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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2016

 

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Leitura e escrita: um modelo cognitivo integrado

 

Reading and writing: an integrated cognitive model

 

Lectoescritura: un modelo cognitivo integrado

 

 

Débora Cecilio FernandesI; Priscila Ligabó MurarolliII
I Universidade Estadual do Centro‑Oeste, Guarapuava – PR – Brasil
II Universidade Vale do Rio Verde, Belo Horizonte – MG – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O objetivo do presente artigo é apresentar o modelo teórico de aquisição de leitura e escrita de Berninger e colaboradores. Trata‑se de um sistema cognitivo que integra os processos específicos de leitura e escrita e processos cognitivos. Os processos específicos de escrita compreendem a geração de ideias, a representação dessas ideias em linguagem, a transcrição (integração da ação motora e do conhecimento ortográfico) para, finalmente, produzir um texto escrito. Os processos de leitura são o reconhecimento de palavras por meio da fonologia, morfologia e ortografia, o processamento sintático e gramatical para atingir a compreensão de leitura. A leitura e a escrita são apoiadas pela memória de trabalho e são mais eficientes quando as crianças fazem uso de processos executivos como o estabelecimento de objetivos, o planejamento, a monitoração e a autorregulação. São apresentadas vantagens da consideração desse modelo teórico nas pesquisas de leitura e escrita do ponto de vista cognitivo.

Palavras-chave: leitura; escrita; processos cognitivos; funções executivas; aprendizagem.


Abstract

The aim of the present article is to present the theoretical model for acquisition of reading and writing from Berninger and collaborators. It is a cognitive system which integrates the specific processes of reading and writing and cognitive processes. The specific processes of the writing system include the generation of ideas, the representation of these same ideas into language, the transcription (integration of the motor action along with the orthographic knowledge) in order to, finally, produce a written text. The processes of reading are the recognition of words through phonology, morphology and orthography, syntactic and grammatical processing to achieve the reading comprehension. Reading and writing are supported by the working memory and are more efficient when children make use of executive processes like the establishment of objectives, the planning, the monitoring and the self‑regulation. Advantages in considering this theoretical model for writing and reading researches from the cognitive point of view are here presented.

Keywords: reading; writing; cognitive processes; executive functions; learning.


Resumen

El objetivo del presente artículo es presentar el modelo teórico de adquisición de lectoescritura de Berninger y colaboradores. Se trata de un sistema cognitivo que integra los procesos específicos de lectura y de escritura y los procesos cognitivos. Los procesos específicos del sistema de escritura comprenden la generación de ideas, la representación de dichas ideas en lenguaje, la transcripción (integración de la acción motora y del conocimiento ortográfico) para, por fin, producir un texto escrito. Los procesos de lectura son el reconocimiento de palabras por medio de la fonología, morfología y ortografía, el procesamiento sintáctico y gramatical para lograr la comprensión de lectura. Esos procesos de lectoescritura se apoyan en la memoria de trabajo y son más eficientes cuando los niños hacen uso de los procesos ejecutivos como el establecimiento de objetivos, la planificación, la monitorización y la autorregulación. Se presentan ventajas de considerar ese modelo teórico en las investigaciones de lectoescritura desde el punto de vista cognitivo.

Palabras clave: lectura; escritura; procesos cognitivos; funciones ejecutivas; aprendizaje.


 

 

A leitura e a escrita sempre foram temas de muito interesse no Brasil. Diversos aspectos influenciam a aquisição dessas habilidades, como sociais, culturais, familiares, cognitivos, educacionais, entre outros (por exemplo, Monteiro & Santos, 2013; Urquijo, 2010). Um possível enfoque para a compreensão da aquisição das habilidades de leitura e de escrita é por meio do desenvolvimento dos processos cognitivos básicos e específicos de linguagem. Para que uma criança passe por um processo de aquisição típico de leitura e escrita, são necessários processos como os de memória, por exemplo, de memória de longo prazo, memória semântica e memória de trabalho. Também são necessários os diferentes tipos de atenção e os distintos processos que formam parte das funções executivas (Sastre-Riba, 2006; Urquijo, 2010).

