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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.66 no.144 São Paulo jan. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

O uso da imaginação no psicodiagnóstico e na psicoterapia de adolescentes

 

The use of imagination in psychodiagnostic and psychotherapy for adolescents

 

 

Maria Salete Arenales LoliI,*; Jorge Luís Ferreira AbrãoI,*; Leila Salomão de la Plata Cury TardivoII,*

IUniversidade Estadual Paulista - UNESP - Assis - SP - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - USP- SP - Brasil

 

 


RESUMO

Entre o adulto e a criança existe o adolescente, que vivencia suas experiências de forma diferente, exigindo modificações técnicas importantes no processo psicoterápico, que não são condizentes com a abordagem lúdica infantil, nem com o relato verbal do adulto. Diante desta necessidade criou-se o jogo Túnel do Tempo, composto por 165 frases incompletas apresentadas no "Passado", "Presente", "Futuro" e como "Casos e Acasos", que propõem situações fictícias com objetivo principal de dar vazão à imaginação do paciente. Em estudo clínico por meio de processos psicoterápicos individuais verificou-se que, por intermédio de "poderes mágicos" e da expressão "e se..." aliado ao lúdico adaptado à faixa etária, pode-se obter um recurso frutífero no processo de psicodiagnóstico e de intervenção para adolescentes. Com o uso induzido da imaginação no período da adolescência é dada a oportunidade de certo distanciamento da realidade para tratar de fatos angustiantes, auxiliando assim, a denominação do que não consegue ser dito de outras formas.

Palavras-chave: Psicoterapia de adolescentes; imaginação; jogo mediador.


ABSTRACT

Adolescents are between adulthood and childhood, living their experiences in a different way, which requires adjustment of techniques in the psychotherapeutic process, because they are not consistent with play approach for children and neither with a verbal approach for adults. Therefore, the Time Tunnel mediation game was created, composed by 165 incomplete phrases representing the past, present and future, and a "Chance" element to offer up fictional situations to motivate the imagination of the patient. In a clinical study, carried out through individual psychotherapeutic processes, it was verified the necessity to combine this approach, via "magical powers" and the "what if" expressions, with adapted play material for the age group. Thus, a fruitful resource has been obtained for the psychodiagnostic and intervention processes for adolescents. Inducing the use of the imagination in the adolescent, an opportunity is given in anxiety episodes, helping to name the situation when other methods have not worked.

Key words: Psychotherapy in adolescence; imagination; mediation game.


 

 

No período da adolescência imaginar e fantasiar são características muito relevantes. Aberastury & Knobel (1992) exploram a necessidade de intelectualizar e fantasiar como uma das formas típicas do pensamento do adolescente, como uma alternativa para lidar e compensar as perdas e lutos, que ocorrem nessa fase e se referem à perda do corpo infantil, dos pais da infância, da condição infantil e das demais condições inerentes à infância. Observa-se que a falta da capacidade de fantasiar na adolescência pode trazer sérias consequências ao desenvolvimento, uma vez que o adolescente, não sendo capaz de fantasiar, parte direto para a ação.

Segundo Corso e Corso (2006), uma das fontes de empatia dos adolescentes com a história de Harry Potter seria a fantasia típica, que Freud denominou de "Romance familiar do neurótico" (Freud, 1908-1909/1976), em que as pessoas fantasiam serem filhos adotivos de uma família melhor em algum aspecto em relação àquela em que cresceu e devaneia outra família idealizada. Com este recurso, a pessoa se isenta da culpa quanto ao ódio e desejo com relação aos pais biológicos, uma vez que estes não são os pais em fantasia. Freud considerava que este devaneio não significava deslealdade com os pais, mas uma fantasia a serviço da preservação dos pais magníficos da primeira infância que, inevitavelmente, o púbere desfaz ao enxergar a condição humana frágil e real. Desse modo, as fantasias conscientes e a intelectualização servem como mecanismos defensivos frente a essas situações de perda dolorosas.

