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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2017
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n2p98-107
ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL
Maternidade e sofrimento social em mommy blogs brasileiros
Maternidad y sufrimiento social en mommy blogs brasileños
Carlos Del Negro VisintinI; Tânia Maria José Aiello-VaisbgergII
IPontifícia Universidade Católica de Campinas, SP, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas, SP, Brasil
RESUMO
Esta pesquisa objetiva investigar o imaginário coletivo sobre a maternidade. Justifica-se na medida em que esta, apesar de suas facetas gratificantes, parece associada, na contemporaneidade, a sofrimentos socialmente determinados. Organiza-se pelo uso do método psicanalítico, operacionalizado em termos de procedimentos investigativos de levantamento, seleção, registro e interpretação de postagens de blogues pessoais brasileiros. A consideração do material permite a produção interpretativa de dois campos de sentido afetivo-emocional: "Sou mãe, logo existo" e "Mãe exclusiva". Tais campos indicam a prevalência, no conjunto do material, de um imaginário coletivo que favorece o sofrimento emocional com pesadas exigências à mulher.
Palavras-chave: maternidade; sofrimento social; imaginário coletivo; mommy blogs; método psicanalítico.
RESUMEN
Este estudio objetiva investigar el imaginario colectivo sobre la maternidad. Se justifica en la medida en que ésta, a pesar de sus facetas gratificantes, parece asociada, en la contemporaneidad, a sufrimientos socialmente determinados. Se organiza por medio del uso del método psicoanalítico, operacionalizado en procedimientos investigativos de levantamiento, selección, registro e interpretación de publicaciones de blogs personales brasileños. La consideración del material permitió la producción interpretativa de dos campos de sentido afectivo-emocional: "Soy madre, luego existo" y "Madre exclusiva". Los campos en el conjunto del material indican la prevalencia de un imaginario colectivo que, con pesadas exigencias a la mujer, favorece su sufrimiento emocional.
Palabras-claves: maternidad; sufrimiento social; imaginario colectivo; mommy blogs; método psicoanalítico.
Introdução
O conceito de sofrimento social, pioneiramente usado por Dejours (1993), servia e continua servindo para designar experiências emocionais desconfortáveis e dolorosas derivadas de situações de precariedade laboral associadas à perda de objetos sociais. Exemplos de objetos sociais seriam o acesso à saúde, ao trabalho e a políticas públicas de garantia de direitos do cidadão. Posteriormente, Kleinman, Das, & Lock (1997) ampliaram a abrangência do conceito, considerando como sofrimentos sociais experiências de vida emocionalmente difíceis geradas por modos de organização da vida social. Nessa perspectiva, situações de perseguição religiosa, de guerra, de tortura, de opressão, de racismo, de opressão contra mulheres e outras formas de preconceito devem ser vistas como produtoras de sofrimento emocional. Consideramos tal ampliação um avanço importante que pode enriquecer de modo significativo a psicologia clínica e a psicologia social da saúde. Por esse motivo, temos concordado com autores que definem sofrimentos sociais como aqueles que decorrem de situações de opressão, discriminação e exclusão, causando sentimentos de desamparo, humilhação, injustiça e culpa (Ambrosio, Aiello-Fernandes, & Aiello-Vaisberg, 2013).
Como sabemos, é frequente no campo do estudo dos sofrimentos sociais que pessoas e/ou grupos-alvos de discriminação se sintam humilhados e injustiçados, na medida em que são inferiorizados. Assim, sua humanidade é negada ora no sentido de uma animalização, como no racismo (Fanon, 1952), ora no sentido de uma objetificação, como no machismo (Bartky, 1990). Entretanto, há indícios de que a maternidade se configure como sofrimento social de modo diverso, na medida em que se expressa, sobretudo, por meio de angústia e sentimentos de culpa. Tal fato pode ser explicado pela prevalência de uma estrutura sociocultural que definiria a maternidade como um alvo idealizado, provocando desconforto emocional importante, na medida em que o prescrito socialmente se distancia daquilo que é vivenciado no cotidiano de cuidados dos filhos (Das, 2006; Schumacher, 2015).
