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Boletim de Psicologia
versão impressa ISSN 0006-5943
Bol. psicol vol.61 no.135 São Paulo jul. 2011
ARTIGOS ORIGINAIS
Clínica psicológica: o manejo do setting e o potencial criativo
Psychologycal clinic: the handling of setting and the creative construction
Cleusa Kazue Sakamoto*
Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação - FAPCOM - SP - Brasil
RESUMO
O trabalho psicológico na clínica pode ser discutido em sua qualidade criativa, enquanto processo de mudanças do ponto de vista da criatividade do paciente, que modifica percepções, sentimentos, pensamentos e comportamentos e do ponto de vista do profissional, que contribui enormemente com o processo clínico. A mudança psíquica é, em tese, um processo criativo, que se ancora no vínculo terapêutico e explica os resultados de sucesso terapêutico. Discutir o processo da mudança psíquica sob o olhar da atuação do psicólogo em suas atividades rotineiras de articular teoria e técnica, escolha de estratégicas para apresentar as interpretações da psicodinâmica do paciente, facilitar percepções ou promover reflexões acerca de dificuldades emocionais, configura-se uma área interessante de estudo já que permite a compreensão das desejáveis mudanças terapêuticas. O manejo do setting neste prisma de entendimento, pode definir-se como relevante objeto de estudo para uma ampliação do conhecimento do potencial criativo na clínica psicológica.
Palavras-chave: Psicologia Clínica; criatividade; setting; mudança psíquica; sucesso terapêutico.
ABSTRACT
The psychological work in a clinic can be discussed in terms of its creative quality, while process of changes from the point of view of the patient's creativity, that changes perceptions, feelings, thoughts and behaviors, and from the psychologist's point of view, that greatly contributes to the clinical process. The psychic change is, in theory, a creative process, based on the therapeutic bond and explains the results of the therapeutic success. The discussion of the psychic change process from the perspective of the psychologist in his routine activities of articulating theory and practice, the choice of strategies to present the interpretations of the patient's psychodynamics, to facilitate perceptions or to promote reflections on ways of dealing with emotional difficulties, configure an interesting area of study, as it permits the comprehension of the desirable therapeutic changes. The handling of setting from this angle of understanding can be defined as a relevant object of study for the expansion of knowledge of the creative potential in psychological clinic.
Key words: Clinical Psychology; creativity; setting; psychic change; therapeutic success.
INTRODUÇÃO
A experiência como psicóloga clínica,desde o início da década de 80, e na atividade de supervisão, desde 1985, têm nos oferecido oportunidade para refletir sobre a importância da formação profissional do psicólogo desde a graduação, momento em que o estagiário-terapeuta experimenta importantes dúvidas teóricas e põe à prova o uso de técnicas na tarefa de enfrentar o desafio de assumir um papel profissional, que muitas vezes lhe exige mais do que ele pode realizar.
O encontro humano, que acontece na situação de aten dimento psicológico, extrapola os limites da compreensão técnica e exige das funções profissionais do estudante de Psicologia e futuro psicólogo, que ele tenha um suficiente autoconhecimento e bagagem de experiências para, a partir daí, manejar adequadamente o contexto de atendimento e o relacionamento clínico.
A bagagem pessoal de experiências determinada pelas fronteiras da idade dos estudantes, que são em sua maioria adultos jovens entre 23 e 26 anos, no momento da conclusão do curso, muitas vezes apresenta como produto inevitável uma insegurança natural frente aos atendimentos clínicos.
O autoconhecimento, por sua vez, também é em geral restrito, já que a via mestra de sua promoção, que é a psicoterapia, também é pouco utilizada neste período. Embora em todas as escolas de formação em Psicologia exista uma constante indicação de psicoterapia aos estudantes, a realização de um trabalho de autoconhecimento é pouco procurado durante o curso de graduação. A psicoterapia pessoal é realizada por uma minoria de alunos, sendo que a maioria alega impedimentos como falta de recursos financeiros e/ou a dificuldade de dispor de tempo.