Tardivo (2004) constata a importância da fantasia para os adolescentes e aponta o sofrimento daqueles que não fazem uso deste recurso, afirmando: "Que difícil se torna a vida quando o adolescente então para de sonhar, como senti entre alguns no Amazonas. Como se defender, então?" (p. 106).

De acordo com Segal (1991), o devaneio é mais defensivo, é racionalizado e transformado em algo aceitável para o ego desperto. Em um indivíduo normal os devaneios permanecem e podem evoluir, tornando-se imaginação, que é a base tanto do brincar como da arte. O brincar é mais que um devaneio, no brincar normal vários aspectos da vida e seus conflitos podem se expressar, leva em conta a realidade dos materiais com que se brinca, sendo assim um processo de aprendizagem e domínio da realidade. Nesse sentido a arte está mais próxima do brincar do que um sonho ou um devaneio, mas transcende o brincar, uma vez que é uma dádiva para o mundo que sobrevive ao artista.

Para esta autora o devaneio em grande parte ignora a realidade. Nele é possível ser um herói, um amante realizado, um gênio ou o que quer que se escolha. Diferentemente do sonho, o devaneio ignora a realidade interna e o conflito mais profundo. Trata-se de uma satisfação onipotente de desejo. Deste modo, o devanear é quase sempre repetitivo, superficial e egocêntrico, uma vez que outras personagens, em vez do próprio sujeito do devaneio, são em geral figuras inconsistentes. É característico da latência e do início da adolescência, porém adultos também devaneiam. A falta de devaneio pode indicar que a fantasia inconsciente é por demais assustadora para que lhe seja permitido qualquer acesso à vida desperta e a um devaneio.

Os devaneios, de acordo com Segal (1991), podem ser o começo da possibilidade de contar histórias. No entender da autora, se um devaneio for perigoso, a cura para ele não é devanear menos, mas sim, mais e por inteiro. Refere-se assim ao movimento e ao desenvolvimento do devaneio para a imaginação, que significa menos cisão, mais integração e o alcance de camadas mais profundas da mente.

O papel da imaginação tem sido revisto em relação à função criativa. Deve-se admitir que a imaginação possua um papel muito importante na vida cotidiana e que a criatividade tem uma participação central nas ações dos indivíduos. Sobre estes pontos se sustentam prioritariamente a singularidade da vida psíquica (Moguillansky, 2007).

Freud (1972) no texto "Escritores criativos e devaneio" questiona, se os primeiros traços de atividade imaginativa deveriam ser procurados já na infância. Para responder a essa pergunta associa o brincar (ocupação favorita e mais intensa da criança) ao comportamento de um escritor criativo, pois ambos criam um mundo próprio, ou melhor, reajustam os elementos de seu mundo de uma nova forma. Freud (1972, p. 78), ainda assinala que:

a antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar' infantil do ‘fantasiar. O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade.

Freud (1972) também relata que as fantasias dos adultos são mais difíceis de serem observadas do que o brincar das crianças. Estas últimas estabelecem um sistema psíquico fechado com outras crianças, com um jogo, mas, mesmo que não brinquem, não ocultam seu brinquedo de um adulto. Já o adulto, ao contrário, se envergonha de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Esconde suas fantasias como seu bem mais íntimo e, em geral, é preferível confessar suas faltas a confiar ao outro suas fantasias. Pode acontecer, consequentemente, que acredite ser a única pessoa a inventar fantasias, ignorando que criações desse gênero são comuns nas outras pessoas. Nesse sentido, constatam Corso e Corso (2011), que é necessária sinceridade para verificar que a fantasia ocupa um lugar maior na vida do que admitimos.

Segundo Freud (1972, p. 79),

O brincar da criança é determinado por desejos: de fato um único desejo, ... o de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando "de adulto", imitando em seus jogos, aquilo que conhece da vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo. Já com o adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe que dele se espera que não continue a brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real; por outro lado, alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas.

De acordo com Segal (1975), Klein obteve acesso à compreensão do brincar da criança como sendo a simbolização de suas fantasias Na sua obra, o conceito freudiano de fantasia inconsciente recebeu maior peso e foi ampliado. Klein enfatizou que as fantasias inconscientes estão sempre ativas em todos os indivíduos e sua presença não é indicativa de doença ou de falta de sentido de realidade. O que determinará tal sentido é a natureza dessas fantasias inconscientes e o modo como elas estão relacionadas com a realidade externa.