Apesar da importância de levar a cabo pesquisas relacionadas com os processos necessários para a alfabetização, o levantamento bibliográfico realizado por Murarolli (2014) sugeriu que pode ser interessante o uso de um modelo teórico que integre a cognição humana, seu desenvolvimento e os processos de leitura e escrita. Especificamente, seu estudo abarcou os últimos cinco anos e considerou as principais bases de dados brasileiras. Os artigos encontrados, de forma geral, tratavam de leitura, escrita ou ambos. Percebeu-se um interesse por estudar ambos os processos em conjunto, mas notou-se a falta de referência a um modelo teórico que levasse em consideração a complexidade dos processos envolvidos na leitura e na escrita, tanto específicos de linguagem como cognitivos. Além disso, os estudos levantados não esclareciam a integração do processo de leitura e escrita.

Nesse contexto, um modelo que explica a conexão entre ambos os processos foi proposto por Ellis e Young (1988). Seu funcionamento é modular e conecta as vias de entrada das informações auditivas (palavra ouvida) e visuais (leitura) com uma série de níveis (por exemplo, de fonemas e grafemas) e processos linguísticos (conversão grafema-fonema e fonema-grafema). A fala e a escrita são as vias de expressão de saída das informações. Esse modelo oferece, então, uma via de conexão entre a leitura e a escrita e possibilita a compreensão de déficits do sistema de linguagem e semântico por meio do mau funcionamento de alguma via ou módulo. No entanto, o foco dos autores não foi a compreensão da aquisição da leitura e escrita nem da contribuição dos processos cognitivos para tal.

Dessa forma, este artigo tem o objetivo de apresentar o sistema integrado de linguagem e cognição de Berninger e colaboradores (por exemplo, Berninger, Abbott, Abbott, Graham, & Richards, 2002), por se tratar de um sistema complexo que considera os processos cognitivos da criança, seu desenvolvimento cognitivo, os diferentes momentos de aquisição das habilidades de leitura e de escrita durante a alfabetização, os subprocessos específicos necessários para cada uma das habilidades, além de especificar explicitamente a relação entre os sistemas de leitura e escrita.

Esse sistema recebeu influência de modelos anteriores como o modelo de Juel, Griffith e Gough (1986), o modelo reformulado de Hayes (1996), assim como de diversos estudos realizados por Berninger (Abbott & Berninger, 1993; Berninger & Winn, 2006). Ainda, para o seu modelo, a autora adotou uma perspectiva neurodesenvolvimental para compreender o sistema cognitivo envolvido na aquisição de ambos os processos (Berninger & Winn, 2006). Esse enfoque permite compreender a influência do desenvolvimento típico e atípico dos processos cognitivos e neuropsicológicos relacionados com a leitura e com a escrita. A seguir, são apresentadas algumas pesquisas que apoiam o modelo da autora.

 

Pesquisas sobre os processos de leitura e escrita,

Primeiramente, são apresentados alguns resultados de pesquisa que respaldaram a elaboração do modelo teórico e a relação entre os processos de leitura e escrita. Posteriormente, são expostos os processos relacionados com o sistema de escrita, já contextualizando em que momento ou etapa se inserem os processos de leitura. A seguir, são apresentados os processos de leitura. Para ambos os sistemas são explicados quais processos cognitivos e executivos estão envolvidos.

O desenvolvimento do modelo teve como base diversos estudos experimentais realizados pela autora e colaboradores. Dois estudos mais relevantes são apresentados aqui. A pesquisa realizada por Abbott e Berninger (1993) auxiliou a compreensão das relações entre os processos de escrita e certa relação entre a escrita e a leitura. Os autores levaram a cabo uma análise de modelagem de equações estruturais multigrupo para investigar mudanças de desenvolvimento na relação entre os sistemas auditivo e oral de linguagem e leitura com componentes da escrita, quais sejam, escrita à mão, soletração/conhecimento ortográfico, fluência da composição e qualidade da composição. Os autores separaram alunos dos anos iniciais (1o, 2o e 3o anos escolares) e dos anos intermediários (4o, 5o e 6o anos) para as análises, com o intuito de averiguar se as influências entre as habilidades se diferenciavam de acordo com o ano escolar do aluno. Foram elaborados quatro modelos teóricos que foram testados na análise.

