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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2017
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n2p210-236
ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Regressão de linguagem no transtorno do espectro autista: uma revisão sistemática
Regresión de lenguaje en el trastorno del espectro autista: una revisión sistemática
Bárbara BackesI; Regina Basso ZanonII; Cleonice Alves BosaIII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil
IISociedade Educacional Três de Maio, Três de Maio, RS, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil
RESUMO
Uma parcela importante de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é acometida pela perda de habilidades de linguagem. Este estudo objetivou revisar sistematicamente as publicações sobre esse fenômeno, caracterizando a perda de habilidades no TEA. Foi realizada uma busca sistemática de referências bibliográficas em cinco bases de dados: PubMed, Web of Science, PsycINFO, Lilacs e Scielo. A seleção e a extração dos dados foram realizadas por dois juízes independentes. A busca resultou em 30 estudos, e o início da regressão de linguagem tendeu a ocorrer em torno dos 24 meses de vida da criança, geralmente acompanhada por perda de outras habilidades. Os estudos nesta área tornaram-se mais frequentes a partir dos anos 2000, sendo a definição operacional do fenômeno refinada. Foram identificadas lacunas importantes para o desenvolvimento de novas pesquisas, como a carência de estudos prospectivos e a necessidade de discussões acerca da definição conceitual da regressão desenvolvimental.
Palavras-chave: transtorno autístico; desenvolvimento infantil; regressão; linguagem; revisão.
RESUMEN
Un número significativo de niños con Trastorno del Espectro Autista (TEA) es acometido por la pérdida de habilidades de lenguaje. Este estudio objetivó revisar sistemáticamente la literatura sobre tal fenómeno, detallando la pérdida de habilidades no TEA. Se realizó una búsqueda sistemática de referencias en cinco bases de datos: PubMed, Web of Science, PsycINFO, Lilas y Scielo. La selección y extracción de datos fueron realizadas por dos jueces independientes. La búsqueda resultó en 30 estudios, siendo que el inicio de la regresión de lenguaje ha ocurrido alrededor de los 24 meses de vida del niño, generalmente acompañada por la pérdida de otras habilidades. Los estudios en esta área se volvieron más frecuentes a partir de los años 2000, siendo la definición operacional del fenómeno refinada. Se identificaron lagunas importantes para el desarrollo de nuevas investigaciones, como la carencia de estudios prospectivos y la necesidad de discusiones acerca de la definición conceptual de la regresión del desarrolo.
Palabras-claves: transtorno autístico; desarrollo infantil; regresión; lenguaje; revisión.
Indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) apresentam comprometimentos sociocomunicativos, além de comportamentos de cunho repetitivo e estereotipado, porém a apresentação e a gravidade sintomatológica variam (American Psychiatric Association, 2013). De forma semelhante, tanto a natureza quanto a idade de aparecimento dos primeiros sinais de TEA apresentam-se de forma variada entre os indivíduos (Zanon, Backes, & Bosa, 2014), denotando, inclusive, diferentes trajetórias desenvolvimentais do transtorno (Zwaigenbaum, Bryson, & Garon, 2013).
Para Zwaigenbaum et al. (2013), o TEA pode ter início precoce, no qual os sintomas tornam-se aparentes no primeiro ano de vida, ou regressivo, em que os sintomas são precedidos por um período de desenvolvimento aparentemente típico seguido da perda de habilidades previamente adquiridas. Contudo, ainda não é consenso se o desenvolvimento anterior à perda de habilidades é típico ou se já poderiam ser observados atrasos ou alterações comportamentais. Assim, alguns indivíduos com TEA apresentam Regressão Desenvolvimental (RD), definida como a perda definitiva ou significativa de habilidades previamente adquiridas (Baird et al., 2008; Meilleur & Fombonne, 2009).