Laplanche e Pontalis (1998) colocam que os termos fantasmas e fantasmático não podem deixar de evocar a oposição entre imaginação e realidade e tal oposição, sendo uma referência principal, leva a definir a fantasia como uma produção puramente ilusória que não resiste a uma apreensão correta do real. As fantasias típicas encontradas pela psicanálise levam Freud a postular a existência de esquemas inconscientes que transcendem a vivência individual e assim, usa frequentemente em sua obra a expressão "fantasia inconsciente". Neste sentido, a definição de fantasia está relacionada ao processo inconsciente, enquanto o termo devaneio se refere ao processo relativo ao consciente.

Freud (1972) apontou que a maioria das pessoas constrói fantasias em algum período de suas vidas. Ele entendia que este é um fato ao qual, por muito tempo, não se deu atenção e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada.

A imaginação e a fantasia têm espaço em várias formas de expressão na vida adulta e, maior espaço, nas manifestações artísticas, das mais diversas ordens. Corso e Corso (2011, p.19) exploraram esse tema com muita propriedade, relatando que:

Sempre que podemos, utilizamos algum escape da nossa realidade. Se nossa cabeça está cansada, ela usa fantasias emprestadas: as novelas de TV, os filmes, as séries, os romances, ou mesmo, pode utilizar fatos corriqueiros para estruturar sonhos e devaneios. Por exemplo, uma partida de futebol é muito mais do que seus 90 minutos de realidade: no esporte, passado, presente e futuro se misturam; o jogo de agora é uma vingança de uma partida anterior ... e assim, a fantasia desborda a realidade do embate e o inflaciona de sentidos.

Apesar de tantas manifestações Corso e Corso (2011) ressaltam o fato de que somos levados a acreditar que as pessoas são aquilo que está acordado, que o verdadeiro eu está assentado na realidade e não está contaminado pelas fantasias, que atravessam o tempo todo. Os autores dizem: "Mas, gostemos ou não, somos o resultado, o somatório, do desperto com o sonhador, até porque, nem sempre é possível delinear uma rígida separação entre os dois, tampouco é possível, nem necessário, definir qual é o mais importante" (Corso & Corso, 2011, p. 19).

A fantasia é subestimada, sobretudo, porque é julgada acessória e que não passaria de um escape ou um desvio de rota da realidade. Raramente se acredita que ela constitui, molda e faz parte da arquitetura da personalidade (Corso & Corso, 2011).

No contexto clínico é observado que os adolescentes apresentam forte identificação com personagens de ficção seja por meio de livros, filmes e/ou programas de televisão. Nesta faixa etária mergulham nas histórias de ficção com muita intensidade, profundidade e paixão. A partir da observação de pacientes adolescentes atendidos em psicoterapia, percebe-se que as manifestações da imaginação, os devaneios e as fantasias dessa época aparecem, ainda, por outras vias. Trata-se, também, da época dos amores platônicos, os amores de viagem, e atualmente com outro formato, os amores da internet, porém todos estes amores com as mesmas características: distantes e irreais, sem a possível concretude das frustrações e reconciliações, dos amores e desamores de uma realidade concreta. Em suas ligações amorosas, o adolescente também se entrega e seu companheiro é idealizado e perfeito. "É a paixão juvenil que se irrompe e cega sua capacidade perceptiva, de análise, de crítica e pensamento" (Levisky, 2009, p. 56).

Na atualidade, o uso da fantasia tem um forte aliado, que pode se tornar, algumas vezes, perigoso para os que compensam a realidade, fugindo excessivamente para o mundo virtual, fato que se torna cada vez mais comum na realidade clínica. Pode ser constatado no contexto clínico na adolescência, que relatos de conversas íntimas com pessoas desconhecidas, imaginados de alguma forma, em facebooks, chats, blogs e twitter, são muito frequentes.