O primeiro deles estabelecia que a codificação ortográfica e a coordenação motora fina deveriam influenciar a escrita. De forma geral, averiguou-se que, para os anos iniciais e intermediários, a escrita foi influenciada diretamente pela codificação ortográfica, mas não sofreu influência direta da coordenação motora fina. Os autores interpretaram, com o auxílio dos indicadores de ajuste, que a influência da coordenação motora na escrita ocorreu indiretamente, por meio da codificação ortográfica.

No caso da soletração, o modelo teórico previa que a codificação ortográfica e a codificação fonológica influenciassem a soletração. Nos anos iniciais, a codificação ortográfica exerceu influência direta sobre a soletração, e a fonológica a influenciou indiretamente. Nos anos intermediários, tanto a codificação ortográfica como a fonológica influenciaram significativamente a soletração, no entanto, a influência da codificação ortográfica foi superior à da fonológica.

Em relação à fluência da composição da escrita, o modelo teórico elaborado previu que a linguagem oral e o raciocínio verbal se compunham como um fator e a leitura como outro e que ambos deveriam interferir sobre a fluência da escrita. No 1o ano, apenas a relação da leitura com a fluência foi significativa. Nos 2o e 3o anos, a variável latente linguagem oral/raciocínio verbal se associou à fluência. Em relação aos anos intermediários, nem a leitura nem a linguagem oral/raciocínio verbal se associou à fluência, o que sugere que, com o processo de alfabetização, esses processos deixam de ter tanta importância para a produção fluente de textos.

No que diz respeito à qualidade da composição da escrita, estabeleceu-se que essa deveria se associar à variável linguagem oral/raciocínio verbal e à leitura. No 1o ano, apenas a linguagem oral/raciocínio verbal se associou à qualidade, enquanto nos 2o e 3o anos, apenas a leitura influenciou significativamente a qualidade da composição.

Nesse estudo, os autores observaram a contribuição diferencial de processos de linguagem e leitura às distintas habilidades de escrita avaliadas, conforme o momento de aquisição da escrita das crianças. Esses achados auxiliaram a compreensão da relação entre alguns processos linguísticos e serviram de base para a formulação das hipóteses do estudo levado a cabo por Berninger et al. (2002). Neste, os autores testaram a relação bidirecional entre leitura e escrita e a hipótese de que os sistemas de escrita e de leitura, que possuem organizações internas únicas, são conectados no nível da palavra pela via do reconhecimento de palavras e pelos módulos de transcrição (veja a Figura 1, dentro do módulo da transcrição a relação entre fonologia, ortografia e morfologia, que compõe o reconhecimento de palavras) e no nível do discurso pelos módulos de compreensão do discurso (Figura 2) e geração de texto (Figura 1, relação entre o módulo da transcrição e o da geração de texto).

 

 

 

 

Para averiguar as relações entre os processos, os autores elaboraram quatro modelos teóricos, que foram testados pela modelagem de equação estrutural. Participaram da pesquisa 600 crianças dos anos iniciais e intermediários (do 1o ao 6o anos). O primeiro modelo estabelecia que o reconhecimento de palavras deveria influenciar a escrita à mão e o conhecimento ortográfico (sentido da relação: da leitura para a escrita). A integração da escrita motora e do conhecimento ortográfico se refere ao processo de transcrição, que será revisto posteriormente. O segundo modelo estabelecia que a compreensão de leitura era o fator preditivo da soletração/ortografia no contexto da composição, além da fluência e qualidade da composição (sentido da relação: da leitura para a escrita). O terceiro modelo previa que a escrita e a soletração/ortografia deveriam influenciar o reconhecimento de palavras (sentido da relação: da escrita para a leitura). Finalmente, o quarto modelo previa que a soletração e a composição de texto deveriam influenciar a compreensão de leitura (sentido da relação: da escrita para a leitura).

Como resultados do primeiro modelo, observou-se que o reconhecimento de palavras exerceu uma influência direta e significativa na escrita e conhecimento da ortografia das crianças de 1o ao 6o anos. Essa representação pode ser observada na Figura 1, dentro do processador da transcrição. Entende-se, a partir dessas relações, que reconhecer palavras corretamente pode facilitar a escrita e a soletração das crianças, possivelmente devido à representação das formas das letras e palavras na memória. Além disso, a habilidade para reconhecer palavras corretamente pode facilitar a criação de representações precisas e específicas de palavras na memória de longo prazo. Essas representações são acessadas durante a soletração e aumentam a capacidade para soletrar palavras corretamente, especialmente palavras com letras silenciosas ou alterações na relação fonema-ortografia que devem ser aprendidas.