Um estudo meta-analítico investigou a prevalência e a idade de início da perda de habilidades no TEA, dentre outros fatores (Barger, Campbell, & McDnough, 2013). Os autores revisaram um total de 85 artigos, representando 29.035 participantes com TEA, e a média ponderada apontou para uma taxa de prevalência da RD de 32,1%, com uma média de idade de início da perda de 21,36 meses, sendo este último dado baseado em 24 estudos (Barger et al., 2013). Ressalta-se que a prevalência da RD pode variar de acordo com a definição operacional de regressão utilizada, a forma de avaliá-la e a amostra estudada (e.g., clínica, survey). Contudo, de maneira geral, a perda de habilidades se mostra como um fenômeno que afeta uma parcela importante de crianças com TEA.
Estudos demonstram que a RD pode afetar, concomitantemente, diferentes áreas do desenvolvimento, resultando na perda de habilidades de linguagem, interação social e brincadeira (Backes, Zanon, & Bosa, 2013; Baird et al., 2008; Castillo et al., 2008; Jones & Campbell, 2010; Lord, Schulman, & DiLavore, 2004; Luyster et al., 2005; Meilleur & Fombonne, 2009; Tamanaha, Machado, Loebmann, & Perissinoto, 2014; Thurm, Manwaring, Luckenbaugh, Lord, & Swedo, 2014). A co-ocorrência de perda de habilidades de linguagem, de interação social e de brincadeira pode ser explicada com base na abordagem sociopragmática que postula que a aquisição da linguagem está atrelada a bases sociocognitivas e sociointeracionistas, ou seja, a emergência do símbolo linguístico (e.g., palavras) se dá após o estabelecimento de habilidades sociais e cognitivas, durante a interação social (Tomasello, 2003). Assim, o processo de simbolização permeia o desenvolvimento da linguagem e da brincadeira e ocorre no fluxo das trocas sociais (Tomasello, 2003). Portanto, linguagem, interação social e brincadeira são áreas de desenvolvimento correlatas.
Destaca-se que a regressão de linguagem, mais especificamente a perda de palavras, e não de outras habilidades, tende a se mostrar característica de crianças com TEA, diferenciando-se de outras condições, como a síndrome de Landau-Kleffner (Lord et al., 2004; Pickles et al., 2009; Shinnar et al., 2001; Valente & Valério, 2004; Wilson, Djukic, Shinnar, Dharmani, & Rapin, 2003), constituindo o foco do presente estudo. Tendo em vista que não há um consenso quanto à definição conceitual da regressão de linguagem, esta tem sido operacional, baseada nas medidas utilizadas. Dentre essas medidas, a Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R), instrumento considerado padrão de referência para a avaliação diagnóstica do TEA, define operacionalmente a regressão de linguagem como a perda do uso comunicativo (espontâneo) de três a cinco palavras, com exceção de "papa" e "mama" (Lord, Rutter, & LeCouteur, 1994). Além disso, a ADI-R utiliza dois parâmetros de tempo, referentes a um período igual ou superior a três meses, um deles referindo-se ao período anterior à perda (i.e., tempo de uso comunicativo das palavras posteriormente perdidas) e o outro à duração da perda (i.e., tempo em que a criança permaneceu sem utilizar as palavras perdidas comunicativamente). Por isso, no presente estudo, utilizar-se-á o termo "perda de palavras". Algumas pesquisas reportam a linguagem oral como a habilidade mais comumente afetada pela RD, ocorrendo perda de palavras em cerca de 20% dos indivíduos com TEA (Backes et al., 2013; Lord et al., 2004).
Nesse sentido, considera-se 'palavra' o símbolo linguístico que representa, com consistência, determinado objeto ou evento, ainda que sua forma de apresentação (ou estrutura) diferencie-se daquela de uso convencional, mas aproxime-se do modelo fornecido à criança (e.g., "papá" em vez de "comida", "auau" em vez de "cachorro"). Logicamente, não se estão negligenciando as diferentes facetas da aquisição da linguagem oral, que envolve complexidades diversas, como a inferência dos diferentes significados dos símbolos linguísticos, a categorização gramatical e o entendimento das possíveis construções linguísticas relacionadas a determinadas palavras (Clark, 2012). Entretanto, a aquisição das primeiras palavras ocorre assim que as crianças passam a ter algum entendimento do significado a elas atribuído, em geral a partir do final do primeiro ano de vida (Clark, 2012).