Násio (2011) salienta que o sofrimento inconsciente ganhou recentemente a forma de novas dependências sem droga, que são a ciberdependência dos videogames e o uso exagerado dos chats de caráter erótico com webcam e microfone. Nesse caso, não se trata mais de dependência de um produto, mas de dependência de um comportamento. Esse mecanismo de defesa é ainda típico e normal na adolescência, mas pode se tornar perigoso e arriscado.

O uso da fantasia como recurso de material clínico é conhecido pelos psicólogos, como afirmam Corso e Corso (2011, p. 19): "O ofício do psicanalista é decifrar fantasias". Assim, em face da constatação da marcante presença da imaginação e da fantasia no período da adolescência, como é caso do brincar na criança, este artigo traz reflexões sobre a possibilidade do uso deste canal como técnica de comunicação e de abordagem e, até mesmo de tratamento do adolescente. Outro aspecto interessante é que o uso do recurso da imaginação, do "e se", possibilita certo distanciamento da realidade que se torna oportuno no contexto clínico para se tratar e abordar determinados temas e assuntos com os adolescentes.

Corso e Corso (2006, p. 39) apontam que os contos maravilhosos não são delicados e podem tratar de assuntos com muita crueza "graças ao distanciamento que a fantasia oportuniza". Esses autores entendem que, talvez, a longevidade dos contos se deva exatamente a este fator.

Em um processo psicoterápico deverão ser tratados temas difíceis e é possível facilitar a expressão desses temas por meio da imaginação distanciada das próprias questões diretamente, o que pode auxiliar a lidar e diminuir a angústia. As crianças fazem uso desse recurso de distanciamento dos fatos naturalmente, quando querem tratar de determinados assuntos. Relatam acontecimentos como se não lhes dissessem respeito e, então, contam fatos sérios atribuindo a um amigo, irmão ou cachorro. Embora se saiba que ela é a verdadeira protagonista, não se deve desmascará-la. Em geral, a criança se sente melhor ao falar e ouvir nessa situação. Esse é um exemplo clássico que serve como apoio para uma comunicação que, na sua forma direta, seria difícil e constrangedora (Corso & Corso, 2006).

Em descrição de um caso clínico, Blos (1985) se refere à Judy, uma adolescente de 16 anos, que não hesitou em dizer ao terapeuta que sonhava com um rapaz durante a noite e pensava nele durante o dia. Ela relatou ser esta uma moda entre as meninas da escola, que favorecia a necessidade de devaneio experimentada por Judy e, ao mesmo tempo, a levou a participar de um grupo de colegas, que se dedicavam a esse passatempo. Essa moda consistia em inventar histórias sobre um "namorado de papel", ou seja, um namorado inexistente, mas criado pela menina para falar dele com outras pessoas. Isso permitia que uma menina falasse de um namorado, sem ter namorado e, ao mesmo tempo, sem mentir, já que as outras sabiam que era "faz-de-conta". Por vezes, a realidade e a ficção se misturavam, como, por exemplo, quando todo o grupo, inclusive Judy, ficou extremamente envolvido com o noivado de uma das meninas, até que entendeu que tudo não passava de um "noivado de papel". Judy se considerava muito infantil, mas apesar disso gostava dessa brincadeira de faz-de-conta, durante as poucas semanas em que ela durou.

No atendimento clínico de crianças, é necessário dispor de recursos lúdicos para alcançar o universo que está além das palavras. O mesmo ocorre com os adolescentes, são necessários recursos para extrair esse universo que está mais próximo das palavras, quando comparado ao de uma criança, mas que ainda necessita de mediadores na grande maioria dos casos. Instigar e explorar a imaginação do adolescente se torna um importante canal no trabalho clínico com adolescentes.

