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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.13 no.3 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGO DE REVISÃO TEÓRICA

 

A condição underachievement em superdotação: definição e características

 

The underachievement condition in giftedness: definition and characteristics

 

La condición Underachievement en superdotación: definición y características

 

 

Vanessa Terezinha Alves Tentes Ourofino; Denise Souza Fleith

Universidade de Brasília, Brasília - DF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A baixa performance acadêmica em indivíduos superdotados constitui um fenômeno complexo observado e relatado por professores, especialistas e pesquisadores da área há mais de três décadas, muito embora não se tenha uma definição consensual que agregue os vários elementos que compõem essa realidade aparentemente antagônica. A definição de baixa performance, underachievement em inglês, enfatiza a discrepância entre o potencial revelado (habilidade) e a performance (realização), particularmente no contexto escolar. É objetivo central deste artigo a apresentação de contribuições teóricas e empíricas que fundamentam o estudo do fenômeno da superdotação na perspectiva das populações especiais, nomeadamente a de superdotados underachievers. Destacam-se alguns elementos relacionados à definição de superdotação, e características de superdotados, estudantes da educação básica, são elencadas. Em seguida, apresentam-se definições de underachievement e características do superdotado underachiever, bem como delineiam-se alguns fatores associados a essa condição.

Palavras-chave: desenvolvimento humano; rendimento escolar; superdotação; altas habilidades; desempenho acadêmico.


ABSTRACT

The low academic performance in gifted individuals is a complex phenomenon that has been observed and reported by teachers, experts and researchers for over three decades. Although this definition does not meet a full consensus, it aggregates all the elements that make up this apparently antagonistic reality. The definition of low performance, underachievement in English, emphasizes the discrepancy between the potential (skills) and the performance (achievement), particularly within the school context. The main objective of this article is to present theoretical and empirical contributions that support the study of the phenomenon of giftedness under the perspective of special people, namely gifted underachievers. Some elements related to the concept of giftedness are highlighted, and characteristics of gifted students, from Elementary and Secondary school level, are listed. Next, definitions of underachievement and characteristics of gifted underachiever are presented, as well as some related factors associated with this condition are outlined.

Keywords: human development; academic achievement; giftedness; high abilities; academic performance.


RESUMEN

La baja performance académica en individuos superdotados constituye un fenómeno complejo observado y relatado por profesores, especialistas e investigadores de la área hace más de tres décadas, aunque no se tenga una definición consensual que agregue los varios elementos que componen esa realidad aparentemente antagónica. La definición de baja performance, underachievement en inglés, enfatiza la discrepancia entre el potencial revelado (habilidad) y la performance (realización) particularmente en el contexto escolar. Es objetivo central de este trabajo, la presentación de contribuciones teóricas y empíricas que fundamentan el estudio del fenómeno de la superdotación en la perspectiva de las poblaciones especiales, nombradamente la de superdotados underachievers. Algunos elementos relacionados a la definición de superdotación son destacados y características del individuo superdotado son enumeradas. A continuación son presentadas las definiciones de underachievement y características del superdotado underachiever, y delineados algunos factores asociados a esta condición.

Palabras clave: desarrollo humano; rendimiento escolar; superdotación; altas capacidades; rendimiento académico.


 

 

Introdução

Historicamente, o estudante com potencial superior tem sido reconhecido por demonstrar facilidade de aprendizagem e apresentar rendimento acadêmico bastante satisfatório, geralmente acima da expectativa para o seu grupo etário e série. Contudo, em alguns casos, o superdotado não consegue estabelecer uma relação harmoniosa entre seu potencial e sua performance escolar. Essa condição, denominada em inglês de underachievement, é descrita e investigada nos estudos de subpopulações especiais da superdotação e constitui um segmento de pesquisa próspero, que tem por desafio responder aos enigmas que se formam em torno desse fenômeno complexo e paradoxal. Especialistas da área consideram essa condição um dos maiores problemas a serem enfrentados na educação de superdotados (MCCOACH; SIEGLE, 2003; MONTGOMERY, 2009; REIS; MCCOACH, 2000; RENZULLI; REID; GUBBINS, 1992).