Sabemos que a decisão de freqüentar uma psicoterapia depende da decisão do paciente de alcançar o conhecimento sobre si mesmo e, em geral, está associada a uma expectativa de mudança de aspectos pessoais considerados indesejáveis ou que causem alguma espécie de desconforto ou sofrimento emocional. Com os futuros psicólogos clínicos não é diferente. O estudante em seu processo de formação profissional necessita considerar que existem aspectos em sua individualidade que merecem ser observados e/ou devem ser modificados, caso contrário, não irá conceber uma finalidade para a realização de sua psicoterapia pessoal. É interessante verificar, contudo, que, ainda que os estudantes saibam que o psicólogo é ele mesmo o seu primeiro instrumento de trabalho, nem todos consideram na prática a necessidade de buscar autoconhecimento e a realização da psicoterapia pessoal.
Aprimoramento pessoal, preparo teórico e manejo clínico de técnicas se constituem em fatores centrais no desenvolvimento profissional do psicoterapeuta e representam as condições necessárias e satisfatórias que oferecem o suporte estrutural da prática clínica exercida pelo psicólogo. É no seio deste conjunto de fatores que o potencial criativo do psicoterapeuta opera, a serviço dos objetivos terapêuticos em função das necessidades do paciente.
A prática clínica em Psicologia está pautada na particular sensibilidade do terapeuta para perceber o paciente e se relacionar com ele, de acordo com a profunda compreensão do universo subjetivo, que vai adquirindo a partir de sua experiência de encontro humano com ele mesmo e com o outro. Assim, considerando que a evidência desta construção de competência ultrapassa as possibilidades reais que a linguagem pode expressar, podemos afirmar que a discussão acerca da formação profissional necessária à prática clínica em Psicologia é bastante especial e expõe temas intrigantes, como é a capacidade de amar ou o desenvolvimento do potencial criativo do psicoterapeuta. Como costumamos referir aos supervisionandos nas supervisões clínicas: a prática da clínica psicológica possibilita vivermos a fascinante experiência de compartilhar aquilo que o professor não pode ensinar, mas o aluno pode aprender.
CLÍNICA PSICOLÓGICA, CRIATIVIDADE E MANEJO DO SETTING
Do ponto de vista de que o trabalho em Psicologia clínica é uma atividade transformadora e promotora de saúde, podemos afirmar que a ele está diretamente associada uma característica criativa. Se a prática psicológica na clínica é criativa, já que é promotora de mudanças, devemos lembrar que esta criatividade está associada ao paciente, que frente ao atendimento clínico, utiliza seu potencial criativo, quando modifica percepções, sentimentos, pensamentos e comportamentos, e está associada ao profissional, que contribui enormemente com o processo clínico a partir de sua atuação criativa.
O estudo da situação de atendimento clínico do ponto de vista do psicoterapeuta, investigando a criatividade e seu processo, pode trazer novas indagações e esclarecimentos sobre a formação clínica do psicólogo e sobre o conhecimento acerca do manejo do setting e suas contribuições ao trabalho terapêutico.
Se de um lado, podemos observar indicadores criativos apresentados pelo paciente que se mostram como valiosos fatores prognósticos de sucesso terapêutico (Sakamoto, 2001, 2002), de outro lado, é possível destacar a influência determinante do vínculo terapêutico no processo de atendimento e os fatores associados ao manejo clínico realizado pelo psicólogo. Safra (1995) e Hisada (2000) são autores que ampliam uma discussão no sentido de explorarmos recursos que expressam as possibilidades criativas na situação do atendimento clínico em psicoterapia.
A mudança psíquica que é um elemento de base no trabalho psicoterapêutico, é também, o fator que explica os resultados do sucesso terapêutico. Afirma Joseph (1992), que a mudança psíquica pode ser definida como uma alteração mental "progressiva" ou "retrocessiva", isto é, um estado mental mais equilibrado ou menos equilibrado que o estado previamente existente, e mostra-se sempre subjacente a alterações do uso de mecanismos de defesa (mais adaptados ou mais regredidos), à remissão de sintomas e à ocorrência de insigths.