 

OBSERVAÇÕES A PARTIR DO USO DO JOGO TÚNEL DO TEMPO1

O jogo Túnel do Tempo (Arenales-Loli, 2011) foi um recurso criado em virtude de uma demanda significativa de adolescentes e pré-adolescentes na prática clínica da autora nos últimos 15 anos. Sua elaboração e emprego foi paulatina, durante o atendimento desses pacientes no consultório, avessos ao uso de material lúdico infantil, em alguns casos com aversão a desenhar, recusando tais técnicas psicoterápicas como "coisas de criança". No entanto, esses mesmos adolescentes apresentavam-se ainda imaturos para uma verbalização clássica de sentimentos e associações, como a utilizada com os adultos.

Nesses casos clínicos, o uso exclusivo da comunicação verbal é, em geral, inviável e faz-se necessária a criação de um mediador ou mediadores que facilitem ao adolescente ou pré-adolescente expressar e simbolizar seus próprios sentimentos.

Partindo da experiência clínica da autora, foi observado que os adolescentes se mostravam ansiosos e angustiados diante dos longos silêncios nas sessões. Considerou-se oportuna a experiência relatada no atendimento de diversos pacientes, que passaram pelo processo de psicoterapia no período da adolescência, e hoje, na condição de adultos, "reclamam" da dificuldade de relatar seus sentimentos naquela época e da ansiedade mobilizada nos longos períodos de silêncio de seus psicoterapeutas, salientando até que o abandono do tratamento naquela época se vinculava a este fator. Questiona-se, porque deve-se incorrer neste mesmo erro, se esses pacientes, hoje adultos, dão gratuitamente preciosas informações sobre o manejo técnico para esta faixa etária específica.

Mobilizada pelo anseio de me colocar num papel mais diretivo e ativo enquanto psicoterapeuta de adolescentes e inspirada, inicialmente, nos resultados e disposição dos adolescentes em completar as frases incompletas de Rodolfo Bohoslavsky (1987) em Orientação vocacional criei e desenvolvi o jogo Túnel do Tempo, desta vez, com base nas necessidades peculiares dessa faixa etária com foco no contexto clínico. No início, o jogo começou somente com frases incompletas, aos poucos, senti a necessidade de incluir o lúdico nestas frases e notei que a mudança foi consideravelmente produtiva.

Houve praticamente um período de 10 anos entre a criação das frases, a experimentação em parceria nos adolescentes e a introdução destas frases no formato de um jogo.

O jogo Túnel do Tempo é composto por 165 frases incompletas nos seguintes tempos: Passado, Presente e Futuro. Com frases "Só para Meninas" ou "Só para Meninos", e frases referentes a Casos e Acasos. Estas frases incompletas foram impressas no formato de cartas e devem ser sorteadas por meio de um dado e um tabuleiro tradicionais, manuseados pelo próprio adolescente no contexto das sessões de psicoterapia.

Cada tempo específico aborda questões relativas ao tempo delimitado, ou seja, o tempo passado procura resgatar junto ao adolescente, reminiscências do seu passado; no tempo presente o adolescente encontrará frases incompletas que induzem ao relato do seu cotidiano e os sentimentos mobilizados nestas situações; questões relativas ao futuro instigam a imaginação sobre o próprio futuro do adolescente em processo de psicoterapia.

Assim, quando a carta do futuro, questiona: "Como os seus pais te veem daqui a dez anos?". Ao responder uma pergunta projetada na figura dos pais, ele está na realidade verbalizando como se vê daqui a dez anos, normalmente sem se dar conta da sua implicação como pessoa e, muitas vezes, ao abordar o tema de modo distanciado se torna mais fácil e permitido falar sobre o assunto. Foi observado que estar fora da realidade, especialmente para o adolescente, deixa-o distante de determinadas censuras, sobretudo, se o psicoterapeuta estimular o uso da imaginação.

Freud (1972) relaciona a fantasia ao tempo. É como se ela flutuasse entre três tempos, os três momentos abrangidos pela ideação. O trabalho mental se vincula a uma impressão atual do presente, que foi capaz de despertar desejos. A partir daí, retrocede à lembrança de uma experiência passada, criando uma situação referente ao futuro, que representa a realização do desejo. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo, que os une em um devaneio ou fantasia. O desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro para o futuro.