Salienta-se que a regressão de linguagem, e mais especificamente a perda de palavras, tem sido destacada como um potencial indicador precoce do TEA para aquele subgrupo cujo padrão de emergência do transtorno refere-se ao "início regressivo" (APA, 2013; Lord et al., 2004). Isso se deve ao fato de essa perda ocorrer de forma significativamente mais frequente em crianças com TEA, conforme alguns estudos de cunho comparativo utilizando controles com síndrome de Down e distúrbio específico de linguagem, por exemplo (Pickles et al., 2009; Shinnar et al., 2001; Thurm et al., 2014; Wilson et al., 2003).
Entretanto, apesar da aparente importância da regressão de linguagem, e mais especificamente da perda de palavras tanto em termos de diagnóstico quanto de intervenção, esse fenômeno permanece insuficientemente compreendido, o que se reflete na inexistência de medidas preventivas e terapêuticas específicas. Além disso, há grande variabilidade nos resultados das pesquisas dessa área. Para tentar compreender a heterogeneidade dos achados na área da regressão de linguagem e, consequentemente, obter um melhor entendimento do fenômeno em si, faz-se necessário ponderar acerca de alguns questionamentos. Há quanto tempo a regressão de linguagem vem sendo estudada? Como ela tem sido definida e investigada? Há fatores associados capazes de explicar a ocorrência desse fenômeno? Trata-se de um fenômeno isolado ou apresenta-se acompanhado de perda de outras habilidades? Como foi o desenvolvimento da linguagem antes da perda? Por ser um campo de investigação ainda em expansão, esses (e tantos outros) questionamentos permanecem em aberto. A fim de tentar respondê-los, delineou-se o presente estudo para instrumentalizar os profissionais, clínicos e acadêmicos quanto à ocorrência e características da regressão de linguagem, mais especificamente da perda de palavras, na população com TEA. Destaca-se que, embora já tenham sido desenvolvidas revisões acerca da RD no TEA, não foram encontrados estudos com foco específico na regressão da linguagem que revisaram de forma sistemática as pesquisas nessa área.
Assim, o objetivo deste estudo foi revisar sistematicamente as publicações sobre regressão de linguagem no TEA, caracterizando a perda de habilidades nessa população (e.g., definição do fenômeno, medidas de investigação da regressão de linguagem, idade de ocorrência da perda, duração, fatores associados, co-ocorrência com perda de outras habilidades), com foco na perda de palavras. Além disso, pretendeu-se apresentar informações acerca do desenvolvimento da linguagem antes da ocorrência da perda, quando disponíveis.
Análise das informações
Inicialmente, os estudos selecionados foram caracterizados de acordo com seu objetivo, participantes, ano e periódico de publicação. Além disso, foram selecionadas informações referentes à regressão de linguagem, de acordo com os dados disponíveis em cada estudo, isto é, definição e instrumento de investigação do fenômeno, média de idade de início da perda, duração média da perda, associação com problemas de saúde ou familiares e co-ocorrência com perda de outras habilidades. Finalmente, foram apresentadas informações acerca do desenvolvimento da linguagem antes da ocorrência da perda, quando disponível.
Resultados
Dos 315 estudos inicialmente selecionados, 30 preencheram os critérios de inclusão e constituem o corpus da presente revisão. As referências completas dos estudos selecionados estão destacadas com um asterisco (*) na lista de referências. A Tabela 1 apresenta a caracterização dos estudos, incluindo autores, objetivo, número de participantes e idade, ano e periódico de publicação. Os estudos analisados envolveram o período de 1985 a 2014, e o número de participantes variou de um a 585, e abrangeram objetivos diversos, a maioria tendo a regressão como um dos focos investigativos. Além disso, 86,6% (n = 26) das pesquisas foram publicadas em periódicos norte-americanos ou europeus, o restante em revistas brasileiras (n = 2) e asiáticas (n = 2).
