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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2017
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n2p161-173
ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Câncer infantil: uma análise do impacto do diagnóstico
Cáncer infantil: un análisis del impacto de diagnóstico
Fernanda Rosalem CapriniI; Alessandra Brunoro MottaII
IUniversidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil
RESUMO
O diagnóstico de câncer representa um impacto significativo tanto para os pacientes quanto para suas famílias, na medida em que estressores potenciais os colocam em uma situação de vulnerabilidade. Com o objetivo de analisar o impacto psicossocial do diagnóstico de câncer, este estudo teve como participantes 12 crianças, com idade entre 6 e 12 anos (M = 8,75; DP = 2,05), de um hospital na Grande Vitória, no Espírito Santo, e seus cuidadores. Foram avaliados o enfrentamento da hospitalização (Instrumento de Avaliação das Estratégias de Enfrentamento da Hospitalização/AEH) e o risco psicossocial (Psychosocial Assessment Tool/PAT). Dados sociodemográficos e clínicos foram obtidos pela consulta ao prontuário. Os dados foram submetidos a análise estatística descritiva. O risco psicossocial apresentou classificação clínica. Sobre o enfrentamento, foram verificadas estratégias adaptativas, como distração e suporte social, assim como estratégias menos adaptativas, como ruminação. Este estudo contribui para a área do coping pediátrico e indica possíveis focos de intervenção psicológica.
Palavras-chave: coping; câncer em crianças; psico-oncologia; risco psicossocial; psicologia pediátrica.
RESUMEN
El diagnóstico de cáncer es un impacto significativo tanto para los pacientes como para su familia, en la medida en que los factores estresantes potenciales los pusieron en una situación vulnerable. Con el objetivo de analizar el impacto del diagnóstico del cáncer la presente investigación tuvo como participantes a 12 niños, de edades comprendidas entre los 6 y 12 años (M = 8,75; DP= 2,05), en un hospital en la Grande Vitória/ES. Se evaluó, el momento del diagnóstico, el enfrentamiento a la hospitalización (AEH); riesgo psicosocial (Psychosocial Assessment Tool/PAT); y variables sociodemográficas y clínicas (Ficha Médica). Datos fueron sometidos a análisis de estadística descriptiva. El riesgo psicosocial se mostró elevado durante el periodo evaluado. Sobre el enfrentamiento, fueron verificadas estrategias adaptativas (distracción, apoyo social), así como estrategias menos adaptativas (rumia). Este estudio presenta contribuciones para el área del coping pediátrico e indica posibles focos de intervención psicológica.
Palabras-claves: coping; cáncer en niños; psicooncologia; riesgo psicosocial; psicología pediátrica.
O momento do diagnóstico do câncer na infância é descrito como altamente ameaçador e de difícil manejo para a família e, também, para a criança (Kohlsdorf & Costa Junior, 2012). No curso da doença, o diagnóstico constitui-se na primeira etapa de um processo que pode ter inúmeras fases: início do tratamento, remissão, término do tratamento médico, sobrevida, cura, recidiva, fase terminal, morte e ajustamento familiar após a morte do paciente, quando esse for o caso (Katz, Dolgin, & Varni, 1990).
Na fase do diagnóstico do câncer na criança são observadas reações de estresse e sofrimento psicológico tanto nos pacientes quanto em seus familiares (Hildenbrand, Clawson, Alderfer, & Marsac, 2011; MacLaren & Cohen, 2005; Pai et al., 2008). Tais reações psicológicas podem ser amplificadas por estressores da doença e do tratamento, como o afastamento do ambiente familiar, uma vez que, em geral, é no hospital que o processo de diagnóstico e início de tratamento se desenrola (Kohlsdorf & Costa Junior, 2012; Silva & Cabral, 2015). A etapa do diagnóstico caracteriza-se, portanto, como um momento em que a intervenção psicológica precoce junto à família se faz necessária, de modo que ela consiga ser fonte de apoio significativo para a criança (Hildenbrand et al., 2011).
As situações que caracterizam o tratamento do câncer infantil envolvem também a família e suas variáveis afetivas, sociais e econômicas, podendo se constituir em uma condição de risco psicossocial tanto para o próprio paciente como para sua família (Rech, Silva, & Lopes, 2013). Esse risco psicossocial, somado ao risco biológico da presença do câncer, torna essa população vulnerável ao manejo dos desafios da doença e de seu tratamento (Kazak et al., 2011).