Como sabemos, a idealização da maternidade ocorre, em nossa sociedade, no bojo da crença de que estar sob os cuidados da mãe biológica corresponde à solução natural e mais altamente satisfatória para o problema da condição de dependência do bebê e da criança. Contudo, estudos antropológicos revelam que são variadas as formas como as diferentes sociedades organizam as práticas de atendimento das necessidades dos bebês (Gottlieb, 2012; Rogoff, 2014). Assim sendo, a noção da mulher-mãe como a melhor cuidadora, a quem a criança se apegaria naturalmente, revela-se como visão que subestima a importância da cultura.
O arranjo cultural vigente na sociedade contemporânea gera, nas palavras de Odenweller & Rittenour (2017), estereótipos relativos tanto às mulheres que desenvolvem atividades profissionais como àquelas que se dedicam exclusivamente a tarefas domésticas. A situação é bastante complexa, pois o fato de as mulheres terem-se inserido no mundo laboral parece não afetar as expectativas de que sigam devotando-se à prole, segundo um esquema conhecido como dupla jornada feminina (Sullivan, 2015). Assim podemos afirmar que se constela, hoje, uma situação em que a mulher se vê duplamente exigida: como mãe e como profissional. Aquelas que se mantêm profissionalmente ativas tendem a se sentirem culpadas e sobrecarregadas. No entanto, enfrentam os problemas e usufruem das vantagens que caracterizam a vida daqueles que se engajam no mundo do trabalho. As outras, que se dedicam exclusivamente a atividades domésticas, entre as quais são incluídos os cuidados com os filhos, vivenciam outros desconfortos emocionais, de modo que se ligam a culpas por não assumirem geração de renda e realização profissional, um importante aspecto da vida adulta na sociedade contemporânea, como às inseguranças derivadas da posição de dependência econômica do marido. Desse modo, podemos admitir que todas as mulheres-mães são atingidas pelas exigências socialmente circulantes, mesmo que seja verdade que circunstâncias específicas possam acentuar ou atenuar seu mal-estar. Em outros termos, cabe, a nosso ver, admitir que a maternidade contemporânea se conforma como sofrimento social que atravessa condições de classe, raça, cultural e religião.
Tal ideia não soará estranha se pudermos nos lembrar de que uma sociedade que produz sofrimentos, por estar organizada de modo opressivo, discriminador, autoritário e preconceituoso em relação a vários grupos, entre os quais se incluem as mulheres, provavelmente não poupará integralmente aquelas que se tornam mães. Claro que não negamos que condições sociais específicas, bem como algumas circunstâncias, como uma doença grave, seja da mãe, seja do filho, afetem drasticamente as inúmeras formas, mais ou menos sofridas, como a maternidade é vivenciada. Entretanto, ao concebermos o sofrimento social da mulher-mãe como fenômeno que se insere na questão maior da opressão contra a mulher, não podemos deixar de destacar que esse atinge a todas as mulheres-mães.
O reconhecimento de que os modos concretos por meio dos quais as mulheres vivenciam o ser mãe, no mundo atual, correspondem à condição atravessada por sofrimento social e justificam, a nosso ver, a realização da presente pesquisa, cujo objetivo é investigar psicanaliticamente o imaginário coletivo sobre a maternidade, na medida em que um detalhamento desse fenômeno poderá produzir conhecimento relevante para a clínica psicológica, em vertentes psicoterapêuticas e psicoprofiláticas.
Método
Nesta pesquisa, privilegiamos a psicanálise como método, entendendo-a como fundamento de teorias e procedimentos clínicos que dele derivam. Partindo da perspectiva teórico-metodológica conhecida como psicologia concreta (Bleger, 1977), que utiliza material clínico gerado por esse método para produzir conhecimentos segundo um paradigma relacional, organizamos nossa pesquisa trabalhando com dois conceitos básicos: imaginários coletivos e campos de sentido afetivo-emocional. Concebemos os imaginários coletivos como condutas, na precisa acepção que o termo assume sob a pena de Bleger (1977). Os campos de sentido afetivo-emocional correspondem à concepção de inconsciente, forjada pela psicologia concreta enquanto proposta articulada ao redor do paradigma relacional. Deriva, portanto, da crítica e do abandono de uma visão segundo a qual o inconsciente seria instância intrapsíquica, em favor de sua concepção como campo intersubjetivamente plasmado do qual emergem as condutas. Ontologicamente, os campos se constelam a partir de atos humanos, não sendo metodologicamente pensáveis como derivados da ação de forças infra-humanas. Assim, produzidos por condutas, configuram-se como mundos dramaticamente habitados, por indivíduos e coletivos, a partir dos quais brotam novas condutas.