Foi observado que 86,6% (n = 26) dos estudos analisados apresentaram a definição operacional utilizada para investigar a regressão de linguagem, e 43,3% (n = 13) usaram a ADI-R para tal investigação. A idade de início da regressão de linguagem estava disponível em 93,3% (n = 28) dos artigos, variando de 12 a 42 meses. Já informações acerca da duração da referida perda puderam ser analisadas somente em 23,3% (n = 7) dos estudos. A Tabela 2 apresenta a caracterização da regressão de linguagem, de acordo com os dados disponíveis em cada estudo, isto é, definição e instrumento de investigação do fenômeno, média de idade de início da perda e duração média da perda.
Além disso, 76,6% (n = 23) das pesquisas investigaram a relação da regressão de linguagem com problemas de saúde, e 73,9% (n = 17) destas analisaram aspectos concernentes a alterações eletroencefalográficas ou histórico de convulsão. Apenas 23,3% (n = 7) dos estudos, no entanto, investigaram a relação com problemas familiares ou eventos estressores e dependeram, invariavelmente, do relato dos pais. Dos 22 estudos que encontraram co-ocorrência de regressão de linguagem com perda de outras habilidades, 90,1% (n = 20) referiram-se a habilidades de interação social e/ou de brincadeira. A Tabela 3 apresenta essas informações detalhadamente.
Finalmente, informações acerca do desenvolvimento da linguagem, mais especificamente da idade de aquisição dos primeiros marcos linguísticos, estavam disponíveis em 43,3% (n = 13) dos artigos. Com relação à idade de aparecimento das primeiras palavras, os dados dos estudos (n = 13) variaram de 11 a 41,2 meses, e em 84,6% (n = 11) deles as idades informadas localizaram-se na faixa etária dos 11 aos 14 meses. Por sua vez, informações sobre a idade de aquisição das primeiras frases puderam ser acessadas em seis pesquisas, envolvendo o período de 18,8 a 59 meses. Além disso, dois estudos investigaram a quantidade de palavras utilizadas pelas crianças antes da perda, e um deles encontrou uma média de 5,2 palavras e o outro de 6,33.
Discussão e considerações finais
O objetivo do presente estudo foi revisar sistematicamente a literatura acerca da regressão de linguagem no TEA, fenômeno este que tem se mostrado característico de uma parcela de crianças com o transtorno, apresentando-se com uma frequência menor em outras condições (APA, 2013; Lord et al., 2004; Pickles et al., 2009, Thurm et al., 2014). Tomadas em conjunto, as informações geradas por esta revisão demonstraram que a regressão de linguagem no TEA tem sido foco de crescente interesse de pesquisadores nos últimos anos. Nesse sentido, observa-se um refinamento quanto à definição operacional do fenômeno, já que os critérios atualmente utilizados envolvem parâmetros temporais, tanto de uso da habilidade posteriormente perdida quanto da perda em si, a fim de investigar a estabilidade desses componentes (i.e., comportamento e perda).
Os estudos acerca desse fenômeno tiveram início há pelo menos três décadas, porém a maior parte dos artigos revisados foi desenvolvida após os anos 2000. Para Williams, Brignell, Prior, Bartak, & Roberts (2015), as pesquisas sobre a RD no TEA têm auxiliado na compreensão do transtorno em si, inclusive de sua heterogeneidade. Contudo, os autores destacam que esse campo investigativo ainda carece de informações sobre os mecanismos implicados na ocorrência da perda e seu prognóstico, por exemplo, sendo os achados bastante diversos.