Assim, no que se refere à família, a literatura tem indicado prioridades para a pesquisa na área, com destaque para a necessidade de identificar famílias que se encontram em risco no período do diagnóstico (Kazak et al., 2011). Uma das razões para essa necessidade é a constatação de que o funcionamento familiar no diagnóstico é preditor do ajustamento posterior, de modo que famílias que apresentam mais dificuldade no diagnóstico, com níveis elevados de ansiedade, por exemplo, continuam a experimentar níveis elevados de sofrimento psicológico, inclusive quando o tratamento é concluído (Patenaude & Kupst, 2005).
Na literatura as pesquisas buscaram atender a essa prioridade, especialmente, com estudos que utilizaram o Psychossocial Assessment Tool (PAT) para a avaliação de risco psicossocial familiar no câncer infantil. Seus achados mostram que as famílias, em geral, compartilham reações de sofrimento e angústia pela presença do câncer, mas conseguem lidar bem com os desafios e as ameaças do diagnóstico. Entretanto, existem famílias que experimentam níveis mais elevados de risco psicossocial, exigindo intervenção mais precoce e adequada às suas necessidades (Kazak et al., 2011).
Diante do exposto, o diagnóstico de câncer tem impacto sobre a criança e a família, de modo que suas características psicossociais podem atuar como fatores de risco ou proteção, capazes de afetar o uso de estratégias de enfrentamento da doença pela criança. Neste ponto, o coping ou, como pode ser entendido em português, as estratégias de enfrentamento surgem como uma variável significativa para compreender esse fenômeno de maneira mais completa. Em uma perspectiva desenvolvimentista, que define o enfrentamento como um processo de regulação sob uma condição de estresse, as estratégias de enfrentamento são acionadas a partir da presença de estressores percebidos pela criança como um desafio ou ameaça às suas necessidades psicológicas (Skinner & Zimmer-Gembeck, 2007).
No câncer infantil, tais estratégias poderão variar em função da fase do tratamento (Levy, Kronenberger, & Carter, 2008). Assim, o modo como a criança enfrenta a doença em cada uma das fases ou situações do tratamento terá um efeito sobre o enfrentamento das fases posteriores, tornando evidente a relevância de intervenções precoces, ainda na fase de diagnóstico, a fim de que o enfrentamento nas fases subsequentes seja facilitador, promovendo uma melhor adaptação no futuro (Kusch, Labouvie, Ladisch, Fleischhack, & Bode, 2000).
Em estudos que verificaram o enfrentamento de crianças com câncer em diferentes momentos do tratamento, estratégias de distração e ruminação têm sido as mais referidas pela criança (Hostert, Motta, & Enumo, 2015). Especificamente no período do diagnóstico recente do câncer, há uma lacuna na literatura nacional, não havendo estudos brasileiros que busquem compreender o enfrentamento da criança.
Desse modo, justifica-se a proposição de um estudo que tenha como objetivo analisar o risco psicossocial familiar e as estratégias de enfrentamento de crianças com câncer recém-diagnosticadas. O estudo está inserido em uma pesquisa de mestrado mais ampla e de caráter longitudinal, sendo apresentado aqui o recorte transversal que responde ao problema de pesquisa referente à temática do impacto do diagnóstico do câncer infantil.
Método
Participantes
Participaram dessa pesquisa 12 crianças, de ambos os sexos (meninas = 58,3%; meninos = 41,7%), com idades entre 6 e 12 anos (M = 8,75; DP = 2,05), diagnosticadas com câncer, no Serviço de Onco-Hematologia de um hospital infantil público, em Vitória no Espírito Santo. Seus pais e/ou responsáveis também participaram como informantes.
Tais crianças compuseram uma amostra de conveniência, considerando os critérios de inclusão: (a) ter recebido o diagnóstico de câncer há, no máximo, um mês (30 dias); e (b) ter idade entre 6 e 12 anos, considerando a necessidade da compreensão dos instrumentos da pesquisa. Foram excluídos os casos de crianças cujo diagnóstico era recidivo da doença e crianças que se encontravam no centro de tratamento intensivo ou que deram entrada ao hospital em estado grave.