A definição de underachievement enfatiza a discrepância entre o potencial revelado (habilidade) e a performance (realização) de indivíduos superdotados diante das variadas situações que a vida lhes oferece, seja na resolução de problemas, na constituição e no alcance de metas pessoais, familiares e profissionais ou mesmo em relação à motivação para atingir sua autorrealização. O descompasso entre os resultados obtidos de performance e de potencial é considerado como preditor da condição underachievement entre indivíduos superdotados e suscita muitos questionamentos e inevitáveis frustrações por parte dos pais, professores e profissionais envolvidos com essa temática. As pesquisas sobre superdotados underachievers ressaltam a noção de que esse fenômeno é multidimensional e, portanto, não seria apenas um atributo do indivíduo, mas sim resultado da interação deste com seu meio (OUROFINO, 2011; REIS; MCCOACH, 2000; MONTGOMERY, 2003).

Montgomery (2009) e Rimm (2003) enfatizam que, no processo de desenvolvimento da superdotação, os indivíduos se sentem pressionados a demonstrar altos resultados em suas atividades acadêmicas, bem como deparam com diversos obstáculos que interferem na qualidade de suas experiências de aprendizagem. Entre os fatores que parecem influenciar negativamente esse processo, estão aqueles vinculados tanto ao próprio indivíduo, denominados internos ou intrínsecos, como motivação, autoconceito e personalidade, quanto os fatores externos ou extrínsecos, associados às práticas educativas inadequadas vivenciadas principalmente no contexto da família e da escola (BETTS; NEIHART, 2004; MCCOACH; SIEGLE, 2003; MONTGOMERY, 2009; REIS; MCCOACH, 2000; RIMM, 2003).

É objetivo central deste artigo a apresentação de contribuições teóricas e empíricas que fundamentam o estudo do fenômeno da superdotação na perspectiva das populações especiais, nomeadamente a de superdotados underachievers. Inicialmente são destacados alguns elementos relacionados à definição de superdotação e elencadas as características do indivíduo superdotado, para em seguida apresentar as definições de underachievement, caracterizar o superdotado underachiever e delinear alguns fatores associados presentes nessa condição.

O indivíduo superdotado e suas características

As diferentes sociedades e culturas estabelecem um ideal de ser humano e delineiam suas concepções sobre indivíduo inteligente, brilhante ou especial, com base em aspectos que são valorizados em determinado tempo e contexto. Cada cultura elege seus detentores de saber e destaca características individuais importantes para a sobrevivência da própria sociedade, entendendo os indivíduos mais capazes como guardiões de atitudes valiosas e de ações produtivas, que conduzirão ao desenvolvimento e ao sucesso daquela cultura (OUROFINO, 2005; SABATELLA, 2005). Na cultura ocidental, não primitiva, diversas denominações são utilizadas para se referir aos indivíduos altamente inteligentes e criativos. As concepções teóricas, os conceitos e os enfoques metodológicos parecem justificar os vários termos encontrados na literatura para designar o indivíduo superdotado. A questão terminológica em superdotação é um grande desafio, e a convergência de uma terminologia transcultural desprendida de um viés idiomático ainda não se tornou possível (FLEITH, 2009; OUROFINO, 2005; SABATELLA, 2005).

Os termos mais comuns são:

Superdotado: para identificar aqueles com alta capacidade e que se colocam na faixa superior de desempenho.

Bem-dotado ou mais capaz: para se dirigir usualmente aos que apresentam desempenho acima da média em diversas áreas e atividades.

Talentoso: para denominar aqueles que possuem habilidades artísticas, psicomotoras ou uma habilidade específica altamente desenvolvida.

Alto QI e inteligência superior: para evidenciar aqueles que se destacam em testes psicométricos.

Excepcional: para descrever o indivíduo que exibe comportamento superior e diferenciado em uma área.

Crianças precoces: expressão destinada a nomear crianças que demonstram habilidades específicas, prematuramente desenvolvidas em qualquer área de conhecimento.

Crianças prodígios: expressão usada para se referir às crianças que, em idade precoce, exibem nível avançado de habilidades ou domínio em algum campo específico (ALENCAR; FLEITH, 2001; FLEITH, 2009).

No âmbito do sistema educacional brasileiro, cujas determinações obedecem às Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, o superdotado é reconhecido como aquele aluno que apresenta "grande facilidade de aprendizagem que o leve a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes" (BRASIL, 2001, art. 5o, III). Na atual Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, no que tange às altas habilidades/superdotação, o superdotado é definido como aquele que demonstra

[...] potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes, além de apresentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e na realização de tarefas em áreas de seu interesse (BRASIL, 2008, p. 15).