Essa variabilidade pode ser explicada por diferentes aspectos, como a ausência de consenso acerca da definição conceitual da RD (Lampreia, 2013), o que se reflete no uso de medidas diversas para investigar o fenômeno e nos diferentes métodos de amostragem utilizados pelas pesquisas (Barger et al., 2013). De fato, os resultados do presente estudo demonstraram que há grande variabilidade no objetivo, tamanho da amostra e, de forma menos expressiva, nos instrumentos utilizados para investigar a regressão de linguagem no TEA. Com relação a esse último aspecto, a ADI-R foi a medida mais frequentemente usada para tal fim nos estudos analisados. Contudo, trata-se de uma entrevista diagnóstica que requer treinamento formal, além de seus direitos autorais serem de propriedade editorial. Portanto, não é um instrumento de fácil acesso e não foi desenvolvido, especificamente, para a investigação da regressão, o que pode ter motivado a elaboração de outras medidas utilizadas pelos estudos analisados, como a Regression Supplement Form (Goldberg et al., 2003) e a Regression Validation Interview-Revised (Thurm et al., 2014). Além disso, como a maioria das pesquisas presentes nesta revisão possui cunho retrospectivo, alguns autores usaram a análise de vídeos domésticos, visando maior compreensão do desenvolvimento das crianças antes da perda, bem como da ocorrência do fenômeno em si (Bernabei et al., 2007; Ekinci et al., 2012). De fato, o uso de vídeos domésticos na área da RD, ainda que pouco frequente, tem se mostrado promissor, inclusive validando o relato dos pais acerca da ocorrência da perda. Essa validação é bastante relevante na medida em que, por algum tempo, se conjecturou que a RD constituía uma "ilusão" parental, significando que as habilidades ditas perdidas não haviam sido realmente adquiridas pelas crianças. Assim, a análise de vídeos domésticos tem sido capaz de atestar e elucidar aspectos importantes acerca da ocorrência do referido fenômeno.
A presente revisão também verificou a definição operacional de regressão de linguagem utilizada pelos estudos analisados. Tal definição foi apresentada pela maioria das pesquisas, tendendo a envolver a perda comunicativa de pelo menos cinco palavras por um período mínimo de três meses, e está claramente pautada na forma de investigação da perda de habilidades da ADI-R (Lord et al., 1994). Trata-se, portanto, de um exame da perda de palavras, e não da linguagem em si, já que esta envolve componentes mais amplos e complexos. Contudo, o conceito de palavra implicado nessa investigação não é discutido pelos estudos. Ou seja, o entendimento da configuração desse elemento linguístico (e.g., sua forma e estrutura) pode não ser o mesmo entre o pesquisador e os pais, por exemplo. A forma de utilização da palavra, no entanto, tende a ser endereçada na definição operacional da regressão de linguagem, já que esta engloba a perda do uso comunicativo, isto é, não deve ser uma mera repetição da fala do outro, mas sim de elementos simbólicos utilizados espontaneamente na interação social. Além disso, a fim de examinar a estabilidade da perda, os estudos utilizaram um período de tempo de duração do fenômeno, correspondente, geralmente, a três meses. Tomadas em conjunto, essas informações demonstram que a definição operacional da regressão de linguagem envolve diferentes aspectos que se complementam. Entretanto, o problema relacionado à ausência de consenso na definição conceitual deste fenômeno permanece. Conforme destacado por Lampreia (2013), ponderar acerca do conceito de regressão é imperativo para a ampliação do conhecimento científico nessa área, o que pode contribuir, inclusive, para a compreensão do TEA em si, tendo em vista que, aparentemente, as crianças acometidas pela regressão traçam uma trajetória desenvolvimental diferente dentro do espectro (TEA), em relação àquelas que não perdem habilidades, ao mesmo tempo em que compartilham com estas outras características próprias do transtorno.