Instrumentos
O Psychosocial Assessment Tool (PAT) (Pai et al., 2008), instrumento traduzido para o português e validado nacionalmente por Santos (2012), avalia o risco psicossocial familiar. O PAT é composto por sete subescalas que abordam domínios de risco psicossocial, a saber: Estrutura familiar e fontes, Suporte social, Problemas familiares, Reações ao estresse, Crenças familiares, Problemas com as crianças, e Problemas com os irmãos. Essas dimensões são capazes de capturar características e padrões de funcionamento que colocam a família da criança com doença crônica em uma situação de risco psicossocial (Pai et al., 2008). As subescalas contêm itens cuja modalidade de resposta se caracteriza por dois tipos: resposta sim/não, e resposta em uma escala likert. Cada item da escala é classificado de maneira dicotômica como sendo um indicador de risco ou não. A pontuação total do PAT 2.0 pode variar entre 0 e 7 pontos, e a análise dessa pontuação permite a classificação do risco psicossocial da família em três categorias: (a) Universal, caracterizada por risco leve, cuja pontuação total é menor que 1; (b) Alvo, com risco moderado e pontuação total igual ou maior que 1 e menor que 2 (> 1, e < 2); e (c) Clínico, com risco elevado e pontuação total maior ou igual a 2 (> 2). Os dados de consistência interna do instrumento são fortes (α = 0,81) e os índices de teste-reteste adequados (r = 0,78 - 0,87, p < .001), indicando correlações significativas para mães e pais. O PAT 2.0 é respondido por um dos pais e/ou responsável pela criança, e sua aplicação dura aproximadamente 18 minutos (Pai et al., 2008).
O Instrumento de Avaliação das Estratégias de Enfrentamento da Hospitalização (AEH), elaborado por Motta (2001; 2007), avalia os estressores e as estratégias de enfrentamento de crianças hospitalizadas, com idade entre 6 e 12 anos. É composto por 20 pranchas representativas dos comportamentos de enfrentamento: brincar, assistir à TV, cantar e dançar, rezar, estudar, conversar, ouvir música, ler gibi, tomar remédio, buscar informações, chorar, raiva, esconder, ficar triste, desanimar, fazer chantagem, pensar em fugir, sentir culpa, sentir medo e pensar em milagre. Ao ser apresentada a cada uma das pranchas, a criança responde o quanto emprega os comportamentos durante a hospitalização, classificando a ocorrência destes em uma escala likert que varia de 0 (nunca) até 4 (sempre). Para cada comportamento, a criança justifica sua resposta, o que permite a classificação do seu relato nas macrocategorias de enfrentamento: autoconfiança, busca de suporte, resolução de problemas, busca de informação, acomodação, negociação, delegação, isolamento, desamparo, esquiva, submissão e oposição. Essa classificação é baseada na Teoria Motivacional do Coping (TMC), proposta por Ellen Skinner e seus colaboradores (Skinner & Zimmer-Gembeck, 2007; Skinner, Edge, Altman, & Sherwood, 2003).
Procedimento
A coleta de dados foi realizada no período do diagnóstico de cada criança. Para isso, foi estabelecido como tempo de diagnóstico o período de até um mês (30 dias) do recebimento do diagnóstico. Essa etapa ocorreu entre os meses de março e novembro de 2013. Após a identificação das crianças que agregavam os critérios para participação na pesquisa, foi realizado o contato com a família para a apresentação dos objetivos da pesquisa, esclarecimento sobre as condições de confidencialidade e de respeito pelo bem-estar da criança, assim como sobre o caráter voluntário da sua participação; e somente depois foi obtida a autorização da participação da criança no estudo. A criança também foi comunicada sobre a pesquisa, assinando o Termo de Assentimento para participação. Após a obtenção de Consentimento e Assentimento do pai/responsável e da criança, respectivamente, procedeu-se à aplicação dos instrumentos junto aos cuidadores (PAT) e junto às crianças (AEH). A coleta de dados só foi iniciada após os procedimentos relativos à sua aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa, em consonância com a Norma nº. 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - Conep/Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, sob número de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 112580112.5.0000.5542.
A aplicação dos instrumentos junto aos participantes foi realizada pela pesquisadora, individualmente, nas dependências do hospital (Enfermaria e Ambulatório). Inicialmente, a pesquisadora aplicava o PAT (cuidador) e, em seguida, a abordagem era feita à criança para a aplicação do AEH. É importante informar que a obtenção dos dados sobre o enfrentamento da criança foi feita na ausência do cuidador, da mesma forma que as crianças não presenciaram a coleta de dados sobre risco psicossocial. O tempo total de aplicação dos instrumentos foi de, aproximadamente, 60 minutos.