Silverman (2002) caracteriza o superdotado a partir da análise do desenvolvimento assincrônico entre habilidades intelectuais, psicomotoras e características afetivas, relacionadas à qualidade e expressão das ações e dos conhecimentos evidenciados pelo indivíduo, em detrimento de componentes do desenvolvimento cronológico. A falta de sincronia se expressa por uma infinidade de habilidades e competências que identificam o modo de ser do superdotado. A experiência interna vivenciada pelo superdotado, ao combinar as altas habilidades cognitivas com as características afetivas ainda imaturas, pode ser traduzida por evolução não linear dos vários aspectos do desenvolvimento, criando um espectro de sentimentos e sensações muito distinto qualitativamente do que é vivenciado por seus pares.

Renzulli et al. (2000), ao elaborarem uma escala para avaliar as características de estudantes da educação básica com desempenho superior, propuseram quatro fatores que caracterizam e identificam o indivíduo superdotado. O primeiro deles, o fator intelectual, refere-se às habilidades de lidar com abstrações, de perceber relações de causa e efeito, de fazer observações perspicazes, de organizar uma grande bagagem de informações sobre uma variedade de tópicos e de fazer generalizações por meio de raciocínio analítico. O segundo, criatividade, relaciona-se a senso de humor, habilidade de pensamento imaginativo, atitude não conformista, pensamento divergente, espírito de aventura, disposição para correr riscos, habilidade para produzir respostas incomuns e habilidade de gerar um grande número de ideias ou soluções para problemas ou questões. O terceiro fator é a motivação, descrita como persistência para atingir um objetivo, envolvimento intenso quando se dedica a certos tópicos ou problemas, obstinação em procurar informações sobre tópicos de seu interesse, compromisso com projetos de longa duração, habilidade de se concentrar intencionalmente, preferência por situações nas quais possa ter responsabilidade pessoal sobre o produto de seus esforços. E, por fim, o quarto fator, a liderança, caracterizada como tendência a ser respeitado por seus pares e a dirigir as atividades de seu contexto demonstrando autoconfiança, comportamento cooperativo, habilidade de articular ideias e senso aguçado de responsabilidade. A solução de quatro fatores explica 71% da variância, e o coeficiente alfa de fidedignidade do instrumento é de 0,97.

Alguns pesquisadores, ao caracterizarem o indivíduo superdotado, dirigem suas atenções para aspectos relacionados ao ajustamento emocional e desenvolvimento social, destacando que cognição avançada não significa desenvolvimento afetivo maduro (NEIHART et al., 2002; SILVERMAN, 2002). Para Sabatella (2005), os superdotados podem viver anonimamente no contexto social, embora sejam nitidamente diferentes na maneira de agir, aprender, raciocinar e reagir ao mundo, o que não implica serem melhores ou piores que as outras pessoas.

Alencar e Fleith (2001) apontam um conjunto de características cognitivas e afetivas frequentemente citadas na literatura acerca de alunos superdotados, enfatizando que eles não exibem um perfil único e suas competências variam em diversas áreas do saber humano. As pesquisadoras esclarecem que, embora esses alunos se destaquem por demonstrarem maior maturidade física, social e emocional, podem, em alguns casos, manifestar um descompasso no desenvolvimento. Algumas características de pessoas superdotadas sugeridas pelas autoras são: habilidade de gerar ideias originais, grande bagagem de informações sobre diferentes temas, preferência pelo trabalho independente, habilidades de leitura e escrita em tenra idade, curiosidade, pensamento abstrato e analítico, interesses diversos, concentração, boa memória, grande imaginação, preferência por ideias complexas e tendência a ocupar o tempo de forma produtiva.

Ourofino e Guimarães (2007) observam que as características de sensibilidade afetivas que envolvem o superdotado, principalmente os mais jovens, representam uma abertura aos processos de vulnerabilidade emocional, facilitada por alta capacidade, acúmulo de conhecimento e percepção aguçada de elementos pessoais e do ambiente. Essas autoras destacam que os superdotados estão sempre acima da média em termos de bagagem de conhecimento, são definidamente mais curiosos, perceptivos e apaixonados. Entretanto, mostram-se descontentes, frustrados, ansiosos e, por vezes, menos resilientes. Estão sempre desafiando algumas situações contraditórias que a vida lhes impõe por perceberem tudo com mais amplitude ante o desenvolvimento precoce de componentes da ética e da moral.