Com relação à prevalência da regressão de linguagem no TEA, os dados encontrados no presente estudo variaram de 9% a 51%, o que pode ser explicado pelos diferentes métodos de amostragem empregados (Barger et al., 2013), uma vez que no estudo meta-analítico desenvolvido por esses autores a prevalência de regressão de linguagem foi de 24,9% (Barger et al., 2013). Quanto à idade de início da perda, embora o intervalo tenha sido de 12 a 42 meses, a regressão de linguagem foi reportada após os 30 meses somente em dois estudos (Canitano & Zapella, 2006; Pickles et al., 2009). De fato, pesquisas mostram que a RD tende a ocorrer até os 30 meses no TEA (Barger et al., 2013), diferenciando-a da perda que ocorre na síndrome de Landau-Kleffner (SLK), também denominada de afasia epiléptica adquirida, na qual a perda de habilidades costuma ocorrer entre os 4 e os 7 anos (Valente & Valério, 2004). Contudo, esse dado isolado não é suficiente para diferenciar ambas as condições, já que, além disso, na SLK as crianças tendem a manter seu interesse social e em brinquedos, sendo rara a ocorrência de movimentos repetitivos, e há associação com achados eletroencefalográficos anormais, como a epilepsia parcial idiopática (Valente & Valério, 2004). Infelizmente, a maioria das pesquisas não contemplou informações sobre a duração da perda, mas, quando presente, esse dado apresentou grande variação. Isso pode ser explicado pela dificuldade em precisar a idade em que as habilidades começam a ser recuperadas, uma vez que tanto esse processo quanto a ocorrência da perda em si tendem a ser graduais (Malhi & Singhi, 2012).
Os estudos que investigaram a relação entre a regressão da linguagem e os problemas de saúde utilizaram diferentes formas de análise, desde o relato dos pais até análises as estatísticas de associação. De qualquer forma, a maioria deles abordou aspectos relacionados a alterações eletroencefalográficas, como convulsões e epilepsia. Esse possível fator etiológico foi amplamente estudado na área da RD no TEA, mas os achados permanecem controversos (Williams et al., 2015). Além disso, os poucos estudos analisados que abordaram a relação entre regressão de linguagem e eventos estressores basearam-se apenas no relato parental, envolvendo, geralmente, mudanças relacionadas à rotina familiar (e.g., nascimento de irmão, mudança de domicílio). No entanto, o fato de essas crianças serem posteriormente diagnosticadas com TEA dá indícios de que a perda de habilidades já constituía a trajetória desenvolvimental dentro do espectro, não sendo, necessariamente, decorrente de eventos estressores ou de mudanças na família, aspectos que podem ser potencialmente estressantes, do ponto de vista emocional.
Ainda, a maioria dos estudos analisados encontrou co-ocorrência entre regressão de linguagem e perda de outras habilidades, principalmente de interação social e de brincadeira. Esse resultado é coerente com as noções sociointeracionistas e sociocognitivas de aquisição de linguagem (Tomasello, 2003). Para Tomasello, a aquisição das primeiras palavras ocorre a partir das experiências de interação social com os cuidadores, durante as denominadas cenas diádicas (interação face a face) e triádicas (i.e., interação mediada por objetos) e constituem a base para a formação da capacidade simbólica, expressa por meio da brincadeira de "faz-de-conta" e da palavra. Portanto, do ponto de vista conceitual, parece lógico afirmar que uma ruptura (ou parada) desenvolvimental em quaisquer dessas habilidades afetaria comportamentos correlatos dessa cadeia representacional (simbólica). Todavia, essa noção ainda deixa uma pergunta em aberto: como explicar os casos em que essa co-ocorrência não ocorre? Pode-se ponderar acerca de duas explicações plausíveis, ambas de cunho metodológico. A primeira relaciona-se ao fato de que a maioria das medidas se baseia em relatos parentais. Nesse caso, a perda em outras áreas poderia ser sutil a ponto de não ser acuradamente percebida, especialmente porque o foco maior de preocupação dos pais tende a se concentrar nas alterações em relação à linguagem, mais especificamente no atraso da fala (Zanon et al., 2014). A outra possível explicação concerne à medida mais frequentemente utilizada para examinar a ocorrência de regressão, a ADI-R, já que esta investiga a regressão de linguagem mais detalhadamente, o que não ocorre quanto à perda de outras habilidades, como aquelas relacionadas à interação social e à brincadeira.
