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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.16 no.3 São Paulo dez. 2014
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
Os sentidos da inclusão escolar: reflexões na perspectiva da psicologia histórico-cultural a partir de um estudo de caso
The meanings of school inclusion: reflections from the perspective of historic-cultural psychology from a case study
El significado de la inclusión escolar: reflexiones desde la perspectiva de la psicología histórico-cultural de un estudio de caso
Claudia GomesI; Vera Lucia Trevisan de SouzaII
I Universidade Federal de Alfenas, Alfenas – MG – Brasil
II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP – Brasil
Resumo
Subsidiada pela teoria da subjetividade de Gonzalez Rey, esta pesquisa, caracterizada como estudo de caso, teve como objetivo compreender e explicar o processo de subjetivação de uma aluna de 7 anos de idade, com deficiência física, inserida em uma classe regular do ensino fundamental. Os procedimentos metodológicos utilizados foram observações, sistemas conversacionais e entrevistas de aprofundamento, realizados ao longo de nove meses, tempo em que as pesquisadoras permaneceu no campo. As informações acessadas foram organizadas em três eixos de análise: 1. eficiência encobre a deficiência, 2. incluir-se é se equiparar aos melhores alunos e 3. para incluir-se, vale todo e qualquer esforço de superação. Com base na análise desenvolvida, conclui-se que as relações de subjetivação da aluna são configuradas pela negação de sua deficiência e alteridade, o que configura e subjetiva o processo de inclusão como uma forma de apropriar-se das formas de exclusão – inclusive de sua própria deficiência.
Palavras-chave: deficiência; educação inclusiva; psicologia histórico-cultural; subjetividade; psicologia escolar.
Abstract
Supported by the theory of subjectivity of Gonzalez Rey, this research is described as a case study aiming to understand and explain the process of subjectivities of a seven years old student, physically disabled, enrolled in a regular elementary school. The methodological procedures used were observation, conversation sessions and deepening interviews, conducted over nine months, when the researcher remained in the research field. Information accessed was organized into three areas of analysis: 1. efficiency disguises disability, 2. to be included is to match the best students and 3. any effort to overcome is worth to be included. Based on the developed analysis, it is concluded that the student's relations of subjectivity are configured by thedenial of herdisability and herotherness, which denotes that she represents and subjectivizes the process of inclusion as a way of appropriating the forms of exclusion – including deleting her own disability.
Keywords: disability; inclusive education; historic-cultural psychology; subjectivity; school psychology.
Resumen
A partir de la teoría de la subjetividad de González Rey, esta investigación se caracteriza como un estudio de caso dirigido que pretende comprender y explicar el proceso dela subjetividad de una estudiante e siete años de edad con discapacidad física de una escuela primaria de clase regular. Los procedimientos metodológicos utilizados fueron observaciones, entrevistas profundizadas y sistemas conversacionales, que se llevaron a cabo durante nueve meses, tiempo en el cual el investigador se mantuvo en el campo. Las informaciones visitadas que se facilitan están organizadas en tres áreas de análisis:1. la eficiencia que cubre la discapacidad, 2. la inclusión que consiste en equipararse e a los mejores estudiantes y 3. para efectuar la inclusión todo esfuerzo de superación es legítimo. Basándose en el análisis llevado a cabo, se concluye que la relación de subjetividad de esa estudiante se forma a partir de la negación de su discapacidad y su otredad, lo que indica que configura su proceso subjetivo de inclusión como una forma de apropiarse de las formas de exclusión – incluyendo la eliminación de su propia discapacidad.
Palabras clave: discapacidad; educación inclusiva; psicología histórico-cultural; subjetividad; psicología escolar.
As políticas educacionais inclusivas, sustentadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação promulgada em 1996, o Plano Nacional de Educação de 2001 e, mais recentemente, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Inclusão (Brasil, 2008) consideram como princípio fundamental assumir e aceitar as diferenças humanas por meio da transformação das práticas educacionais. Esse princípio, no entanto, exige reformulações permanentes do ensino, assim como novos posicionamentos dos professores que levam a cabo as práticas educativas, de modo a promover inovações e reestruturação das relações educacionais das escolas brasileiras (Bueno, 2008; Almeida, Mendes, & Toyoda, 2011; Garcia, 2011).