Betts e Neihart (2004), a partir de constatações empíricas e das múltiplas características relatadas na literatura da área, descrevem o perfil heterogêneo dos indivíduos superdotados. Esses autores apresentam dois grandes grupos de perfis associados ao contexto escolar. O primeiro agrega os indivíduos superdotados que exibem realização acadêmica compatível com alto potencial característico de sua condição. O segundo reúne os superdotados que encontram obstáculos no transcurso de seu desenvolvimento. Os grupos de superdotados, seus respectivos perfis e suas características são detalhados no Quadro 1.

 

 

Vale ressaltar que os perfis são tão distintos que desafiam a compreensão do fenômeno superdotação em sua essência. Os indivíduos superdotados descritos no Quadro 1 como pertencentes ao grupo II exibem múltiplas facetas paradoxais que remetem à necessidade de grandes investimentos em seu processo de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social, e, geralmente, são descritos na literatura como superdotados underachievers.

 

A condição underachievement em superdotação

Alguns desafios estão presentes nos estudos sobre a condição de baixa performance acadêmica ou underachievement: conceber o indivíduo superdotado, enxergar o seu potencial e ao mesmo tempo reconhecer suas limitações. Emerge dos trabalhos de pesquisa revisados para o presente estudo uma infinidade de características de superdotados underachievers. Como características positivas são relatadas a capacidade de inventar e criar com originalidade quando motivados, perseverança em tópicos de interesse, rapidez para aprender conceitos novos, engenhosidade para resolver problemas e desafios, questionamentos aprofundados sobre vários assuntos, perspicácia sobre pessoas e motivações. Essas características são similares às dos superdotados de modo geral. No entanto, os underachievers demonstram dificuldades para manter qualitativamente essas características e utilizá-las de forma eficaz em favor de sua produtividade, autorrealização e de seu sucesso acadêmico. Como indicadores de baixa performance acadêmica, destacam-se o tédio, os conflitos constantes com pares e professores, a baixa autoestima, a incapacidade para generalizar e aplicar seus conhecimentos e o baixo rendimento escolar (BASLANTI; MCCOACH, 2006; BAUM; OLENCHACK; OWEN, 1998; MCCOACH; SIEGLE, 2003; MONTGOMERY, 2003, 2009; REIS; MCCOACH, 2000; RIMM, 2003).

É um grande desafio estabelecer uma definição viável do termo underachievement, bem como relacioná-la às implicações das características estabelecidas em diversos modelos de identificação. A falta de uma definição adequada compromete a distinção entre o aluno regular, que não atingiu seus objetivos acadêmicos por fatores associados a dificuldades de aprendizagem, de comportamento e por limitações cognitivas diante do currículo escolar, e aquele aluno superdotado, que demonstra produtividade acadêmica incompatível com seu potencial (BETHEA, 2007; CLEMONS, 2008; MCCOACH; SIEGLE, 2003; MONTGOMERY, 2009; REIS; MCCOACH, 2000).

O conceito de baixa performance de superdotados, embora amplamente debatido na literatura, constitui-se em uma formulação frágil e vagamente definida, uma vez que os estudos empíricos são restritos e a definição corrente está calcada em poucos estudos de casos e experiências de intervenção. Dowdall e Colangelo (1982), por exemplo, defendem que, dependendo do padrão avaliativo, ou seja, dos modelos adotados na identificação, o superdotado pode ou não ser inserido na condição underachievement. Para confirmar suas hipóteses, eles utilizaram a descrição de um caso de estudante superdotado underachiever para demonstrar a fragilidade terminológica e conceitual nas constatações desse fenômeno. Os autores submetiam o relato de comportamentos e característica do aluno a diferentes profissionais para que emitissem pareceres. Os resultados demonstraram que a percepção dos profissionais e os critérios adotados na avaliação influenciaram a identificação do aluno superdotado, de suas características e da definição do fenômeno. Alguns profissionais não consideraram o aluno descrito como superdotado. Tal estudo foi bastante pertinente e se tornou referência na área por levantar questões acerca da identificação de superdotação e underachievement e por sinalizar a possibilidade de equívocos nesse processo. Corroborando as proposições de Dowdall e Colangelo (1982), o pesquisador Schultz (2002) se refere à variedade de definições sobre underachievement que ao longo dos anos foram se estruturando, na tentativa de esclarecer essa condição. Juntos esses autores apontaram em torno de 15 diferentes definições e alertaram que essa diversidade dificulta o entendimento dos comportamentos e das características associados ao fenômeno.