Os dados coletados por meio dos instrumentos (PAT e AEH) foram processados e analisados segundo a orientação de seus próprios manuais, normas e/ou indicações autorais. Os estressores da hospitalização, medidos pelo AEH, foram submetidos a análise de conteúdo. Posteriormente, os dados gerados em todos os instrumentos, juntamente com os dados clínicos, foram analisados por meio de estatística descritiva, calculando-se frequência, proporção, média, mediana e desvio-padrão.
Resultados
Dados de avaliação do risco psicossocial da família
A análise do escore total do PAT permitiu verificar que mais da metade das famílias apresentava fatores de risco psicossocial em nível clínico (58,3%), 25% em nível alvo, e somente 16,7% estava classificada no nível de risco universal.
A análise detalhada dos fatores que geraram a classificação de risco mostrou que, no período do diagnóstico recente, "Problemas familiares" (M = 0,50) e "Problemas com a criança" (M = 0,50) representaram contextos que colocam a família da criança com câncer em uma situação de maior vulnerabilidade. As "Crenças familiares" sobre a doença (M = 0,03) e o "Suporte social" (M = 0,11), no entanto, apresentaram médias inferiores, representando menor risco para as famílias no momento do diagnóstico. A Tabela 1 representa os resultados encontrados em cada uma das subescalas.
Dados de avaliação do enfrentamento da criança com câncer
Por meio do AEH, foi possível verificar que os estressores mais referidos no contexto da hospitalização foram os "procedimentos médicos invasivos" (n = 9), como mostra o relato: "o pior que tem aqui no hospital é tirar sangue" (menina, 6 anos). Em menor proporção foram descritos os estressores: "medicação oral" (n = 2); "mudança corporal" (n = 1) e "restrição alimentar" (n = 1).
Na avaliação dos comportamentos de enfrentamento, verificou-se, por um lado, a prevalência dos comportamentos "tomar remédio" (M = 3,3), "conversar" (M = 2,4), "desanimar" (M = 2,2), "ficar triste", "assistir à TV" e "rezar" (M = 2,1). Por outro lado, os comportamentos menos referidos pelas crianças foram "fazer chantagem" (M = 0,5) e "esconder" (M = 0,2) (Figura 1).
A Tabela 2 apresenta as macrocategorias de enfrentamento, obtidas a partir da análise das estratégias, referidas nos relatos de justificativa da criança para os comportamentos de enfrentamento. Com relação às estratégias de enfrentamento medidas pelo AEH, verificou-se que as maiores médias foram obtidas nas estratégias inseridas nas macrocategorias de enfrentamento "acomodação" (M = 4,25; DP = 3,17) e "submissão" (M = 2,92; DP = 1,51).
Na macrocategoria de enfrentamento "acomodação" foram identificadas as seguintes estratégias de enfrentamento nas falas das crianças: distração, aceitação e reestruturação cognitiva. O relato de uma criança sobre os comportamentos de assistir à TV e brincar, respectivamente, representa a funcionalidade da estratégia de distração: "Eu assisto TV sempre, porque a gente se distrai" e "Porque a gente se diverte" (Menina, 7 anos).
A "submissão" também ficou evidenciada nos relatos, com exemplos da estratégia de ruminação, em que o foco da criança mantém-se nos aspectos negativos da situação estressora, foram identificadas nos relatos sobre "ficar triste" e "sentir raiva", respectivamente: "sempre fico triste porque é chato ficar aqui" (menina, 8 anos); e "às vezes, porque tem que tomar injeção toda hora" (menina, 6 anos).
Por outro lado, "oposição" (M = 0,08; DP = 0,29), "busca por informação" (M = 0,17; DP = 0,39) e "autoconfiança" (M = 0,33; DP = 0,65) apresentaram menores médias. Destaca-se, ainda, a ausência de relatos que referissem estratégias das macrocategorias de enfrentamento: "Desamparo", "Delegação", "Isolamento" e "Negociação" (Tabela 2).