Entendemos que a reformulação das ações relacionais na escola, no que concerne à inclusão, depende, essencialmente, de uma compreensão mais aprofundada do processo de desenvolvimento de alunos com deficiência, pois somente assim se poderiam desenvolver ações mais efetivas para a inserção desses sujeitos nos espaços educativos, favorecendo a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos com necessidades educacionais especiais.
A categoria "sentido", postulada por Vygotsky (1997), inaugura uma visão dinâmica, fluida e complexa dos processos de constituição do sujeito, oferecendo subsídios à compreensão do desenvolvimento humano como produzido na interação com outros sujeitos, em um movimento que incorpora a história do indivíduo com suas experiências singulares e a história do contexto social em que se insere. Para Vygotsky (1997), o social é fonte de desenvolvimento, ou seja, não há como se tornar humano fora do social, sobre o qual o sujeito atua de modo ativo, produzindo o social e a si próprio por meio da configuração de sentidos e significados.
Segundo o autor, a produção individual de sentido tem sua origem no encontro singular de um sujeito com uma experiência social concreta. O sentido não representa uma omissão do objetivo e sim uma forma de representar o processo por meio do qual o objetivo se converte em psicológico. Nas palavras de Vygotsky (1996, p. 125), "o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual".
Assim, de acordo com Aguiar e Ozella (2013), compreender o desenvolvimento humano nessa premissa é considerar a relação dialética com o social e com a história, o que torna cada sujeito ao mesmo tempo único, singular e histórico, pois indivíduo e sociedade mantêm uma relação intrínseca em que se incluem e excluem de forma recursiva e constante.
Para Souza e Andrada (2013), o processo de desenvolvimento e humanização tem como eixo central o social, e esse processo de apropriação se define como uma revolução no desenvolvimento, pois envolve uma ação permanente do sujeito em relação ao meio.
É com base nessa compreensão da teoria de Vygotsky que Gonzalez Rey desenvolve sua teoria da subjetividade, dando ênfase ao caráter cultural da psique e à relação dialética entre os aspectos individual e social. O autor compreende que a condição do sujeito individual só é impulsionada dentro de um tecido social, em que os momentos de subjetividade social e individual, embora expressos em momentos contraditórios, fundem-se em dimensões processuais permanentes. Portanto, é no perpasso subjetividade social e subjetividade individual que a singularidade dos sujeitos deve ser considerada, e somente assim, com o realce de seu desenvolvimento como sujeito individual, é que serão geradas novas redes de relações sociais, que poderão atuar na transformação das redes anteriores (Gonzalez Rey, 2002, 2003, 2012).
Os sentidos sociais e individuais expressariam, assim, direções de contato e convergência entre um "eu" e um "outro", preservados em suas singularidades e diferenciações, mantendo sistemas individuais e singulares. Tratar da capacidade do sujeito de configurar sentidos vem dotar o indivíduo de uma nova forma de atuação em seu próprio desenvolvimento, não como correspondência linear às exigências externas, mas como atividade permanente, tanto na correspondência dessas exigências como na construção das premissas que as mantêm.
Gonzalez Rey (2003) enfatiza, para tanto, o caráter gerativo e alternativo do sentido, constituído e configurado nas relações do sujeito com o meio, e que possibilita a articulação de seus conteúdos mais intrínsecos em sua expressão no contexto social, que demarca a atuação do sujeito singular e cultural.
Assim, com base nos pressupostos da teoria da subjetividade de Gonzalez Rey, sustentados pelas premissas da psicologia histórico-cultural, este estudo objetivou compreender as relações de subjetivação de uma aluna deficiente física configuradas na vivência das dinâmicas escolares in(ex)clusivas, em seu processo de escolarização.