Procedimentos
Operacionalizamos o método psicanalítico em termos de procedimentos investigativos. Nós o fizemos com vistas a tornar maximamente claro o trajeto investigativo adotado, bem como favorecer a comunicação com pesquisadores que aderem a diferentes referenciais teórico-metodológicos:
1. Procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens.
2. Procedimento investigativo de registro do material.
3. Procedimento investigativo de interpretação do material.
Para cumprir o procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens, realizamos levantamentos no Google. Para tanto, utilizamos os seguintes critérios definidos a priori:
1. Postagens escritas por internautas que se identificam com mães.
2. Postagens provenientes de blogues pessoais brasileiros.
3. Postagens que tematizassem a depressão pós-parto.
O terceiro critério, relativo à seleção de postagens que tematizam a depressão pós-parto, corresponde a um artifício metodológico que se fez necessário em vista do copioso material disponível na internet. Sua adoção se fundamenta na ideia de procedimentos encobertos de pesquisa, que se tornam alternativas interessantes quando pesquisamos temas humanamente delicados. Tais procedimentos se valem da enunciação de um interesse que não coincide exatamente com o objetivo investigativo (Aiello-Vaisberg, 1995). Assim, valemo-nos da ideia de procedimentos encobertos para fazer o levantamento de postagens a partir do uso do termo "depressão pós-parto blogues", a fim de chegarmos a publicações que pudessem focalizar situações de sofrimento de mulheres-mães. Ou seja, não tomamos a depressão pós-parto nem como objeto de estudo nem como problema de pesquisa. Na verdade, optamos por estudar postagens sobre depressão pós-parto na medida em que se configuram como locus privilegiado para compreender de maneira mais profunda a articulação entre maternidade e sofrimento social.
Estabelecidos os critérios de seleção, realizamos buscas no Google em abril de 2015. Selecionamos as 30 primeiras postagens, tendo em mente que eram as mais acessadas - já que os resultados das buscas se apresentam em ordem decrescente de acesso. Após a leitura de todas as postagens, selecionamos somente aquelas escritas por internautas que se identificam como mães, o que resultou em 17 postagens. Num terceiro momento, ficamos com somente aquelas que expunham a experiência de sofrer depressão pós-parto, sobrando sete postagens. Devemos ressaltar que o Google automaticamente nos lançava a uma única postagem disponível em cada página, ou link, acessada. Dessa maneira, explicitamos, a bem do rigor metodológico, que não realizamos recortes nas narrativas das blogueiras, mas as utilizamos na íntegra.
O procedimento investigativo de registro do material constituiu-se pela transcrição das postagens tal como surgiram on-line. Realizamos tal transcrição tanto com vistas a preservar o material de um eventual desaparecimento da web como para facilitar o trabalho de interpretação, que exige leituras e releituras.
Cumprimos o procedimento investigativo de interpretação do material revisitando as postagens inúmeras vezes à luz dos pilares do método psicanalítico, ou seja, da atenção flutuante e da associação livre de ideias. Lemos as postagens, cultivando uma postura de acolhimento a toda e qualquer associação, emoção, sentimento e/ou lembrança, segundo o uso preconizado desse método clínico. Assim, inseridos numa trama transferencial de sentidos humanos, chegamos interpretativamente aos determinantes emocionais subjacentes às condutas em estudo, ou seja, aos campos de sentido afetivo-emocional. Esclarecemos tal procedimento investigativo observando as palavras de ordem cunhadas por Herrmann (2001), as quais, repousando sobre injunções do método psicanalítico, podem ser tomadas como guia para a interpretação psicanalítica do material: deixar que surja, tomar em consideração e completar a configuração do sentido afetivo-emocional emergente.
A pesquisa foi finalizada por meio da elaboração de interlocuções reflexivas, correspondentes a uma retomada das interpretações, ou seja, dos campos de sentido afetivo-emocional criados/encontrados à luz do pensamento de outros autores, cujas contribuições podem ampliar nossa compreensão sobre o fenômeno. Nessa fase do estudo, geralmente denominada discussão, abandonamos a atenção flutuante e a associação livre para realizar um trabalho de caráter teórico-conceitual.