Discussão
Essa pesquisa se propôs a investigar o impacto do diagnóstico de câncer em crianças e suas famílias, atendendo à necessidade de melhor compreensão de uma das fases do tratamento do câncer que possui demandas específicas e de importante impacto psicológico para a criança e a família (Katz, Dolgin, & Varni, 1990). Para tanto, considerou que características psicossociais da família podem ser afetadas pelo diagnóstico de câncer, interferindo no uso estratégias de enfrentamento pela criança.
A respeito do risco psicossocial, verificou-se que a amostra apresentou níveis clínicos e alvo, em sua maioria. Esse dado destacou-se na medida em que se difere daqueles encontrados na sociedade norte-americana (Kazak et al., 2011) e no próprio estudo de validação para a população brasileira (Santos, 2012). A diferença observada se traduz em uma condição psicossocial mais negativa para a amostra desse estudo, uma vez que as famílias estavam sob uma condição de maior vulnerabilidade no período do diagnóstico, com significativa demanda de suporte psicossocial.
Apesar de o estudo não ter obtido informações sobre as condições de gravidade e estadiamento da doença, sabe-se que em contextos de atraso do diagnóstico e de doença avançada, o impacto do tratamento é maior e as chances de cura são reduzidas (Zouain-Figueiredo, 2012). Esse cenário caracteriza a realidade do contexto investigado, em que a análise de 25 anos de registros de câncer indicou uma proporção maior de casos de doença avançada no momento do diagnóstico (Zouain-Figueiredo, 2012), podendo explicar a particularidade de um risco psicossocial elevado na amostra desse estudo, e mostrando que o impacto do diagnóstico tardio se estende aos aspectos psicossociais da criança e de sua família.
A análise específica dos domínios do risco psicossocial indicou que respostas de tristeza prolongada, preocupações e medos foram referidas, juntamente com outros problemas anteriores ao diagnóstico e específicos para a família (conflitos conjugais, ingestão de bebida alcoólica, por exemplo) e para a criança (atraso no desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem, entre outros). Tais domínios apresentaram maior risco no estudo de Santos (2012) e contribuem para a compreensão do período do diagnóstico como sendo de sofrimento psicológico importante. Em uma perspectiva mais positiva, estudos referem haver uma diminuição do sofrimento após seis meses de tratamento (Kohlsdorf & Costa Júnior, 2012), especialmente, se as demandas de intervenção psicossocial forem precocemente identificadas e incorporadas ao processo de tratamento (Kazak et al., 2011).
Uma vez conhecidas e analisadas as variáveis do contexto familiar da criança (risco psicossocial) no período do diagnóstico recente, buscou-se compreender o enfrentamento da criança hospitalizada. A começar pelos estressores, verificou-se que os Procedimentos Médicos Invasivos (PMI) foram os mais referidos. Em pesquisas realizadas em âmbito internacional, esse estressor está inserido em categorias mais amplas, a saber: tratamento do câncer e efeitos colaterais (Hildenbrand et al., 2011) e efeitos físicos (Rodriguez et al., 2012), que incluem ainda dor, perda de cabelo, entre outros. No estudo de Rodriguez et al. (2012), a alteração na rotina diária foi ainda mais referida que os PMI. Para esses autores, mais do que considerar o câncer como um estressor, é relevante conhecer os subdomínios desses estressores, os quais devem ser medidos mais de uma vez ao longo do tratamento, já que o curso da doença apresenta fases com estressores compartilhados, mas com intensidade e grau de incapacitação, diferenciados (Rodriguez et al., 2012).
No período do diagnóstico recente, os comportamentos de enfrentamento mais referidos, por meio do AEH, foram: tomar remédio, conversar e desanimar. Esse dado se diferenciou de estudos anteriores que utilizaram o AEH junto a crianças com câncer (Hostert, Motta, & Enumo, 2015), uma vez que desanimar esteve entre as respostas mais frequentes das crianças. Nesse estudo, o foco esteve no momento do diagnóstico, em que reações de sofrimento também referidas na medida do risco psicossocial, estão mais presentes.
Junto a esses comportamentos e emoções de valência negativa (desânimo, tristeza, raiva, medo e culpa), o repertório de enfrentamento das crianças incluiu comportamentos de tomar remédio, conversar e assistir à TV entre os mais frequentes.