É interessante observarmos, que mudanças psíquicas recebem uma influência direta do manejo clínico realizado pelo terapeuta. A mudança psíquica, inquestionavelmente, é favorecida pela atuação do psicólogo em suas atividades rotineiras na tarefa de articular teoria e técnica, na tomada de decisões sobre a interpretação a ser oferecida, na escolha de estratégias para facilitar a percepção do paciente e favorecer o entendimento das interpretações psicodinâmicas ou, ainda, para promover a reflexão acerca de formas de lidar com dificuldades emocionais que possam utilizar capacidades potenciais do paciente. O psicoterapeuta oferece interpretações inseridas no setting a partir do manejo criativo, que podem gerar novos significados para ansiedades e angústias, e soluções mais adaptadas para os conflitos. Adequações ou reformulações em relação a horários, aceitação temporária de atraso no pagamento de honorários, realização de telefonemas específicos para familiares a pedido do paciente, são alguns exemplos simples de ações em que o psicoterapeuta atende as necessidades apresentadas pelo paciente, que se revestem de grande valor por significados simbólicos de asseguramento e de compartilhamento frente a reais demandas situacionais. Uma paciente atendida em psicoterapia por seis anos, havia de início contratado a frequência de duas sessões semanais, mas não comparecia sistematicamente a uma das sessões e, ao mesmo tempo, mostrava grande dificuldade em encerrar suas verbalizações ao final de 50 minutos. Depois de um período de psicoterapia de cerca de três meses perguntou se haveria possibilidade de reduzir a frequência para uma sessão semanal com a concomitante realização de dois horários em um único dia. Este pedido que claramente revelava sua predominante psicodinâmica de voracidade e controle do ambiente, também estava acompanhada de uma indagação acerca das possibilidades de se oferecer uma escuta e acolhimento por mais tempo. Concordou-se com a realização desta estruturação do setting em um período de experimentação para averiguação de sua eficácia. Entendeu-se que esta forma de se apresentar e se relacionar com o outro, poderia beneficiar o processo e dar condições reais de tempo para que trouxesse suas dificuldades à situação clínica e assim, modificá-las. As sessões mostraram-se com um ritmo bastante definido em que, depois da primeira hora de 50 minutos, a paciente passava a verbalizar conteúdos cada vez mais emocionais e a trazer lembranças mais significativas de sua vida. O período experimental foi considerado suficiente para endossar a manutenção do enquadre de "hora dupla" de uma hora e 40 minutos e evidenciou que a mudança do contexto de enquadramento foi fundamental para favorecer a emergência de dificuldades emocionais em relação ao sentir-se aceita e amparada e para a percepção de suas limitadas condições de autocontrole e aceitação da realidade. Sua psicoterapia permaneceu durante cinco anos apoiada em sessões "duplas" e com a modificação das percepções sobre si mesma e concomitantes condições egóicas, o enquadramento mais usual de 50 minutos foi reintroduzido.
O estudo do manejo clínico na psicoterapia, especialmente em função do envolvimento afetivo presente no relacionamento, pode ampliar a visão dos fatores facilitadores do processo clínico. É interessante observamos que o empenho de ajudar o paciente e o comprometimento autêntico com o trabalho terapêutico pode trazer resultados surpreendentes, quando observamos alguns processos de atendimentos clínicos realizados por terapeutas iniciantes, neste sentido (Sakamoto, 2000).
Contudo, abordar o estudo do manejo da situação clínica solicita que o pesquisador realize uma observação refinada, capaz de possibilitar uma percepção detalhada de fatores que compõem o setting terapêutico e seus fundamentos. Esta tarefa não exclui a necessidade de abordarmos questões relacionadas aos próprios limites do terapeuta.
Steiner-Pires (2001) menciona "as limitações do equipamento pessoal do analista", quando refere os limites e possibilidades do manejo clínico no setting analítico. A mesma autora enfatiza a importância do diagnóstico para nortear o manejo clínico e, assim, ressalta que a bagagem de experiências pessoais e maturidade emocional do psicoterapeuta são tão importantes quanto o preparo profissional em relação à apropriação de teorias e uso de técnicas que definem a competência formal em Psicologia clínica. Enéas (2000) afirma que a "atitude mental do terapeuta" é um aspecto importante do setting ou enquadre, na medida em que é ela que confere "significado terapêutico" à situação.