Em relação ao segundo modelo, a compreensão de leitura exerceu uma influência direta e significativa na soletração, cuja representação pode ser observada nas flechas orientadas a partir dos módulos de compreensão em direção ao do reconhecimento de palavras da Figura 2. Essa relação poderia ser explicada pelo vocabulário que a criança possui, que contribui tanto para a compreensão de leitura baseada no texto como para o conhecimento da ortografia. Outra possibilidade poderia ser que crianças que compreendem melhor a leitura leem mais e estão expostas a mais palavras escritas, o que resulta em melhor conhecimento da ortografia.

A compreensão também influenciou significativamente a fluência da composição nos 2o, 3o e 6o anos escolares, assim como a qualidade da composição em todos os anos escolares. Além disso, a influência da compreensão foi superior para a qualidade do que para a fluência. Desse modo, a compreensão de textos pode influenciar a representação da linguagem e os componentes de geração de textos (Figura 1), afetando a qualidade e a quantidade de texto produzido. Crianças que compreendem melhor podem estar mais interessadas na leitura, o que leva a maior interesse na composição de texto e consciência de como autores os escrevem.

No que diz respeito ao terceiro modelo, observou-se que o reconhecimento de palavras foi influenciado significativamente pela escrita (em crianças do 1o ao 6o anos) e pelo conhecimento da ortografia (apenas no 2o ano), o que sugere que, ao ensinar a escrita e a ortografia, esse conhecimento pode ser transferido para o reconhecimento de palavras (Figura 1). Em comparação com o primeiro modelo, a influência do reconhecimento de palavras sobre a escrita foi mais forte do que a influência da escrita sobre o reconhecimento, o que indica uma relação bidirecional, mas assimétrica entre leitura e escrita. No caso da relação entre a soletração/ortografia e o reconhecimento de palavras, como a força das relações foi similar, os autores interpretaram como evidência de relações bidirecionais e recíprocas entre soletração/ortografia e reconhecimento.

Finalmente, para o quarto modelo, obteve-se uma influência significativa do conhecimento ortográfico para a compreensão de leitura em todos os anos, menos nos 5o e 6o anos (Figura 2). Assim, entende-se que a ortografia favorece a compreensão leitora nos anos iniciais, mas, posteriormente, deixa de exercer influência sobre ela. A qualidade da composição, por sua vez, associou-se à compreensão leitora nos 4o, 5o e 6o anos, contudo, não nos anos iniciais. Dessa forma, nos anos intermediários, a criança que escreve bem também deveria compreender bem. Nos anos iniciais, a ortografia é importante para a compreensão, todavia, conforme as crianças avançam na escola, a qualidade da produção textual passa a ser importante para a compreensão.

Desse modo, a escrita no nível da palavra, que se relaciona com o módulo do reconhecimento de palavras, contribui para a compreensão de leitura desde o início da aquisição da leitura e da escrita, enquanto a relação entre composição de texto e a compreensão de leitura no nível do discurso emerge apenas nos anos posteriores. Esses dados compõem parte da base do modelo desenvolvido por Berninger et al. (2002), que justificam as relações estabelecidas entre os processos e os módulos. A seguir, são exibidos alguns resultados de pesquisa que apoiam a contribuição das funções executivas para a leitura e a escrita.

 

Pesquisas sobre as funções executivas, a leitura e a escrita

Diversas pesquisas investigaram a influência das funções executivas na aquisição da leitura e escrita (por exemplo, Hooper, Swartz, Wakely, de Kruif, & Montgomery, 2002). Um exemplo de pesquisa que merece menção foi levada a cabo por Altemeier, Abbott e Berninger (2008), que investigaram o desenvolvimento da inibição (medida de inibição do instrumento Delis-Kaplan Executive Function) (Delis, Kaplan, & Kramer, 2001), mudança do foco da atenção (set switching, medida de mudança do mesmo instrumento) e mudança automática rápida (rapid automatic switching, subteste Rapid Automatic Naming of Words and Letters do Teste The Process Assessmente of the Learner) (Berninger, 2001) e a relação desse desenvolvimento com a melhoria dos processos de leitura (precisão e taxa de leitura e compreensão) e escrita (escrita e soletração).