Finalmente, informações sobre o desenvolvimento linguístico das crianças antes da perda estavam disponíveis em pouco menos da metade dos estudos. Na maioria desses artigos, a aquisição das primeiras palavras se apresentou em torno dos 12 meses de idade, sugerindo que essas crianças haviam adquirido tal marco linguístico dentro do esperado para a sua faixa etária (Clark, 2012). Já no que se refere à idade de emergência das primeiras frases, entre quatro pesquisas que apresentaram esse dado somente uma encontrou que as crianças com regressão de linguagem adquiriram tal marco linguístico dentro do esperado (Clark, 2012), o que pode estar relacionado ao fato de a perda de palavras ocorrer, geralmente, em torno do segundo aniversário da criança (Barger et al., 2013), período em que as primeiras frases começariam a emergir (Clark, 2012). Em outras palavras, tal perda poderia influenciar a aquisição desse marco linguístico, acabando por comprometer seu estabelecimento.
Tendo em vista os aspectos anteriormente apresentados, salienta-se que a presente revisão identificou algumas lacunas que podem fundamentar novos estudos. Assim, é importante que pesquisas acerca da RD no TEA, mais especificamente da perda de palavras, averiguem a aquisição de habilidades antes da ocorrência da perda, a fim de auxiliar na compreensão do desenvolvimento anterior à regressão e do processo da perda em si. Tais aspectos se tornam especialmente relevantes quando se leva em consideração o papel da linguagem na definição da gravidade do TEA e do seu curso em termos prognósticos (APA, 2013). Salienta-se que a investigação desses aspectos pode ser facilitada pela análise de vídeos domésticos, anteriores à perda, tarefa que já vem sendo realizada pelo grupo de pesquisa dos autores desta revisão. Além disso, é imperativo que os pesquisadores ampliem as discussões acerca da definição conceitual da RD e, também, das habilidades investigadas (e.g., qual o conceito de palavra utilizado no estudo). Pesquisas prospectivas que acompanhem o desenvolvimento de crianças com TEA, com e sem perda de habilidades, também podem contribuir significativamente para um melhor entendimento, tanto da evolução da regressão quanto de suas possíveis consequências. Nessa assertiva, estudos que averiguem a eficiência da intervenção fonoaudiológica em crianças com histórico de regressão de linguagem poderiam ser potencialmente úteis, especialmente do ponto de vista terapêutico. Finalmente, seria importante investigar, em detalhes, as características e o desempenho sociocomunicativo de crianças com regressão de linguagem que recuperaram suas habilidades. Esses dados, em conjunto, podem contribuir para um melhor entendimento do processo de ocorrência desse fenômeno no TEA.
Salienta-se que a presente revisão apresenta limitações que devem ser endereçadas. Por exemplo, foram analisados somente estudos que caracterizaram a regressão de linguagem, excluindo-se outras pesquisas que investigaram a RD no TEA. Além disso, não foram incluídas revisões teóricas e sistemáticas, uma vez que o objetivo do presente estudo foi investigar dados empíricos. Por fim, os descritores utilizados podem não ter sido capazes de cobrir toda a publicação correspondente devido à possibilidade do uso de diferentes nomenclaturas para designar a regressão de linguagem, por exemplo. De qualquer forma, considera-se que a presente pesquisa conseguiu reunir um número significativo de informações na área da regressão de linguagem no TEA, apontando para a noção de que crianças com histórico de perda de palavras podem constituir um subgrupo dentro do espectro. Esses resultados podem instrumentalizar os profissionais envolvidos com o desenvolvimento infantil acerca da importância desse fenômeno, tanto em termos de investigação diagnóstica quanto de intervenção. Com relação a esse último aspecto, destaca-se a necessidade de que a criança seja encaminhada para tratamento tão logo a perda de habilidades tenha sido percebida, a fim de minimizar possíveis consequências negativas desse fenômeno no desenvolvimento sociocomunicativo infantil.
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Endereço para correspondência:
Bárbara Backes
Instituto de Psicologia, UFRGS
Ramiro Street, 2600
Porto Alegre (RS), Brazil, CEP: 90035-003
Telefone/Fax: +55 51 33085261
E-mail: barbara.edas@gmail.com
Submissão: 15.3.2016
Aceitação: 20.6.2017