Resultados
Quando realizamos pesquisa qualitativa com o método psicanalítico, os resultados não consistem no material selecionado, mas sim na proposição de interpretações. Essas, por seu turno, podem ser pensadas, grosso modo, como expressão do recalcado pelo indivíduo ou como campos intersubjetivos. Fundamentados na psicologia concreta, adotamos a segunda concepção do inconsciente, concebendo-o como conjunto de campos de sentido afetivo-emocional, que se definem de modo minimalista. A criação/encontro dos campos de sentido afetivo-emocional, ou seja, dos resultados interpretativos, deriva de inúmeras leituras em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias do conjunto de postagens.
O material obtido permitiu a produção interpretativa de dois campos de sentido afetivo-emocional: "Sou mãe, logo existo" e "Mãe exclusiva". O primeiro campo de sentido afetivo-emocional, "Sou mãe, logo existo", organizou-se ao redor da crença de que a mulher alcança a verdadeira felicidade apenas quando se torna mãe. O segundo campo, "Mãe exclusiva", organizou-se ao redor da crença de que a mãe biológica é a única pessoa capaz de bem cuidar do filho e que esta deve ser sua única missão de vida.
Discussão
Uma primeira leitura das definições dos dois campos de sentido afetivo-emocional, aqui propostos interpretativamente, parece-nos suficiente para indicar a prevalência de um imaginário coletivo sobre a maternidade que exige tanto que a mulher se dedique de forma integral e exclusiva aos cuidados dos filhos, renunciando a outras aspirações, quanto que se sinta plenamente feliz e realizada. Tal conjunção entre pesadas exigências e promessas de felicidade e realização pessoal abre um espaço impróprio para a vivência de sentimentos de insatisfação ou frustração, o que certamente gerará sofrimento emocional significativo. Fica claro que nos defrontamos com um quadro que mostra que o sofrimento que atinge a mulher-mãe opera pela via da idealização da maternidade, fenômeno complexo de aparente enaltecimento, cujo sentido, na verdade, está profundamente atrelado a modos de organização cultural e política que podemos designar como androcêntricos.
Não pairam dúvidas sobre o fato de que o bebê humano nasce carente de cuidados sem os quais não logra sobreviver. Devemos, entretanto, destacar que o nascimento marca uma importante mudança de condição, na medida em que, em presença de adultos cuidadores, o recém-nascido ganha possibilidade de sobreviver, mesmo face à morte eventual da mãe biológica.
Devemos nos recordar de que Winnicott (1983; 1992) afirma, a partir de sua prática clínica, que os cuidados iniciais podem favorecer ou prejudicar os delicados processos de constituição do self, que seriam fundamentais para a saúde mental futura do indivíduo. Dessa forma, ensina que os bebês humanos nascem em condição de dependência absoluta, necessitando de adultos devotados que, genuína e autenticamente preocupados com suas necessidades, possam a ele adaptar-se ativa e sensivelmente.
Estaríamos, ao constatar a dependência do bebê humano, diante de um fato biológico. Orientados pela teoria winnicottiana, sabemos que os bebês humanos obrigatoriamente necessitam de cuidados não apenas para sobreviver, mas também para realizar conquistas de amadurecimento a partir das quais possam conquistar a condição psicológica de existência singular (Winnicott, 1992). No entender desse autor, o melhor tipo de cuidado é aquele fornecido pela mãe biológica que vivencia o estado de preocupação materna primária (Winnicott, 1958).
Em virtude, entretanto, de seu caráter fortemente biologizante, essa teoria merece ser criticada à luz das advertências de Bleger (1977), relativas a abordagens reducionistas de estudo das condutas humanas. Esse autor define alguns mitos, que seriam visões sobre o ser humano que o consideram de modo abstrato, natural e isolado dos contextos sociais nos quais transcorre a vida de indivíduos e coletivos. Tais mitos corresponderiam a alguns pressupostos do pensamento ocidental, segundo os quais o ser humano seria originariamente não social e dotado de uma natureza pura e essencial, anterior à experiência. Propomos que o conceito de preocupação materna primária pode ser considerado como expressão de tais mitos, pois demonstra uma concepção de maternidade desvinculada do drama vivido pelas pessoas, que são seres sociais e vinculares, já que forças infra-humanas hormonais causariam o retraimento na genetriz. Destarte, o reconhecimento de que o primeiro ambiente pós-natal possa desempenhar função relevante nos processos de constituição de self não implica associarmos bons cuidados à mãe biológica, desvalorizando qualquer outra forma de organização social de cuidados de bebês.