Também Reis e McCoach (2000) realizaram uma ampla revisão de literatura sobre o tema e identificaram 16 diferentes definições de underachievement, as quais foram organizadas em quatro categorias conceituais. A primeira define a baixa performance como a discrepância entre potencial/habilidade e performance/realização. A segunda categoria enfatiza o potencial a partir dos resultados superiores e altos escores alcançados nos testes padronizados. A terceira definição abarca as concepções de que a baixa performanceé resultante da discrepância entre uma realização já demonstrada e esperada e a realização de fato evidenciada no momento atual. A quarta e última categoria se refere à baixa performance situacional, geralmente de caráter temporário, em decorrência de circunstâncias que interferem no desenvolvimento do indivíduo.

A definição ancorada na primeira e terceira categorias descritas anteriormente tem se mostrado viável e recorrente em estudos contemporâneos (BASLANTI; MCCOACH, 2006; MCCOACH; SIEGLE, 2003; REIS; MCCOACH, 2002). Nessa perspectiva, é considerado superdotado underachiever o indivíduo que: exibir alto potencial cognitivo em testes padronizados; demonstrar baixa performance acadêmica, ou seja, desempenho incompatível com o potencial revelado e rendimento acadêmico inferior; apresentar trajetória escolar aquém das expectativas para avanço curricular, ano/série; e ainda ser descrito por seus professores e mentores como superdotado com baixo desempenho acadêmico.

Montgomery (2009) defende que a expressão superdotado underachievers só deverá ser empregada quando comprovadamente o indivíduo apresentar discrepâncias reais entre o potencial estimado e a produtividade atual. A autora relata que a expressão é geralmente utilizada para se referir às dificuldades comportamentais, à hiperatividade, à atenção reduzida e à falta de perseverança para completar tarefas, denunciando uma forma limitada de compreensão desse complexo fenômeno.

O superdotado underachiever é descrito por Rimm (2003) como um indivíduo sensível às limitações impostas pelo contexto social, cujas condições inadequadas interferem negativamente no desenvolvimento de seus talentos. Por esse motivo, essa autora considera que a característica mais marcante do underachiever é a baixa autoestima. Essa característica controla a vida do indivíduo, impedindo a realização e interferindo na qualidade dos resultados obtidos. Rimm (2003) concebe o grupo de alunos superdotados em duas perspectivas: os que são produtivos, adaptados e que demonstram satisfação com sua condição de superdotado, e os underachievers, que demonstram grande insatisfação eles mesmos e com o ambiente no qual estão inseridos.

As diferenças cogitadas por Rimm (2003) demonstram que o grupo de underachievers exibe características diversificadas associadas tanto a um estado psicológico de conformação quanto de não conformação diante da baixa performance acadêmica. Para cada um desses estados, podem-se agregar atitudes mais passivas ou mais dominadoras, o que dependerá da constituição pessoal e personológica de cada indivíduo. Assim, os que revelam características de conformação dependente à condição underachievement tendem a reagir de modo mais submisso em relação aos pais, professores e pares, demonstrando passividade, perfeccionismo e dificuldade de atenção. No grupo de underachievers conformados dominadores, há aqueles que reagem com atitudes impositivas, revelando hostilidade nas relações sociais e necessidade de imprimir uma falsa aparência de bom aluno. Já os underachievers não conformados dependentes à condição de baixa performance revelam um perfil mais retraído, com timidez e tristeza excessivas, aparência física frágil, que evolui em um quadro sugestivo de estado depressivo. Entre os underachievers não conformados, é possível encontrar também alunos que possuem perfil mais dominador e são manipulativos, com grande excitabilidade psicomotora, rebeldes, tirânicos e ameaçadores. No entanto, juntam-se ainda a esse grupo os indivíduos que se expressam por pensamento divergente.

