ele vai ficar. E melhor ele vai se exibir. [...] se tem 10 na plateia, ele vai fazer o quê? Ele vai olhar no olho. Teria de olhar, independente se o diretor falou "não olha" (Diário de campo, 30.5.2010).

O espaço

Primeiro tem o texto, depois tem o ator. Eles têm que se juntar para formar a cena. E quando você pensa nesses dois separados, você pensa: será que ele dá conta de fazer da maneira que eu pensei? (Diário de campo, 30.5.2010).

No início dos ensaios de uma peça teatral, o grupo de atores e o diretor se reúnem para estudar o texto proposto para as apresentações. O diretor, por sua vez, já possui, a partir de sua experiência com o grupo de atores, ferramentas que o ajudarão a escalar determinado ator para determinada personagem. Logo após esse processo, com a escalação já decidida, os atores começam o estudo para que possam se aprofundar em suas personagens.

Contudo, o que faz um ensaio diferir de uma apresentação teatral? Pode-se considerar que seria "um outro" que observa o homem que ocupa o espaço, uma liberdade de criação e experimentação do ator com sua personagem ou o espaço em si? Em outras palavras, os ensaios são diferentes das apresentações pela ausência de uma plateia, pela possibilidade de errar e testar antes do início das apresentações ou pelo fato de que o espaço em que os ensaios ocorrem é diferente dos espaços das apresentações?

A peça analisada fora ensaiada em um espaço adaptado para o uso dos atores, mas não chegava a ser um espaço ideal para um melhor aproveitamento do grupo. Considera-se esse fato um grande diferencial entre o processo de criação e o de recriação da personagem durante a montagem de uma peça, uma vez que, nos teatros, o tamanho do palco não é o mesmo do espaço utilizado para os ensaios, a acústica para a projeção da voz é completamente diferente e, ainda, não são usados os recursos de som e iluminação no local do ensaio (visto que lá não existem). Tais fatos podem dificultar o esquadrinhamento do palco e os pontos determinados para cada personagem se situar.

Segundo os atores, durante os ensaios, eles possuem uma liberdade muito maior de encenação, passível de erros e correções em todos os momentos. São feitos alongamentos, aquecimentos de voz e de percepção corporal. Esses aquecimentos são dispositivos primordiais para um melhor aproveitamento do corpo dos atores e uma prevenção de danos nas cordas vocais do grupo.

Alguns pontos interessantes foram observados a respeito das diferenças de encenação nos diferentes teatros da cidade de Vitória (Teatro do Sesi, Teatro Galpão e Teatro Carlos Gomes). Na restituição dos resultados obtidos na pesquisa, foi percebido que as impressões da equipe pesquisadora não corresponderam à percepção dos atores em relação às suas apresentações. Os atores afirmaram que estavam mais nervosos nas apresentações no Teatro Carlos Gomes por motivos internos, e estavam mais "tranquilos" nas apresentações no Teatro Galpão por já terem solucionado o que os afligia. Dessa forma, os atores consideraram as apresentações no Carlos Gomes piores do que as apresentações realizadas mais tarde no Galpão, diferentemente do que a equipe percebeu.

Algo interessantemente ressaltado nas observações durante o contato com grupo que cabe notificar, trata-se da intervenção do diretor. O principal desafio quando se está ensaiando (e o diretor sabe disso) é a consciência de que o diretor não poderá corrigir seus atores no momento da apresentação, restando a ele apenas observar o trabalho e tentar orientar no que for preciso no backstage. Durante os ensaios, momentos nos quais o diretor propõe que os atores refaçam as cenas com trejeitos diferentes, com posturas diferentes. A tentativa é sempre forçar, por meio de uma tensão, o despertar de uma ação nova por parte do ator. Uma espécie de "implicância", provocações pensadas para estimular nos atores a criação inventiva de si mesmos e de suas performances: um fenômeno que se pode chamar de breakdown, "uma espécie de quebra ou rachadura na continuidade cognitiva. Quebra de continuidade que, paradoxalmente, assegura o fluir da conduta" (KASTRUP, 2007a, p. 150).

 

Considerações finais

Buscou-se discutir, neste artigo, as percepções dos atores a respeito dos ensaios, a relação deles com a plateia e o desenvolvimento e as transformações das personagens nas apresentações de uma peça teatral.

A partir da aproximação com um grupo teatral, foi possível uma análise do processo teatral e dos processos de atenção e aprendizagem envolvidos na encenação: como os atores tornam-se conscientes daquilo que os habitava de modo não consciente. Entende-se que cada ator, nos ensaios da peça e nas apresentações da peça, coloca em ato o devir-consciente e empreende uma aprendizagem sobre tal processo. É também por meio do devir-consciente, nesse dar-se conta de algo, que os atores criam e reorganizam suas personagens, bem como recriam a si mesmos em uma cadência entre eles próprios, o público e o espaço que utilizam para ensaiar e encenar (elementos investigados na pesquisa).

Neste artigo, voltou-se a atenção para a experiência humana e seu caráter que lhe é mais próprio, a invenção e reinvenção de sujeitos. A partir da pesquisa de campo, pode-se concluir que as artes cênicas podem ser disparadoras de uma invenção, de reconfiguração dos sujeitos em suas experiências subjetivas.

Acompanhar os ensaios e apresentações teatrais do Grupo Teatro Empório favoreceu a utilização de ferramentas conceituais que possibilitam novos olhares sobre os processos de formação de sujeitos e permitem que a invenção de si seja colocada em evidência em função dos processos, do entre, do meio.

Dessa maneira, o teatro se apresenta como um dispositivo potencialmente útil em processos de formação humana, sejam eles pedagógicos, formativos ou terapêuticos. Onde quer que se faça urgente a atuação de profissionais como estrategistas da vida, em que a atuação tenha o propósito da ação (PEREIRA; DIOGO, 2009) e da invenção, o teatro faz-se como um instrumento que nos permite uma tomada de consciência a respeito do estar no mundo, de nossas relações e como nos dar conta daquilo que faz de nós o que somos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Contato
Gilead Marchezi Tavares
e-mail: paulogilead@ig.com.br

Tramitação
Recebido em outubro de 2010
Aceito em maio de 2011