Método
Em consonância com os pressupostos mencionados, a epistemologia qualitativa se apresenta como possibilidade de sistematizar uma vertente capaz de integrar aspectos dialéticos e complexos da realidade estudada. Formulada por Gonzalez Rey (2002, p. 38), essa perspectiva metodológica busca produzir conhecimentos no campo da psicologia, tomando a realidade como "plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica", de modo a representar a subjetividade humana em sua totalidade. Tal acercamento metodológico se baseia em três princípios fundamentais: a compreensão do caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, que equivale à necessidade de dar sentido a expressões do sujeito estudado; a legitimação do sujeito singular como instância de produção de conhecimento científico, o que implica o resgate da individualidade ou singularidade; e a ênfase no processo dialógico, ou seja, a relação entre pesquisador e pesquisado deve ser considerada.
Participante do estudo de caso
Sara, 7 anos de idade, com uma deficiência nos membros superiores que lhe impossibilita usar as mãos (não tem o braço esquerdo, e o direito apresenta-se com encurtamento à altura do cotovelo, com malformação da mão que se caracteriza por dois dedos pequenos), é aluna matriculada no 2º ano do ensino fundamental de uma escola particular no Estado de São Paulo.
A menina é filha caçula e tem apenas um irmão de 11 anos que também estuda na escola. Ambos são alunos da instituição desde o ciclo da educação infantil, ou seja, foram matriculados na escola com 5 anos de idade. A deficiência da garota foi constatada no início do segundo trimestre de gestação e mobilizou a família desde então, à procura de informações. A aluna é atendida esporadicamente em uma instituição de apoio a pessoas com deficiência para a construção de seus materiais e recursos adaptados.
Em relação ao seu histórico escolar, a deficiência física não a impede de desenvolver as atividades, pois possui materiais e recursos adaptados para escrita, o que favorece não apenas o acompanhamento, como também a avaliação de um ótimo rendimento acadêmico, sem reprovações ou necessidades de atividades diferenciadas ou de recuperação.
Todos os procedimentos aqui estabelecidos foram submetidos e aprovados pelo comitê de ética em pesquisa envolvendo seres humanos (protocolo aprovado no CEP254/08; processo do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae) n. 0049.0.147.000-08). Com o objetivo de garantir o anonimato e preservar a identidade dos envolvidos, foram utilizados nomes fictícios.
Instrumentos
Como instrumentos de coleta e construção de informações da pesquisa, utilizaram-se:
• Observações nas modalidades descritiva e seletiva: realizadas em sala de aula e demais nos espaços da escola, e registradas em diário de campo (DC), com o objetivo de apreender elementos que possibilitassem a descrição do espaço escolar (estrutura física e organizacional), assim como das ações e atividades pedagógicas realizadas pela aluna, como avaliações, exercícios, atividades lúdicas e esportivas, entre outros, e de suas dinâmicas relacionais em sala de aula, como a organização e escolha de parcerias para os trabalhos em grupo, relações afetivas e sociais, posturas e comportamentos estabelecidos pela aluna em sala de aula. A atividade de observação também visava facilitar a aproximação entre as pesquisadoras e o participante.
• Sistemas conversacionais: após o reconhecimento da realidade escolar vivenciada pela aluna, foi possível a aproximação e o contato direto com a participante, firmando-se uma relação dialógica por meio dos sistemas conversacionais, nos quais foram apreendidos os conteúdos a serem aprofundados nas entrevistas. Sistemas conversacionais são procedimentos de construção de informação propostos pela epistemologia qualitativa (Gonzalez Rey, 2002) que têm como objetivo acessar indicadores de sentidos produzidos na relação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa.
• Roteiro de entrevista: com base nos indicadores que emergiram das observações e dos sistemas conversacionais, foi elaborado um roteiro com questões disparadoras para aprofundar a compreensão da vivência escolar da aluna. Esse roteiro norteou a entrevista semiestruturada realizada com ela ao final das observações na escola e contou com questões que versaram sobre o ingresso da aluna na escola e as necessidades de recursos e materiais; os aspectos positivos em seu processo de inclusão escolar e a compreensão da importância da escolarização; as dificuldades vividas na escola em relação aos colegas e professores.
Procedimentos
Para a construção das informações da pesquisa, houve o acompanhamento escolar diário da aluna entre os meses de fevereiro e dezembro. Primeiramente, após autorização da escola e da família para a realização da pesquisa, as pesquisadoras observaram as aulas sem um contato mais próximo com a aluna. Gradativamente, foi se aproximando e passou a acompanhá-la em todas as atividades extraclasse.