O tempo das cartas do jogo Túnel do Tempo, que foi denominado "Falando de" compõe-se de frases que se referem a alguns aspectos específicos e vivenciados pelo gênero masculino e feminino. Em "Casos e Acasos" são situações puramente hipotéticas, que possuem como objetivo principal dar vazão à imaginação dos adolescentes. Neste artigo será abordado somente este último tempo: "Casos e Acasos", que totalizam 17 cartas do jogo. Segue a descrição deste tempo do Túnel do Tempo:

1. O gênio da lâmpada apareceu na sua vida e pede-lhe para que faça três pedidos. Quais seriam?

2. Faça uma nota de seu falecimento, já velhinho com mais de 90 anos. Relate o que gostaria de ter feito e como gostaria de ser lembrado?

3. Imagine-se numa situação de estar num voo com um problema técnico cuja aterrissagem não se sabe se sairá bem. Foi autorizado aos passageiros que fizessem ligações via celular para quem desejassem. O tempo é curto, provavelmente de alguns minutos, possibilitando no máximo duas ligações. Para quem você ligaria? O que diria?

4. Você está numa festa e acontece uma briga muito séria no meio da madrugada a qual poderá inclusive complicar para o seu lado, e você...

5. Se tomasse conhecimento de estar com uma séria doença que lhe possibilitasse somente mais um ano de vida, o que mudaria em sua vida no decorrer deste último ano?

6. A sua cidade está sofrendo um alagamento e a sua casa foi drasticamente atingida. Existe a possibilidade de você salvar três coisas dali de dentro. Quais seriam?

7. Se tivesse poderes mágicos, o que mudaria no mundo? Por quê?

8. Com poderes mágicos em minha mão, mudaria na minha mãe...

9. Com poderes mágicos em minha mão, mudaria no meu pai...

10. Se pudesse mudar algo na minha vida, o que mudaria? Por quê?

11. Com poderes mágicos você poderá escolher um artista de televisão para ficar. Quem escolheria? Por quê?

12. Se ganhasse hoje na loteria o que faria? Por quê?

13. Se você pudesse mudar de idade, com qual gostaria de estar? Por quê?

14. O que faria, se numa balada você bebesse muito e começasse a passar mal?

15. A morte de um dos meus pais me faz pensar...

16. Se eu escrevesse um livro a dedicatória seria...

17. O que eu faria de diferente em minha vida, se não tivesse medo?

O tabuleiro é dividido em duas partes, uma parte com desenhos e uma sem desenhos, fornecendo ao adolescente a possibilidade de escolher para qual lado do tabuleiro irá caminhar. É curioso que, mesmo os adolescentes que dizem: "Não me venha com desenhos!" nas primeiras sessões, normalmente, num determinado momento do processo psicoterápico, optam espontaneamente seguir para o lado do tabuleiro, em que terão a probabilidade de desenhar e assim o fazem, quando o dado cai nestas casas.

Estes adolescentes deixam o terapeuta com algumas questões sem respostas, talvez ajam desta forma porque, neste momento, eles puderam, com autonomia, escolher a alternativa de desenhar, que não lhe foi imposta pelo profissional; ou porque a ameaça de avaliação de um desenho naquele momento do processo psicoterapêutico já estivesse amenizada. Os desenhos selecionados para o tabuleiro foram: desenhe o seu quarto; desenhe o que o deixa mais feliz; desenhe o que o deixa mais triste; desenhe a melhor festa que já foi; desenhe um grande desejo seu; desenhe seu maior medo.

Foi possível detectar que as frases incompletas do jogo "Túnel do Tempo" instigam a imaginação e contam com a ajuda do profissional para que se sentirem naquela situação proposta pelo material. O recurso de imaginar no contexto psicoterápico é um aliado frutífero no processo de psicodiagnóstico e tratamento para esta faixa etária. Afinal, como salientam Corso e Corso (2011, p. 22): "pensar através de histórias é uma possibilidade para a qual nosso cérebro está apto há milênios e é natural que continuemos assimilando o mundo dessa forma".