Alguns autores relacionam a presença de condições comportamentais e cognitivas, como o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, a dislexia, as dificuldades de aprendizagem e a síndrome de Asperger, com dificuldades na escola ou baixa performance acadêmica (BAUM; OLENCHACK; OWEN, 1998; CARREIRO et al., 2008; MONTGOMERY, 2003; NEIHART, 2002; OUROFINO, 2007; OUROFINO; GUIMARÃES, 2007; WEBB et al., 2005). O potencial elevado e o desempenho abaixo das expectativas geralmente são aspectos evidenciados no grupo de indivíduos com dupla excepcionalidade. Nesses casos, o baixo desempenho está associado a predisposições individuais, fatores emocionais e contingências ambientais que promovem ou potencializam sintomas relacionados aos quadros patológicos (MONTGOMERY, 2003; NEIHART, 2002). De fato, indivíduos superdotados com dupla excepcionalidade tendem a apresentar dificuldades para utilizar seu potencial e alcançar algumas metas em seu desenvolvimento, o que caracteriza a condição underachievement. O estudo conduzido por Ourofino (2005) com alunos superdotados, alunos com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e alunos superdotados/hiperativos revelou que a condição de dupla excepcionalidade é preditora de dificuldades de aprendizagem e de baixo desempenho acadêmico.

Os indicadores de baixa performance acadêmica de indivíduos superdotados foram organizados por Montgomery (2009), de modo a facilitar a identificação de underachievers. Tais indicadores e os tipos de underachievers são descritos no Quadro 2. Esses indivíduos certamente não exibirão todas essas características simultaneamente, mas tenderão a revelar pelo menos uma delas em caráter persistente, mascarando o real potencial.

 

 

 

Fatores associados à baixa performance acadêmica de indivíduos superdotados

As causas e os fatores que influenciam a manifestação do fenômeno underachievement entre indivíduos superdotados são objeto de controvérsias entre estudiosos. Porém, existe a concordância de que esses indivíduos demonstram vulnerabilidades afetivas e emocionais que os colocam em situação de risco social. As principais causas da baixa performance acadêmica em superdotados são: dificuldade de adaptação ao ensino regular pouco desafiador, pressão para se adequar às normas, isolamento social e dinâmica familiar conflituosa, rígida e de altas expectativas (BAKER; BRIDGER; EVANS, 1998; MATTHEWS; MCBEE, 2007; MONTGOMERY, 2009; REIS; MCCOACH, 2000; RIMM, 2003). Portanto, observa-se, na literatura, uma triangulação de possíveis causas em que estão presentes fatores relacionados ao indivíduo, à família e à escola.

Fatores associados ao indivíduo como a depressão, a ansiedade, o perfeccionismo, a baixa autoestima e o autoconceito negativo são apontados como preceptores de baixa performance acadêmica. Outros fatores como rebeldia, irritabilidade, não conformismo, dificuldades de aprendizagem, desorganização, impulsividade e déficit de atenção, imaturidade social e estabelecimento de metas irreais podem também estar associados à baixa performance acadêmica (BASLANTI; MCCOACH, 2006; MCCOACH; SIEGLE, 2003; REIS; MCCOACH, 2002; RIMM, 2003).

Entre os fatores que parecem esclarecer a manifestação da baixa performance acadêmica de superdotados, motivação e autoconceito têm se mostrado recorrentes. Clemons (2008) investigou as variáveis relacionadas à performance acadêmica e motivação entre 369 estudantes superdotados do nono ano do ensino fundamental de seis escolas públicas americanas e observou correlação positiva entre essas duas variáveis. O autor constatou que a motivação tem impacto na maneira positiva de o indivíduo demonstrar suas habilidades cognitivas, o processo criativo e a dedicação aos estudos. Para o pesquisador, a motivação atua como mediadora na produção acadêmica de qualidade.

Matthews e McBee (2007) realizaram um estudo para reunir informações sobre o tema do baixo desempenho entre superdotados, cujo propósito era investigar sua ocorrência e identificar os fatores promotores de tal situação no contexto educacional. Participaram do estudo 440 estudantes de nono ano do ensino fundamental e primeiro ano do ensino médio. Foi utilizada a School Attitude Assessment Survey Revised. Os resultados mostraram que a quantidade de estudantes underarchievers foi menor do que se esperava e que os fatores envolvimento e autoestima são preditores de baixa performance.

Um conjunto de variáveis que predizem baixa performance acadêmica entre estudantes superdotados foi analisado por Olivarez (2004). A amostra foi constituída por 44 estudantes hispânicos de 8a série e os dados foram obtidos por meio de survey. O autor constatou que existe relação entre atitude negativa do aluno para com a escola e sua baixa performance acadêmica. Essas atitudes revelam falta de desejo em estar fisicamente no ambiente escolar, abandono e evasão, resistência em aceitar regras e instruções, desafio à autoridade do professor, agressividade para com os pares e desleixo com o material escolar.