Nesse momento, iniciou o que denominamos de "sistemas conversacionais", os quais eram registrados de modo breve no momento do diálogo e detalhados logo após a saída das pesquisadoras do espaço de pesquisa, quando produziam os diários de campo. No final de novembro, já com vínculo efetivo com Sara, as pesquisadoras convidaram-na para responder a algumas perguntas para sua pesquisa, convite que ela aceitou de pronto. A entrevista foi gravada em áudio e transcrita posteriormente. Foi realizada na sala de aula, na presença da professora que acompanhou Sara em todos os momentos em que a pesquisadora esteve presente na escola.
O conjunto de dados oriundo de observações, diálogos e entrevista constitui a fonte de informação das análises que passamos a apresentar. Para tanto, serão mostrados, ao longo das discussões, trechos significativos de relatos de observação e de fala da aluna, transcritos na íntegra.
Construção da análise
De acordo com a epistemologia qualitativa, a análise consiste em um processo de configuração de sentidos do pesquisador, do pesquisador na relação com as informações e a vivência no contexto de pesquisa. Trata-se de um processo construtivo-interpretativo que tem início quando o pesquisador se insere no contexto e termina na produção da teorização, no momento da análise. Nessa etapa, o pesquisador desenvolve leituras aprofundadas das informações, buscando identificar "indicadores" de sentidos relativos ao objeto de sua investigação. Esses indicadores são agrupados e dão origem a núcleos de significação que se constituem como norteadores da análise. Os núcleos de significação do estudo devem revelar as implicações do sujeito com a realidade estudada (Aguiar & Ozella, 2006).
Esse movimento de análise resultou na elaboração de dois núcleos de significação: 1. a eficiência encobre a deficiência e 2. para incluir-se, vale todo e qualquer esforço de superação. Esses núcleos, que caracterizam o modo como Sara configura os sentidos da experiência de aluna em uma escola regular, aparecem permeados pelos sentidos de inclusão e exclusão.
Resultados e discussões
O que se pode perceber no acompanhamento da rotina escolar de Sara "incluindo-se em meio aos mecanismos excludentes" é que, de modo geral, suas relações escolares, dentre as quais o convívio social, não são prejudicadas por sua necessidade especial, pois muitas vezes sua eficiência encobre sua deficiência.
Já a partir das apresentações iniciais da aluna, feitas pelos profissionais da escola à pesquisadora ("Ela é superelaborada; nem podemos considerá-la em processo de inclusão; nós é que precisamos nos incluir; nunca tivemos nenhum tipo de problema"), pode-se questionar se de certa forma o processo de inclusão escolar de Sara não estaria embasado na desconsideração/hipervalorização de sua deficiência, revelando uma contradição que ampara duas concepções distintas em seu processo avaliativo: uma de compreensão meramente focada na valorização da reprodução dos conhecimentos acadêmicos; e outra da análise que considera e se limita a compreender a ação inclusiva como a oferta de um espaço de convivência entre os alunos com necessidades especiais e os demais alunos.
Nota-se que são duas concepções distintas, mas ambas apontam para a urgência de reflexão sobre a implementação de ações inclusivas, em que reconhecer, conhecer e respeitar a deficiência é a premissa básica. O fato de os professores, aparentemente, não abordarem sua deficiência física pode ser não somente um indicativo de negação dessa falta, mas também uma tentativa de compensação para a aluna. Ambos os processos são dolorosos, e podemos questionar em que medida promovem o desenvolvimento.
Compreendemos que esses elementos institucionais constituem a configuração da subjetividade social vivida pela aluna. De acordo com Gonzalez Rey (2012), esse espaço social se configura e reconfigura de forma permanente por meio das configurações dos próprios sujeitos que vivenciam essa relação.
Dessa forma, ainda de acordo com o autor, o histórico e o atual existem configurados em sistemas dinâmicos que expressam diferentes formas do nível subjetivo, e a configuração entre ambos direciona e alavanca as construções e constituições do sujeito. A organização da subjetividade é sistêmica, intercambiando tanto os sentidos subjetivos individuais como sociais, e, assim, a sociedade impacta a constituição do sujeito tanto por seus aspectos objetivos como pelos aspectos subjetivos, que se integram e se expressam de múltiplas formas.