O comportamento de tomar remédio foi o mais referido pelas crianças. De fato, o primeiro mês de diagnóstico compreende um período em que a criança é submetida a exames para esclarecimentos específicos do diagnóstico e prognóstico da doença, bem como é iniciada a terapêutica medicamentosa, havendo consonância entre o relato da criança referente ao comportamento de tomar remédio e a realidade da rotina de hospitalização. Assim, apesar de o comportamento de tomar remédio se associar com o estressor PMI, a criança se engaja em atividades prazerosas com as opções disponíveis no ambiente e favorece a resolução de problemas, caracterizando, assim, um processo adaptativo positivo.
O engajamento da criança no comportamento de assistir à TV, especialmente quando há restrição de movimentos por punção venosa, no entanto, pode levar ao emprego de estratégias de enfrentamento de distração passiva (MacLaren & Cohen, 2005). Segundo esses autores, crianças em uma condição passiva podem se distrair mais e sofrer menos do que uma criança em situação de distração ativa. Tal como "assistir à TV", o comportamento de "conversar" pode ser emitido mesmo em condições restritivas, até mesmo pelo fato de que as crianças têm sempre ao seu lado um adulto responsável e fonte de suporte social, na maioria das vezes a própria mãe.
Os comportamentos de enfrentamento descritos pelas crianças apresentaram funcionalidades que permitiram classificá-los em estratégias características das categorias de enfrentamento de acomodação, relacionada a um desfecho adaptativo positivo e, também, submissão, relacionada a um desfecho adaptativo negativo (Skinner & Zimmer-Gembeck, 2007; Ramos, Enumo, & Paula, 2015). Os efeitos negativos do tratamento, bem como a eminência de exposição a procedimentos dolorosos levam a criança a adotar estratégias de ruminação e pensamento intrusivo diante do estressor que podem ser compreendidas como estratégias de submissão. Esse dado tem sido encontrado em estudos anteriores com o AEH, os quais são unânimes em afirmar que a presença dessas estratégias, mesmo diante de um repertório comportamental que inclui estratégias adaptativas, é indicador da necessidade de intervenções com foco no enfrentamento, ao longo do tempo (Hostert, Motta, & Enumo, 2015).
Verifica-se, portanto, que se, por um lado, a criança avalia os estressores como desafiadores e determina cursos de ação voltados para o engajamento com atitudes mais flexíveis e ativas, as quais a levam a se distrair, ver o lado positivo da situação estressante e ainda aceitar o problema enfrentado; por outro lado, ela também sente medo e pode ter dificuldade para lidar com os recursos fornecidos pelo contexto, levando-a a manter um foco passivo e repetitivo nos aspectos negativos da situação, com ênfase aos danos e às perdas do evento estressante (Skinner et al., 2003).
Esse estudo apresenta limitação na verificação de associações entre as variáveis de interesse: risco psicossocial familiar e estratégias de enfrentamento da criança, devido ao tamanho da amostra. Desse modo, estudos subsequentes poderiam compor amostras maiores e com maior amplitude de variação na idade dos participantes, que permitiriam testar modelos de relação entre as variáveis e verificar diferenças desenvolvimentais no enfrentamento da hospitalização em crianças com câncer, respectivamente.
Compreende-se que a experiência da criança com câncer no momento do diagnóstico reflete a busca por uma adaptação em meio a uma situação tão impactante. Deve-se considerar que os estressores a que a criança está submetida continuarão a atuar sobre ela e sua família por um período longo, podendo desequilibrar a relação entre as estratégias de enfrentamento positivas e negativas, e aumentar o risco psicossocial ao qual estão submetidos.
Os achados dessa pesquisa reforçam a necessidade de que características psicológicas da criança com câncer e psicossociais de sua família sejam focos de avaliação no período do diagnóstico. Com isso, torna possível a implantação de propostas de intervenção, a fim de garantir um curso de desenvolvimento o mais saudável possível, apesar da adversidade representada pelo câncer. Acredita-se que os recursos da Psicologia Pediátrica possam contribuir para que a condição de risco seja alterada e que variáveis da pessoa emerjam como fatores protetivos. Assim sendo, poderão ser observados resultados adaptativos ao longo do tempo, capazes de predizer o ajustamento psicológico posterior ao tratamento e na vida adulta.
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Endereço para correspondência:
Fernanda Rosalem Caprini
Av. Fernando Ferrari, 514
Vitória, ES, CEP 29060-970
E-mail: fernandacaprini@gmail.com
Submissão: 23.3.2016
Aceitação: 20.6.2017