O tema do manejo clínico é um vasto território que pode ser amplamente explorado e que abre caminho para compreendermos a criatividade envolvida no processo terapêutico, desvendando aspectos estruturais e psicodinâmicos do setting ou situação clínica. Winnicott (1955/2000) no capítulo "Formas clínicas da transferência" no qual debate o trabalho terapêutico nos "casos fronteiriços" e nos casos em que se apresentam "momentos psicóticos", quando não é "possível considerar o ego uma entidade estabelecida", afirma: "Por contexto entendo o somatório de todos os detalhes relativos ao manejo" (p. 395) e nestes casos, refere que o contexto analítico torna-se mais importante que a interpretação. Para a abordagem winnicottiana, devemos considerar o que é concreto e visível e o que não pode ser nomeado ou se quer pode ser imediatamente percebido, para descrevermos a situação clínica.
Bleger (1977) discute esta afirmação de Winnicott sobre o conceito de setting, entendendo que ele se restringe à técnica. Menciona preferir a definição de "situação psicanalítica para a totalidade dos fenômenos envolvidos na relação terapêutica entre analista e paciente" (p. 311). Complementa que a situação inclui o processo e o enquadramento que é "constituído pelas constantes ... em cujo interior se desenvolve o processo" (p. 311). Afirma que fazem parte do enquadramento: "o papel do analista, o conjunto de fatores espaciais (ambiente) e temporais, e parte da técnica (na qual se inclui o estabelecimento e manutenção de horários, honorários, interrupções planejadas, etc.)" (p. 311), e acrescenta que existem na realidade "dois enquadramentos" - um "que o analista propõe e mantém, conscientemente aceito pelo paciente" e outro, que é configurado pelo "mundo fantasma" em que o "paciente projeta nele" (p. 316).
Embora Bleger (1977) mostre uma contestação em relação à Winnicott, em nosso entendimento ambos destacam a mesma concepção sobre a existência de uma dimensão de realidade em que além dos norteadores concretos da situação (por exemplo, local, horário e duração da sessão clínica), existem elementos intrapessoais e inter-subjetivos presentes no setting.
Winnicott (1958/2000) inclusive enfatiza fatores da situação clínica ligados ao profissional, mencionando que a interpretação nem sempre é aquela oferecida verbalmente, sendo às vezes apresentada na maneira de estar do terapeuta, em seu silêncio, em um gesto ou tom de voz.
Em seu pensamento, Winnicott (1971/1975) sustenta que o trabalho terapêutico como todo viver criativo, tem lugar na terceira área de experiências humanas ou Espaço Potencial, que se configura como um campo criativo no qual há uma sobreposição da subjetividade e da realidade externa concreta. Neste sentido, no Espaço Potencial de experiências, as condições psíquicas e demais conteúdos subjetivos do paciente devem associar-se sobrepondo-se às potencialidades clínicas do psicoterapeuta, na estruturação desta terceira área da experiência. O Espaço Potencial se configura a partir do vínculo peculiar entre paciente e terapeuta e dá suporte às "condições favoráveis para a utilização da capacidade de imaginação criativa" (Sakamoto, Nahas e Bichir, 2007).
Pichon-Rivière (1982/1995), em sua Teoria do Vínculo, também aborda a questão da importância das condições de relacionamento interpessoal apoiando-se no conceito de campo psicológico e propõe o conceito de "situação", ressaltando que nela, o ambiente "é o agente", em contraste ao conceito de "conduta" no qual "a personalidade é o agente" (p. 65) e afirma que o "vínculo é um conceito instrumental ... que é manejável operacionalmente" (p. 49). Nas palavras de Pichon-Rivière (1982/1995):
Aquilo que o paciente vive na situação transferencial é vivenciado em um determinado contorno com o analista, em um aposento determinado e com objetos particulares, que podem ser modificáveis ou não. ... No processo de interação com o paciente, a linguagem, a palavra, a comunicação verbal é fundamental, mas também é fundamental a linguagem pré-verbal, através dos gestos e das atitudes (p. 66-67).