Com base em tais embasamentos, fato intrigante é observado na versatilidade adquirida por Sara para lidar com tais elementos da subjetividade social da escola, ante representação a ela atribuída e, consequentemente, por ela assimilada e reproduzida: a aluna eficiente, como pontuado no diálogo abaixo com as pesquisadoras:
Aluna: A prô disse que sou boa, minha mãe também falou.
Pesquisadora: E você é mesmo boa aluna?
Aluna: Claro! Sei ler e escrever muito melhor que a Sofia, que a Judite, até da Carol, eu já passei na frente, e olha que ela é a mais inteligente de todas na escola.
A compreensão de ser uma aluna em processo de inclusão, considerando o paradigma inclusivo, que ainda visualiza que o aluno com necessidades especiais, para poder ser considerado incluído, deve apresentar um desenvolvimento equiparado aos demais alunos, é assimilada, efetivamente, por Sara:
Acho que sou inteligente... eu gosto muito de estudar... a gente precisa estudar para ser alguém na vida... eu quero ter bastante dinheiro... e aí tem que estudar para o futuro... então eu não falto... só quando estou doente... uma vez fiquei doente, mas fiz todas as lições em casa, com a minha mãe. Eu aprendi faz tempo a ler... desde pequeninha eu já sabia ler Coca-Cola... minha mãe que falou, então sou inteligente... tem coisas difíceis... mas eu sei todas... eu até ajudo a Mariana e as gêmeas porque elas não sabem e eu sei... eu que faço daí para elas. Eu não levo bilhete... porque nunca faço bagunça... ou faço um pouco e daí eu corro e termino a lição e a prô nem percebe...
Pôde-se constatar que os elementos que sustentam a subjetividade social na escola são partilhados pelos professores e promovidos pelas práticas pedagógicas instauradas em sala de aula. Segundo essa premissa, a deficiência da aluna não precisa ser considerada, "pois, apesar de deficiente, é muito eficiente", o que é apropriado por Sara, que, em suas relações, internaliza essas representações e configura sentidos que, dentro de um sistema recursivo de valorização, permitem que ela se situe nas relações sociais:
Eu faço tudo bem rapidinho, sou quase a mais inteligente, desde pequenininha já sabia ler, eu aprendo bem tudo que a prô ensina, mas as lições de artes daí acho que você precisa me ajudar, pois tem que ficar bem bonito e sozinha eu não posso fazer, e a prô sabe que eu preciso de ajuda.
Nessa direção de análise, Vygotsky (2010) coloca o meio como fonte de desenvolvimento. As falas dos profissionais da escola revelam o modo como o meio lida com a deficiência de Sara, que, por sua vez, revela nas falas aqui reproduzidas a apropriação dessas representações como modo de funcionar. É possível considerar que as interações que Sara empreende no contexto escolar não só produzem a imagem que ela tem de si, mas também a mantêm, o que impulsiona suas ações para o desempenho acadêmico compensatório de modo a justificar suas dificuldades.
Com base nessa compreensão, podemos questionar se a desconsideração da deficiência de Sara e o asujeitamento às exigências de rendimento acadêmico que lhe são impostas não estariam abrindo um espaço compensatório que desconsidera suas necessidades. E se esse novo espaço não estaria apenas limitando suas reais possibilidades de se incluir, superando os mecanismos pedagógicos instaurados. Porém, em ambas as situações, um fato é evidente: é nesse contexto de interações que Sara configura novos sentidos como aluna de uma classe regular, os quais a distanciam da figura de aluna inferior e deficiente.
Ainda de acordo com o autor, toda produção de sentidos é o resultado da tensão entre os sentidos que aparecem no percurso da ação do sujeito e os sentidos que antecedem esse momento, a partir das configurações subjetivas implicadas em cada situação concreta dessa ação. Desse modo, a dimensão de sentido abre uma nova zona de novos sentidos na representação da psique, que rompe, definitivamente, com a representação de um relacionamento linear entre um evento objetivo e sua significação psicológica, propiciando superar a dicotomia entre externo e interno.