Os resultados indicaram que a inibição e a mudança automática contribuem separada e conjuntamente com a aprendizagem da leitura e da escrita. Observou-se também que a proporção da variância explicada pelas funções executivas avaliadas variou de acordo com o ano escolar e com a tarefa. Em todos os anos escolares, as medidas das funções executivas contribuíram para a leitura cronometrada e não cronometrada de palavras reais e pseudopalavras. As funções previram significativamente o desempenho na tarefa de leitura sem medição de tempo de crianças do início da alfabetização, mas a sua contribuição foi sendo reduzida em anos posteriores. Uma possível explicação é que, conforme as crianças mais novas estão aprendendo a decodificar, as funções executivas orientam o processo de aprender a relacionar palavras faladas e escritas. Nesse momento da aprendizagem, a inibição e a mudança rápida e automática do foco de atenção são necessárias para suprimir códigos irrelevantes durante a recuperação de sons de letras ou reconhecimento global das palavras e mudar constantemente de letras e palavras escritas (Altemeier et al., 2008).

Em contraposição, a quantidade de variância explicada do desempenho em tarefas de leitura cronometradas cresceu constantemente nos anos finais. Aparentemente, quando as crianças aprendem a decodificar com precisão e reconhecer palavras familiares, o papel das funções executivas passa a se relacionar com a eficiência com a qual esses processos ocorrem em um intervalo de tempo. Nesse momento, as funções executivas estariam mais relacionadas com o desenvolvimento da fluência da leitura.

Ainda, nessa mesma pesquisa, em relação à escrita, as funções executivas explicaram certa variância da escrita e soletração. A previsão da expressão escrita em razão das funções executivas aumentou nos 3o e 4o anos, mas decaiu no 5o ano. Os autores sugeriram que os processos executivos mais importantes para as tarefas nos anos mais avançados não foram avaliados. Ainda, é interessante ressaltar que o desenvolvimento do 1o ao 4o anos das três funções avaliadas previu o desempenho da leitura e escrita no 4o ano. As mudanças longitudinais das funções se relacionaram com o desempenho em todas as tarefas de leitura e escrita no 4o ano, com a única exceção da relação da inibição com a produção da escrita.

Depois da breve explanação de algumas pesquisas que embasaram o modelo de Berninger et al. (2002) ao longo dos anos, é apresentado o modelo em si. Inicialmente, é explicado o sistema específico de escrita e, posteriormente, o de leitura.

 

Modelo cognitivo de leitura e escrita de Berninger

Sistema específico de escrita

O sistema cognitivo de escrita proposto por Berninger se compõe de quatro processadores, conforme Figura 1. São eles a geração de ideias, as representações da linguagem, o processador de transcrição e a geração de texto.

De acordo com o modelo, o processo de escrita se inicia quando a criança gera ideias, quer dizer, desenvolve ideias que deseja expressar no texto escrito. Essas ideias são representadas no sistema de linguagem, por meio de palavras, frases e/ou discurso. Posteriormente, essas ideias representadas em linguagem passam pela transcrição, processo que integra a recuperação do conhecimento ortográfico e o uso das respostas motoras necessárias para produzir tais símbolos, apresentado anteriormente (Berninger et al., 2002).

A transcrição é, portanto, um processo extremamente importante para a aquisição da escrita das crianças. É também muito laborioso no início da alfabetização, pois a criança deve fazer uso de recursos cognitivos para recuperar informações do sistema alfabético que ainda não são muito familiares e, ao mesmo tempo, deve exercitar os movimentos motores, que ainda não foram automatizados para a escrita das letras e das palavras.

Conforme pode ser observado na Figura 1, para a transcrição, é interessante ressaltar que a criança necessita de seu conhecimento prévio sobre a morfologia, fonologia e ortografia. Em uma divisão didática e artificial, esse sistema de relação entre fonologia, ortografia e morfologia da língua corresponde ao sistema de leitura, que será explicado posteriormente. É nesse ponto que existe uma integração entre os sistemas de leitura e de escrita, conforme os resultados apresentados anteriormente da pesquisa de Berninger et al. (2002). Os resultados sugeriram fortemente que a ortografia é a conexão entre os dois sistemas no início do processo de alfabetização, pois possibilita a transcrição de palavras e também favorece o reconhecimento delas.