A pesquisa desenvolvida por Bethea (2007) examinou a presença de fatores que influenciam a baixa performance acadêmica em classes regulares de 92 estudantes superdotados underachievers de 4a e 5a séries, de escolas rurais americanas. Os estudantes participavam de um programa de atendimento ao superdotado e revelavam desempenho incompatível com seu potencial. Os resultados indicaram que um grande número de fatores influencia o comportamento underachiever de alunos superdotados, mas, nessa investigação, destacaram-se os fatores individuais e os relacionados aos problemas pedagógicos vivenciados na escola. Na percepção dos alunos, os fatores relacionados ao insucesso eram a impossibilidade de escolhas, a falta de desafios variados no contexto escolar e interesses externos concorrentes.

Os fatores individuais, familiares e escolares que influenciam a baixa performance foram explorados no estudo realizado por Baker, Bridger e Evans (1998). Os autores propõem uma análise mais ecológica e sistêmica do fenômeno. Foram investigados dois grupos de superdotados e dois de underachievers, estudantes do ensino fundamental, com idades entre 9 e 14 anos. Um modelo alternativo combinando as variáveis expressivas da baixa performance - problemas de comportamento, inabilidade acadêmica, influência parental inadequada, dificuldades de relacionamento com pares, entre outras - mostrou que o fenômeno é bastante complexo e requer investigações detalhadas quanto aos sistemas envolvidos, ou seja, uma análise em relação ao indivíduo, à família e à escola.

As ideias sintetizadas por Montgomery (2009) quanto à condição de underachievement destacam a interação inadequada de fatores internos e externos que influenciam negativamente as produções acadêmicas do indivíduo superdotado e que representam barreiras às suas altas habilidades. Para essa autora, os fatores internos (falta de motivação, personalidade instável e dificuldade específica de aprendizagem) e os externos (cultura, poucas oportunidades de desenvolver atividades criativas, ausência de desafios cognitivos e processo de avaliação escolar autoritário) interagem entre si, são complementares, interdependentes e representam a chave de entendimento do fenômeno da baixa performance.

 

Cenário atual e implicações para a área de superdotação

De acordo com as constatações de Rimm (2003), underachievement é uma questão de saúde pública e deve ser encarada como uma epidemia que acomete os indivíduos superdotados, imobilizando suas habilidades e competências superiores. Reis e McCoach (2000) enfatizam também a condição underachievement como um problema sério para o desenvolvimento do superdotado e, consequentemente, para as nações que terão seus talentos desperdiçados. Os estudos mais atuais da área acompanham a visão de Rimm (2003): Adelson (2007), Clark et al. (2008), Hannah e Shore (2008), Neumeister (2003), Phillipson (2007), Preckel (2006) e Swanson (2006).

Ao longo dos últimos trinta anos, a preocupação com superdotados underachievers tem ganhado força e espaço de investigação. Alguns estudos nessa direção impactaram a área de superdotação e trouxeram implicações importantes para pesquisas futuras. Exemplo disso são as contribuições dos estudos de Solorzano (1983) e Seeley (1984). Esses pesquisadores relatam os resultados insatisfatórios alcançados por estudantes superdotados em relação à performance acadêmica e estimam que 25% a 30% dos alunos norte-americanos que abandonam a escola são superdotados. Essa posição corrobora os resultados apontados no relatório Uma nação em risco: o imperativo da reforma educativa, divulgado em 1984 pela Comissão Nacional de Excelência em Educação dos Estados Unidos (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1984).

Nesse relatório, são apontados os indicadores de baixo desempenho das escolas americanas, como, entre outros, a diminuição de conquistas na área científica, a existência de analfabetismo funcional entre 13% dos alunos com 17 anos e a constatação de que 50% dos alunos superdotados identificados no ensino fundamental e médio não atingem níveis ótimos de desempenho acadêmico. Esses dados, apesar de terem sido divulgados nas últimas décadas do século XX, ainda são relevantes e bastante citados na literatura internacional, mostrando, de alguma forma, que a problemática acerca do underachiever persiste na tônica atual.