Por meio da definição de situação analítica que pode ser entendida como o palco da interação entre terapeuta e paciente, Pichon-Rivière revela idéias que encontram correspondência no pensamento de Winnicott, em função de processos complementares estabelecidos em pról da comunicação e finalidade clínica criativa. Pichon-Rivière (1982/1995) afirma:
A situação analítica se apresenta como uma situação de permanente aprendizagem para o paciente, por meio de provas, tentativas, confrontos, retificações e ratificações ... a situação analítica se estabelece sobre uma base existencial no sentido de que duas pessoas presentes num determinado momento e espaço estão tentando resolver a situação de uma ... O psicoterapeuta deve recolher, elaborar e compreender o material que observa e, em seguida, devolvê-lo em forma de interpretação (p. 98-99).
Winnicott (1958/2000) afirma neste sentido, que o terapeuta na função do "ambiente suficientemente bom" adapta-se às "necessidades do paciente" na busca de compreender suas ansiedades e angústias e oferecer o entendimento em forma de interpretações criativas. O estudo detalhado sobre as nuances do ambiente ao longo dos momentos evolutivos do desenvolvimento humano são apresentadas por Winnicott (1988/1990) na obra Natureza Humana, na qual relaciona as necessidades do indivíduo e respectivas adaptações da função ambiente, que oferecem as condições favoráveis à construção saudável do Self. O trabalho clínico constrói-se nesta perspectiva, em bases inegavelmente surpreendentes, que não podem ser conhecidas a não ser no aqui-agora do viver genuíno e criativo do relacionamento com o paciente durante a hora clínica.
A criatividade do psicoterapeuta apresenta-se de modo mais aparente expresso nas interpretações formuladas ao paciente, mas sem dúvida, não se restringe às colocações verbais e atitudinais do profissional. A criatividade pode ser concebida como um elemento presente no próprio estilo de manejo clínico que é permeado pelo modo de ser do profissional, entendendo-se que este manejo pressupõe estar aberto à experiência, o que antes de qualquer definição técnica, é uma experiência de encontro humano e que implica troca afetiva e comunicação. A criatividade do profissional para sua autêntica ocorrência, implica uma atitude de despojamento, que, nas palavras de Winnicott (1971/1975), significa estar livre de "preocupações egóicas" para que o "Self verdadeiro" possa emergir e se expressar, na situação de relacionamento com o paciente. Nestas condições, a contratransferência mostrar-se-á como ferramenta magna mediante sua percepção e possibilidades de tradução. O manejo do setting poderá contar com a tomada de decisões mais apropriada em relação ao paciente, beneficiando-se das informações recolhidas pelo terapeuta durante o processo clínico.
O terapeuta em sua experiência criativa de relacionamento com o paciente pode permitir colocar-se como um objeto à disposição do paciente, para "ser usado", no sentido de se adaptar às necessidades de expressão e esclarecimento, que permitem dar lugar a conscientizações e mudanças psíquicas (Winnicott, 1960/1983, 1988/1990).
O MANEJO DO SETTING SOB A ÓTICA DA CRIATIVIDADE - ALGUMAS CONCLUSÕES PRELIMINARES
Um primeiro ponto de partida deve ser mencionado, quando pretendemos qualificar como criativo o trabalho clínico em psicoterapia o pressuposto de que a elaboração psíquica responsável pelo progresso clínico do paciente em nada difere essencialmente de outros processos criativos e a constatação de que o trabalho de construção interpretativa é uma atividade criativa inerente ao processo de atendimento psicoterapêutico realizado pelo terapeuta.
A atividade criativa a partir da descrição do manejo da situação clínica é um elemento definido que pode ser relatado pelo psicoterapeuta de modo minucioso, permitindo um exame analítico sobre a face criadora da atuação clínica do profissional. Um estudo sistemático a partir do relato das experiências de terapeutas experientes pode nos conduzir à compreensão de fatores que se mostrem determinantes na produção criativa de interpretações da psicodinâmica do paciente, que muitas vezes se dá de modo inusitado por intermédio da elucidação pelo profissional de sua contra-transferência. Ao lado do estilo próprio de perceber, relacionar-se e pensar, o terapeuta pode reunir informações clínicas que tenham valor diferencial para o entendimento da psicodinâmica do paciente, advindos da percepção dos fatores subjetivos oriundos dos processos contra-transferenciais.