Esse processo de transcrição permite a produção do texto escrito que, ao longo da aquisição da escrita, parte da escrita de letras, sílabas, palavras isoladas para as frases, até a construção do discurso em forma de texto. Conforme os processos de transcrição vão sendo automatizados, mais capacidade de atenção e de memória fica disponível para o esforço do processo de geração de texto (Abbott & Berninger, 1993).

A Figura 1 mostra também que pode haver uma transição direta do processador de geração de ideias ao processador de geração ou produção de texto. Esse é um dos pontos do sistema de Berninger que leva em consideração o processo de aquisição e aprendizagem dos alunos. Quer dizer, estudantes em etapas mais avançadas, ou mesmo adultos, quando dominam e automatizam os processos envolvidos na transcrição, são capazes de passar da geração de ideias à produção de texto automaticamente, sem a necessidade dos recursos cognitivos envolvidos no processador da transcrição.

De forma geral, esse é o sistema de escrita proposto por Berninger et al. (2002), que se inicia na formação da ideia do que se deseja expressar, passa por uma série de processos cognitivos, até chegar nos movimentos motores necessários para a escrita. Posteriormente, Berninger e Winn (2006) tornaram a contribuição das funções executivas mais explícita e detalhada, além de muito entrelaçadas com os processos específicos de escrita. Denominaram esse sistema como Not-So-Simple View of Writing.

Os autores optaram pela incorporação das funções executivas, pois são processos cognitivos subjacentes à habilidade de responder de forma adaptada às situações singulares e novas e sua operação serve para controlar e regular o processamento da informação (Sastre-Riba, 2006). Em outras palavras, são processos que, de forma conjunta, permitem a realização de comportamentos orientados a um objetivo, exercendo importante papel no gerenciamento das informações e na interação do indivíduo com o mundo de forma adaptativa e objetiva.

Muita atenção foi depositada na memória de trabalho para a aquisição da leitura e da escrita (por exemplo, Berninger, Richards, & Abbott, 2015; Berninger & Winn, 2006). Berninger e Winn (2006) incorporaram a perspectiva da memória de trabalho de Baddeley (2000) e em pesquisas posteriores de Berninger Richards, & Abbott (2015) adotaram o modelo de Baddeley apresentado em 2003, que fornece subsídios para a aprendizagem da linguagem. Esse modelo de memória de trabalho ainda contém quatro componentes, quais sejam, a central executiva, a alça fonológica, o esboço visuoespacial e o buffer episódico (Baddeley, 2000).

Brevemente, a central executiva, de capacidade limitada, é responsável pela coordenação e conexão entre os dois sistemas escravos, a alça fonológica e o esboço visuoespacial, o buffer episódico e a memória de longo prazo. A central executiva inclui três funções de atenção: a atenção seletiva, a mudança do foco da atenção e a capacidade de manutenção da atenção (Baddeley, 2003). Além disso, a central executiva é responsável pela ativação e atualização das representações na memória de curto prazo (Baddeley, 2000). A alça fonológica foi repensada como um mecanismo de integração dos códigos fonológicos, ortográficos e semânticos que apoiam a aquisição da linguagem (Baddeley, Gathercole, & Papagno, 1998). Por sua vez, o esboço visuoespacial processa informações visuais e espaciais que permitem a recodificação das informações entrantes para expressão da linguagem. Finalmente, o buffer episódico recupera as informações da memória de longo prazo e integra as informações que são processadas individualmente nos dois sistemas escravos. Então, após o processamento fonológico, ortográfico, semântico e visuoespacial nos respectivos sistemas escravos, o buffer episódico integra as informações episódicas e visuoespaciais para dar sentido e significado aos episódios.

Além da importância fundamental da consideração da memória de trabalho como processamento ativo, outros processos executivos são necessários nos sistemas de escrita e leitura. São processos que possibilitam o controle e regulação das habilidades escolares e que, quando aprendidos e utilizados adequadamente, permitem melhor organização cognitiva e, como consequência, produções textuais e leituras mais eficientes.

Nesse sentido, para a aquisição e eficiência da leitura e escrita de textos, a criança deve ser capaz de definir e estabelecer seus objetivos, como definir o que pretende ler ou escrever, e até quando. Além disso, a criança precisa planejar os passos necessários para atingir esses objetivos, além de monitorar e avaliar constantemente se a forma pela qual executa esses passos está sendo adequada para as metas propostas. Finalmente, o comportamento autorregulado da criança, apontado por Berninger como importante para os sistemas em questão, refere-se ao controle de processos básicos ou específicos de domínio com o intuito de atingir de forma flexível o objetivo proposto (Sastre-Riba, 2006).