A nosso ver, cabe afirmar que os dois campos de sentido afetivo-emocionais aqui criados/encontrados podem ser considerados como expressões de tais mitos. Percebemos que ambos se apresentam atrelados. O primeiro campo, "Sou mãe, logo existo", vende à mulher a crença de que sua vida estaria plenamente realizada caso se tornasse genetriz. O segundo campo, "Mãe exclusiva", vincula-se ao primeiro com a ideia de que a mãe biológica seria a melhor cuidadora e que essa deveria ser sua missão de vida. Podemos observar, portanto, que os campos de sentido afetivo-emocionais demonstram crenças de acordo com as quais a mãe seria um ser dotado de incrível capacidade de doação. Tais características chocam-se, visivelmente, com o que a vida contemporânea exige das pessoas, em termos de elevado individualismo.
Sustentados pelos estudos de Gottlieb (2012) e de Rogoff (2003), podemos observar que o nascimento abre a possibilidade de diversos arranjos culturais para lidar com a dependência do bebê humano. Em sua proposta por uma antropologia de bebês, Gottlieb (2012) dissertou sobre como uma tribo costa-marfinense organiza-se quando um bebê nasce. Ao reconhecerem a dependência do recém-nascido, outras pessoas, e não somente a mãe biológica, encarregam-se de seu cuidado. Por sua vez, Rogoff (2003), utilizando como referencial a psicologia sociocultural, propõe analisar semelhanças e diferenças no desenvolvimento humano que ocorre em várias sociedades, o que facilita metodologicamente uma avaliação sobre o papel desempenhado pela cultura. Explora, por exemplo, que o cuidado infantil se dá de inúmeras maneiras, não se restringindo ao que é proporcionado pela mãe biológica. Dessa feita, sentimo-nos confiantes ao afirmar que a ideia da progenitora como a melhor cuidadora seria um constructo social, enquanto a dependência do bebê não é. Por conseguinte, parecem realmente desacertadas as abordagens que colocam a maternidade como fenômeno biológico, abstrato e isolado dos campos vinculares e dos contextos macrossociais.
Badinter (2012) abaliza que as ciências biomédicas tiveram papel na criação de crenças - que perduram até hoje -, que negam as diferentes possibilidades sociais de cuidado de bebês, além de reforçar certas ideias, como maternidade natural, instinto materno e dever da "boa mãe". Nessa linha de pensamento, parecem equivocadas algumas ideias segundo as quais a gestação e o parto garantiriam um vínculo entre a progenitora e o bebê, desqualificando a importância das dimensões psicológicas e sociais dos fenômenos humanos. Consoante aos resultados da nossa pesquisa, lembremo-nos de que, em estudo empírico, Granato, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2011) desvendam que existe uma expectativa de que a mulher vivencie a maternidade de forma entusiasmada, sublime e prazerosa. Assim, as pesquisadoras advertem que certas crenças relacionadas à ideia e à fantasia da mãe como a melhor cuidadora do bebê poderiam servir para diversos fins, entre os quais "manter a alienação social quanto à responsabilidade pelo cuidado das crianças" (Granato, Tachibana, & Aiello-Vaisberg 2011, p. 87). Como se vê, é patente a preocupação das autoras com tendências a idealizar de modo abstrato uma das soluções possíveis para o problema do cuidado de bebês e das crianças. Além disso, revelam preocupações com o afastamento de outras figuras familiares e sociais do contato eticamente comprometido com bebês e crianças, o que provavelmente concorreria, na contemporaneidade, para formas mais solidárias de convivência comunitária.
Finalizamos lembrando, malgrado as limitações que compartilha com estudos qualitativos, que esta pesquisa traz consigo elementos que merecem ser considerados por aqueles que se dedicam à clínica psicológica em geral e à clínica infantil em particular. A associação entre maternidade e sofrimento social se constitui, a nosso ver, como tema relevante para futuras investigações.
Referências
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Endereço para correspondência:
Carlos Del Negro Visintin
PUC-Campinas, Programa de Pós-graduação em Psicologia
Av. John Boyd Dunlop, s/n - Jardim Ipaussurama
Campinas - SP, 13060-904
E-mail:carlosvisintin@hotmail.com
Submissão: 14.12.2016
Aceitação: 20.6.2017