No entanto, o que ainda parece não ser levado em conta pela instituição é que as formas de tratamento tidas como "normais" pouco garantem que seus alunos (independentemente de possuírem ou não necessidades especiais) sejam considerados em sua singularidade, compreensões essas que configuram o segundo núcleo de significação do processo de escolarização de Sara: para incluir-se, vale todo e qualquer esforço de superação.
Pesquisadora: Quer ajuda para amarrar o tênis?
Aluna: Não, eu faço isso sempre sozinha e não tenho dificuldade, eu gosto mesmo desses tênis que têm cadarço para amarrar.
Pesquisadora: Eu te ajudo a arrumar a mochila.
Aluna: Não precisa, eu prendo no dente e puxo e fecho... eu aprendi isso há muito tempo, não preciso de ajuda, antes eu precisava de ajuda para carregar, porque doía meu ombro, mas agora dói mas eu já acostumei.
O que se evidencia no caso de Sara é que a aluna, ante a imposição de se diferenciar (quantitativamente em seus esforços acadêmicos) para se incluir, cria a possibilidade de compensar sua falta física, desempenhando eficientemente suas tarefas escolares.
Concordamos com Aguiar e Ozella (2013), que apontam que a análise da relação entre o aspecto afetivo e o simbólico deve estar também focada na compreensão da noção de necessidade e nos motivos para a compreensão do sujeito, pois será essa relação a base para a configuração de sentidos. Compreensão essa relatada pela própria aluna:
Se é para fazer a lição, tem que fazer da melhor forma possível, fazer rápido, sem conversas, bem bonito, e mostrar logo para a prô, porque ela gosta mais de quem termina mais rápido a lição, dos mais inteligentes, sabe. A tarefa de casa eu também faço perfeita, ela já até me falou: "Você é uma ótima aluna".
Para Vygotsky (1997), sentimentos de inferioridade interiorizados são premissas para reações que visam eliminar a deficiência e promover a criação de estratégias e mecanismos de compensação, determinadas pela situação e pelas exigências socialmente impostas. A representação imposta e assumida por Sara de que são bons somente os alunos que realizam rapidamente as lições é também incorporada na escolha de suas relações sociais em sala de aula: "eu não gosto de sentar com quem demora, sabe, gente burra, que não sabe fazer bem a lição".
Porém, o que se pode constatar é que Sara tem necessidade e motivos de corresponder satisfatoriamente a essa definição imposta, e, aparentemente, um de seus prejuízos é adequar-se à apropriação e reprodução dos mecanismos de exclusão, ora na postura e posição de excluída, ora na posição de quem exclui.
Nesse sentido, corroboramos a discussão de Souza e Andrada (2013, p. 359), que afirmam que "os sentidos atribuídos a algo são a própria revelação dos afetos do sujeito", e, no caso de Sara, são afetos que demarcam sua necessidade de incluir, mesmo que de forma exclusiva.
Devemos compreender que tais necessidades nem sempre são conscientes e controladas pelo sujeito, pois derivam da configuração de sentidos decorrentes de seus desdobramentos sociais que, deflagrados pelas ações e dinâmicas escolares vivenciadas, se desdobram em múltiplos e complexos indicadores singulares, subjetivos e históricos ao mesmo tempo (Aguiar & Ozella, 2013).
Fica evidente que Sara apropria-se com segurança de alguns elementos partilhados na instituição e os internaliza, pois são centrais para a configuração dos sentidos subjetivos que sustentam suas novas ações e embasam a construção da imagem de aluna eficiente. Outra relação decorrente da dinâmica entre aluna e professora em sala de aula pode ser firmada pelas ações de valorização desta, que têm como base o bom desempenho, a beleza e a produtividade dos alunos, referências reproduzidas cotidianamente por Sara: cabelos sempre arrumados, anéis, correntes, caderno e atividades sempre em ordem, entre outros, fazendo questão de mostrar-se a todos.
Para Gonzalez Rey (2005), o elo social/individual se dá por meio dos movimentos de concretude da vida do sujeito. Essas confrontações singulares e sociais exigem que o sujeito, uma vez se reconhecendo, delimite seu ponto singular de congruência social. Ainda para o autor, serão os sentidos subjetivos configurados que oferecerão essa possibilidade de ruptura e contradições sociais.