 

Sistema específico de leitura

O sistema de leitura é considerado um sistema multinível, conforme Figura 2. Destaca-se que o processador de reconhecimento de palavras está inserido no processo de transcrição do sistema de escrita de Berninger apresentado anteriormente. O estudo de Berninger et al. (2002) mostrou, mediante modelagem de equação estrutural, que a relação entre o reconhecimento de palavras é direta e bidirecional com a ortografia; quer dizer, quanto melhor o conhecimento ortográfico das crianças, melhor será o seu reconhecimento de palavras e vice-versa (Berninger et al., 2002). Os autores concluíram que a leitura e a escrita estão conectadas pela ortografia da língua, ou seja, a ligação da ortografia com a leitura é realizada mediante o reconhecimento de palavras, e a conexão entre a ortografia e a escrita é realizada por meio do processo de transcrição (ortografia e movimentos motores).

Além disso, a representação do processador de reconhecimento de palavras inclui as duas rotas de leitura tradicionalmente conhecidas, que são a rota fonológica e a rota lexical. Nesse sentido, entende-se que o conhecimento ortográfico faz parte do sistema léxico da criança, que armazena a forma das palavras escritas. Esse sistema permite a leitura pelo reconhecimento global ou direto de palavras conhecidas; quer dizer, palavras que já façam parte desse sistema. Por outro lado, a fonologia permite que a criança faça o reconhecimento de palavras mediante o processo de decodificação, ou seja, pela conversão dos grafemas (formas escritas) em fonemas (sons das letras e sílabas). A aprendizagem gradual do sistema alfabético, a automatização das regras fonológicas e suas irregularidades possibilitam que, aos poucos, as crianças se tornem leitores mais fluentes mediante o reconhecimento direto das palavras, sem a necessidade de investir recursos cognitivos na decodificação mecânica do texto, possibilitando, assim, que mais recursos sejam investidos na compreensão do texto (Ehri, 2005).

Ainda, pode-se observar na Figura 2 que, para uma leitura eficiente, além do processador de reconhecimento de palavras, que inclui as relações entre a ortografia, morfologia e fonologia, o sistema de leitura necessita também do processamento sintático ou gramatical. Esse processador integra o reconhecimento de palavras com a compreensão do discurso baseado no texto lido pela criança (Kintsch, 1998). A compreensão do discurso baseado no texto se refere à compreensão da leitura propriamente dita. Assim, a proposta de Berninger é que o reconhecimento das palavras do texto em conjunto com as informações sintáticas e gramaticais que as crianças já aprenderam possibilita a compreensão de um texto lido. Essa situação é diferente da compreensão baseada na situação ou no contexto, que permite ir além do que está explícito no texto escrito. Esse tipo de compreensão permite fazer inferências e previsões que superam o texto explícito (Kintsch, 1998). Para tal, é necessário o resgate de informações e conhecimentos prévios do leitor oriundos da memória de longo prazo. Tais informações resgatadas podem estar relacionadas com a sintaxe e a gramática da língua, o que facilita a compreensão, e também com o conteúdo do texto, possibilitando que o leitor realize associações entre o conhecimento prévio e o transmitido pelo texto.

Berninger et al. (2002) ressaltam, ainda, que os processadores são semimodulares, com conexões bidirecionais entre o reconhecimento de palavras e o contexto da frase, e entre o contexto da frase e o discurso. Essas conexões permitem que os processadores se comuniquem entre si em duas direções, com o propósito de reconhecer todas as palavras necessárias para a compreensão do discurso baseado em texto ou em situação. Sempre que necessário, o leitor utiliza seu conhecimento sintático para facilitar ou possibilitar a compreensão de texto e para dar sentido a um conjunto sequencial de palavras. É isso que possibilita a compreensão de frases e de um discurso representado em um texto escrito.