Para Heacox (1991), nos Estados Unidos, existem cerca de dois milhões de estudantes superdotados, e a prevalência de underachievers pode chegar a 50% dos alunos identificados no contexto educacional. Mais recentemente, foi divulgado pelo Davidson Institute for Talent Development (2009) que a população de superdotados abrange 2.392.300 indivíduos, ou seja, 5% dos estudantes norte-americanos. Desse total, mais da metade é considerada underachiever. Esses dados reforçam a preocupação dos estudiosos da área de superdotação e confirmam a prevalência de underachievers em vários países, conforme verificado em estudos conduzidos na Espanha por Olivarez (2004), na Áustria por Schober (2004), na Inglaterra por Montgomery (2004), na Alemanha por Sparfeldt (2006), na Turquia por Baslanti e McCoach (2006), em Hong Kong por Phillipson (2007), na República Checa por Dvorakova (2008), além da extensa produção verificada nos Estados Unidos da América e no Canadá.

No Brasil, os problemas relacionados ao baixo desempenho e ao fracasso escolar são contundentes e refletem a falta de equidade ante qualidade de educação que se almeja. Os estudos sobre desempenho escolar abarcam os alunos de modo geral (IRELAND, 2007; LIBÓRIO, 2009; PINHEIRO-CAVALCANTI, 2009). No que tange especificamente à performance acadêmica de indivíduos superdotados, não foram encontrados estudos brasileiros que investigassem esse fenômeno. No entanto, chamam atenção os dados oficiais apresentados no Censo Escolar 2009 demonstrando que, no país, existem 52.179.530 estudantes matriculados na educação básica, e desse total 341.781 são alunos da educação especial e apenas 2.564 alunos são considerados superdotados (BRASIL, 2009). Esse dado requer uma reflexão tanto em relação aos processos de identificação do aluno superdotado quanto aos registros oficiais que ainda são organizados de forma declaratória por parte das autoridades competentes.

 

Considerações finais

Diante desse quadro, fortalece-se a concepção de que muitos alunos superdotados são invisíveis à sociedade e, particularmente, ao sistema de ensino, e certamente entre esses estão muitos underachievers. Ainda mais complexa é a situação daqueles que, mesmo identificados como superdotados, apresentam uma produtividade aquém de seu potencial, revelando uma desconexão entre habilidade e o desempenho acadêmico real, e, por esse motivo, acabam excluídos do processo educacional (OUROFINO, 2005).

É necessário que a escola, na figura de seus agentes, adote paradigmas que favoreçam o desenvolvimento da criatividade, do autoconceito positivo, das habilidades cognitivas e da motivação para aprender, para todos os alunos, abrindo mão de práticas pedagógicas que tornam homogêneos o ensino e a aprendizagem, e que, dessa forma, excluem os alunos mais criativos e que necessitam de um olhar individualizado (ALENCAR; FLEITH, 2001; FLEITH, 2009; SABATELLA, 2005). O reconhecimento de que existe um grupo de superdotados underachievers implica mudanças na dinâmica de sala de aula e maior flexibilidade nas práticas educacionais. As famílias também necessitam de apoio e orientação para encaminhar as necessidades pessoais e educacionais de seus filhos, evitando exigências incabíveis e eliminando obstáculos que emperram o pleno desenvolvimento pessoal e escolar do superdotado. A promoção de atividades que aproximem professores e família é relevante, pois a descrição elaborada por ambos serve de direcionamento para o psicólogo na conclusão de avaliação diagnóstica e na proposição de encaminhamentos mais adequados e precisos para os alunos, bem como na proposta de um plano de atendimento personalizado das necessidades educacionais especiais observadas (FLEITH, 2009; OUROFINO, 2007, 2011). Investimentos em pesquisas nessa direção podem evitar que muitos talentos se percam por causa da falta de entendimento sobre as características dos superdotados, a implantação de um currículo escolar rígido e a apresentação do conhecimento de modo estratificado que não favorecem uma aprendizagem significativa.

A revisão de literatura suscitou ainda mais o interesse e o entusiasmo pelo tema, ampliando a visão sobre o fenômeno da superdotação e suas múltiplas dimensões. Os variaos fatores associados à natureza da condição underachievement exigem que as pesquisas sejam conduzidas numa perspectiva dinâmica, que acesse as questões relacionadas ao indivíduo, mas também aquelas relacionadas ao contexto social, especialmente a família e escola. Também é essencial destacar a postura inclusiva com o olhar focado nas necessidades educacionais especiais. Assim, depreende-se desta revisão um grande desafio teórico, conceitual, metodológico e prático, cuja superação poderá garantir que o potencial e o talento de milhares de crianças e jovens superdotados não sejam desperdiçados.

 

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Endereço para correspondência
Contato
Denise Souza Fleith
e-mail: fleith@unb.br

Tramitação
Recebido em junho de 2010
Aceito em maio de 2011