Compreendemos que as ações de tensionamento social vividas por Sara, na escola, exigem que ela produza desdobramentos de suas vivências nas quais sejam conferidos sentidos cada vez mais complexos, que recriarão sua vivência singular (Souza & Andrada, 2013).
Com base em tais premissas teóricas, é possível, pelas análises do processo de subjetivação de Sara, que os elementos configurados por ela se diferenciem daqueles impostos socialmente aos alunos com necessidades especiais. Porém, não fica claro se, na verdade, consolidar-se como uma aluna eficiente foi uma forma de preservar sua singularidade como aluna ou se, mais uma vez, novas representações foram impostas e assumidas por ela, como se fosse uma segunda chance de configurar novos sentidos subjetivos, como "sucesso, respeito, valorização, orgulho", que sustentassem seu processo de enfrentamento social e construção de identidade.
Não restam dúvidas de que as necessidades de "adequação acadêmica e social" sustentam e direcionam a configuração de sentidos subjetivos do sujeito para a ação na direção da satisfação das suas necessidades, que modifica suas anteriores relações e possibilita novos desdobramentos individuais e sociais (Aguiar & Ozella, 2013).
No entanto, nessa configuração de sentidos da aluna, o que parece ser incorporado por Sara é que alunos eficientes não só não falham, mas também são superiores, o que demanda que ela se configure individual e socialmente negando suas reais necessidades físicas.
Segundo Gonzalez Rey (2005), o sentido subjetivo pode ser compreendido como uma complexa combinação de emoções e processos simbólicos, vivenciados em diferentes momentos e diversas esferas processuais da vida dos sujeitos. Em suas palavras, pode ser definido, ainda, como "toda a emoção que se integra em uma cadeia de produção de emoções, em qualquer espaço da vida humana [...], não se reprime, e não atua como uma entidade invariável, mas como uma processualidade constante" (Gonzales Rey, 2005, p. 41).
Aparentemente, a suposta inexistência de julgamento quanto às suas próprias possibilidades e necessidades aponta que suas configurações como aluna eficiente são apenas sobrepostas e não recursivamente configuradas em sua condição de aluna deficiente, o que denota uma configuração fragmentada em sua constituição.
Entendemos que o processo de inclusão escolar deve favorecer a reestruturação das vivências escolares dos alunos como situações sociais de desenvolvimento, com modificações das necessidades e dos motivos que potencializam suas ações (Souza & Andrada, 2013), não como ações dicotômicas e fragmentadas, mas sim dinâmicas e retroalimentadoras, que potencializem o desenvolvimento do sujeito.
Considerações finais
Tendo por base os objetivos do estudo, não propomos quaisquer generalizações, apenas buscamos explorar a configuração de sentidos subjetivos em prol da análise dos limites e das perspectivas dos espaços de escolarização para a efetivação do processo inclusivo e da construção de uma educação democrática.
O que se pode perceber é que se a proposta de tratamento igualitário assumida pela instituição como forma de efetivar a inclusão de Sara, por um lado, propicia que a aluna crie estratégias de enfrentamento para inserir-se em novos espaços de interação, parece, por outro aniquilar formas autênticas de assumir suas necessidades e adversidades, o que potencializa a configuração de sentidos subjetivos de negação de sua deficiência.
Podemos concluir que a versatilidade presente na configuração de sentidos e os desdobramentos vividos impõem, à compreensão da proposta inclusiva, desafios diferentes dos que têm sido indicados nos estudos e políticas públicas, como estruturação física das escolas, materiais pedagógicos, recursos variados, formação de professores, entre outros. A compreensão da complexidade das relações de subjetivação vividas pelos sujeitos se revela como premissa básica ainda pouco considerada e que demanda novos estudos e pesquisas na área sobre tais pressupostos teóricos e metodológicos.
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Endereço para correspondência:
Claudia Gomes
Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas
Rua Tiradentes, 830, Centro
Alfenas – MG – Brasil. CEP: 37130-000
E-mail: cg.unifal@gmail.com
Submissão: 7.5.2013
Aceitação: 15.8.2014