Ainda, são considerados extremamente importantes para Berninger et al. (2002) os processos cognitivos também para o sistema de leitura. Dessa forma, para uma leitura eficiente, deve haver um controle atencional para a leitura, conforme indicado pelo estudo de Altemeier et al. (2008), assim como uma organização mais geral que inclui estabelecer os objetivos da leitura ou dos textos que devem ser lidos. Entende-se que o leitor eficiente planeja a leitura, revisa e avalia a sua compreensão e as informações já adquiridas, a necessidade de repassar o texto para melhorar a compreensão ou inferência acerca dos textos. Desse modo, a leitura também se beneficia do monitoramento e do comportamento autorregulado da pessoa. Igualmente necessária é a atuação da memória de trabalho, responsável por manter as informações recentemente lidas na memória de curto prazo para que possam ser elaboradas, compreendidas e manipuladas. A memória de trabalho também resgata as informações do armazém de longo prazo que sejam importantes para o contexto da leitura atual, o que auxilia na compreensão e possibilita relacionar o conteúdo com informações previamente adquiridas, assim como fazer inferências a partir do texto lido, ou seja, é o que favorece a compreensão baseada na situação ou no contexto. Além disso, os sistemas escravos da memória de trabalho processam a informação fonológica e a visuoespacial, que posteriormente são integradas para dar sentido ao episódio ou contexto da leitura.

Dessa forma, o modelo apresenta possíveis relações entre as funções executivas, a memória e a leitura. No entanto, a participação desses processos cognitivos não reduz a importância da consciência fonológica ou morfológica para a aprendizagem da leitura. O modelo acrescenta processos que devem ser levados em consideração durante a aquisição da leitura e que estão em processo de desenvolvimento nesse momento da aprendizagem das crianças.

 

Considerações sobre o modelo de Berninger

Os sistemas de leitura e de escrita propostos por Berninger et al. (2002) ressaltam a importância dos processos cognitivos básicos e das funções executivas como recursos necessários tanto para a aprendizagem como para o desenvolvimento dessas habilidades escolares. Nesse sentido, a escrita e a leitura são mais eficientes quando as crianças fazem uso das funções executivas, principalmente dos processos de estabelecimento de objetivos, planejamento, monitoramento e autorregulação.

É interessante salientar que uma das vantagens do modelo de leitura e escrita proposto é que sua complexidade e a consideração do envolvimento de diversos processos cognitivos representa melhor a cognição humana relacionada com a aprendizagem da leitura e escrita e o esforço cognitivo que a criança deve fazer para aprender. Berninger não descarta e nem minimiza a importância das rotas e estratégias, mas as contextualiza dentro de um modelo teórico cognitivo complexo e integrado que elucida a importância de outros processos e fatores relacionados com a aquisição da leitura.

Dessa forma, do ponto de vista cognitivo da aprendizagem da leitura e da escrita, o modelo sugere que deveria ser levada em consideração a influência de distintos processos cognitivos básicos, complexos ou específicos da linguagem que ainda estão se desenvolvendo nas crianças em fase de alfabetização. Além disso, o sistema integrado de leitura e escrita possui diferentes tipos de evidências de sua relevância e da relação entre os processos propostos, algumas das quais foram mencionadas aqui.

É interessante ressaltar que o modelo avança em relação a alguns modelos propostos anteriormente, como é o caso do de Ellis e Young (1988), por considerar os aspectos da aquisição da leitura e escrita e a importância dos processos para crianças que frequentam os anos escolares iniciais, intermediários e mais avançados, ou seja, em diferentes momentos da escolarização. Também é considerado o desenvolvimento dos processos cognitivos como influência da aquisição de algumas habilidades de leitura e escrita. Em relação à teoria das rotas de leitura, o modelo oferece um contexto de desenvolvimento cognitivo para que a criança comece a fazer uso da decodificação e/ou do reconhecimento global das palavras.

Assim, o modelo teórico proposto por Berninger et al. (2002) explica alguns resultados obtidos na literatura e relações entre processos. Mesmo que o modelo não explique todas as condições experimentais relacionadas com tarefas de leitura e escrita, tem sua utilidade para a contextualização teórica das pesquisas que investigam a aquisição e a integração dos processos de leitura e escrita.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Débora Cecilio Fernandes
Rua Frei Caneca, 3159, Bairro Santa Cruz
Guarapuava – PR – Brasil. CEP: 85015‑220
E-mail: debora.cecilio@gmail.com

Submissão: 16.9.2014
Aceitação: 19.11.2015

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