O terapeuta tece suas intervenções a partir dos inúmeros fios que compõem a trama da experiência de encontro com o paciente. Os fatores relacionados ao paciente desde a história pessoal, a história do sofrimento, o desejo de mudança, as resistências à mudança decorrentes da dinâmica psíquica, bem como o vínculo afetivo estabelecido com o psicólogo, são elementos que direcionam o entendimento clínico, assinalam necessidades do paciente e projetam as coordenadas potenciais à ação interpretativa e criativa do terapeuta. O psicoterapeuta em sua prática profissional criativa, a partir de sua personalidade, sua história pessoal, o montante de autoconhecimento, a maturidade emocional e capacidade de amar, poderá a partir da situação estabelecida pelo paciente no setting elaborar um entendimento e apresentar uma elucidação de sua compreensão clínica, com pensamentos originais e significativos. Uma interpretação, muitas vezes é tão expressiva e manifesta um poder de compreensão tão único e genuíno, que traduz inegavelmente uma característica criativa. Esta discussão, contudo, mostra-se como uma grande lacuna do conhecimento. A concepção criativa da clínica psicoterapêutica mostra-se uma temática emergente que merece estudos que podem nos ensinar muitas lições sobre a capacidade humana de envolvimento afetivo no relacionamento de ajuda e sua comunicação, que evidenciem a importância da "empátheia" (ou empatia), que em grego (en+pathos) quer dizer "entrar no sentimento" e sua influência no manejo do setting psicoterapêutico.
Em uma perspectiva de reflexão preliminar acerca do estudo do manejo clínico na situação psicoterapêutica, consideramos cinco pontos-chave de entendimento que podem estabelecer uma estruturação inicial: 1- a identificação de fatores relacionados à ocorrência da transferência e contra-transferência, 2- a compreensão dos processos de regressão psíquica e respectiva necessidade de adequação da comunicação do profissional ao paciente, 3- as modalidades de intervenção do material clínico (clarificação, apontamento, interpretação, interrogação, etc.) e seu papel mobilizador de preparação ao estado criativo, 4- o envolvimento afetivo do terapeuta com o paciente no processo, 5- a postura do psicólogo frente ao desconhecido que denota sua maneira de lidar com a ansiedade frente ao novo e sua atitude criativa diante de novos conteúdos subjetivos.
É interessante mencionar que o insight que em geral é direcionado ao processo criativo do paciente em sua elaboração psíquica na psicoterapia, também ocorre na experiência do psicoterapeuta quando este reconhece uma informação relevante no campo psicológico estruturado da sessão clínica, ou mesmo, quando formula um pensamento que traduz a realidade psíquica em questão. O insight do psicólogo, no entanto, perde-se no cenário clínico e não recebe a devida atenção no estudo dos progressos psicoterapêuticos na construção de todo o conjunto da compreensão clínica da experiência do terapeuta. Obviamente, o insight do psicoterapeuta também não ocorre do nada e revela o potencial criativo manifesto em pensamento ou elaboração e, certamente, depende de condições prévias para sua ocorrência. O insight que pode ser entendido como uma luz que ilumina o vínculo terapêutico, quer venha da direção do paciente, quer da direção do terapeuta, permite chamarmos de criatividade clínica, a prática da psicoterapia.
Ao privilegiarmos o estudo daquele que serve de instrumento para o processo de busca do autoconhecimento e de encontro humano, temos em consideração que o conhecimento dos fundamentos da relação de ajuda clínica em Psicologia pode favorecer fundamentalmente o reconhecimento do preparo necessário e especial do psicoterapeuta em seu ofício. O entendimento sobre o alcance e os limites do vínculo terapêutico na realização do trabalho clínico pelo profissional e as possibilidades de entendimento de teorias da técnica em Psicologia clínica, como o estudo do setting e seu manejo, indicam caminhos para a próspera discussão sobre o potencial criativo do psicólogo.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 06/08/2009
Revisto em 28/09/2010
Aceito em 20/05/2011
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