Assim, no período da adolescência, pode-se aproveitar muito mais o recurso de ampliar o espaço da imaginação no contexto clínico, instigando a imaginação por meio de mediadores, uma vez que o caráter identificatório com tal recurso é oportuno para auxiliar o adolescente e, especialmente, o pré-adolescente a nomear o que ainda não consegue ser dito. Em seguida serão apresentadas duas ilustrações clinicas. Na primeira com o enfoque e a relevância do emprego do Jogo na primeira sessão. Na segunda será apresentado o desenvolvimento de um atendimento clínico realizado ao longo de 44 sessões em que o jogo mostrou ser um procedimento útil do trabalho psicoterápico com adolescentes.

Ilustração clínica do uso do Jogo na primeira sessão

Será relatado um recorte da primeira sessão de uma garota de 16 anos, que será chamada de Amanda (nome fictício a fim de assegurar o sigilo). Foi descrita pelos pais como "a filha mais velha que nunca apresentou problemas anteriormente e que foi encaminhada pela família por ter se transformado em uma garota briguenta". Na primeira sessão Amanda se mostrou bastante fechada e triste. Os pais a consideravam uma das causas das discórdias familiares; também porque suas notas estavam baixas, segundo a família, e por algumas intrigas com o grupo de amigas na escola.

Foi a primeira sessão e ainda não havia sido introduzido o jogo "Túnel do tempo". Os seus pais foram recebidos junto com a adolescente. Como todos entraram juntos no consultório, a terapeuta aproveitou para interrogá-los sobre o motivo do encaminhamento. A psicoterapeuta perguntou a Amanda sobre o que achava dos aspectos citados para o seu encaminhamento e o que gostaria de dizer antes de seus pais saírem da sala. Ela verbalizou que não tinha nada para dizer. Seus pais permaneceram nesta primeira consulta, nos 15 minutos iniciais e, posteriormente na sessão, procurou-se estabelecer um infrutífero diálogo com Amanda. Ela se manteve muito desconfiada e distante nesta primeira sessão, dando respostas curtas e objetivas e utilizando palavras como "normal" para qualquer busca de seus sentimentos diante da situação familiar. Observou-se, na prática clínica, que o termo "normal" para falar de si é algo muito comum entre os adolescentes.

Foi sugerida, então, a fantasia do gênio da lâmpada (primeira carta do tempo Casos e Acasos) em formato de entrevista, fora do contexto do jogo: As falas da terapeuta serão indicadas por T e da paciente por A

T -"Se o gênio da lâmpada... Você o conhece? (a paciente responde que sim). Se ele aparecesse hoje na sua vida e lhe pedisse para fazer três pedidos a serem realizados, quais seriam?".

Amanda fez um breve silêncio, olhou pensativa e respondeu:

A - Primeiro eu gostaria que a minha mãe parasse de me comparar com a minha irmã. Ela faz isto o tempo todo e isto é muito irritante. Aliás, eu acho que a minha irmã me odeia, como me odeia, de tanto que a minha mãe me compara com ela.

T - Como assim? Como são estas comparações?

A - A minha mãe fala o dia todo, pensa em alguém que repete o dia todo. Não, eu não estou brincando, é uma repetição absurda, exagerada, irritante, a toda hora para a minha irmã: "Ana, veja a Amanda, ela não me dá trabalho, ela sempre foi ótima aluna e você só tira notas baixas".

"Ana, olha o quarto da Amanda, está sempre arrumado, as gavetas arrumadas e o seu parece um lixo!".

"Ana, olha como você suja as suas roupas, eu não te aguento mais! A Amanda termina o dia limpinha...".

Isto é muito triste, o dia todo na nossa cabeça, eu não aguento mais.

T - Você tem toda razão, realmente não deve ser legal para a sua irmã ser comparada a você, isto deve distanciar vocês duas. Ótima sacada a sua! Penso que é um diálogo interessante para se ter com a sua mãe, imagino que isto irá ajudá-la nesta difícil tarefa de ser mãe...

A - Não adianta conversar. Eu já falei com ela muitas vezes sobre isto, já pedi muitas vezes isto para ela: "Para de me comparar com a Ana, você não vê que isto deixa ela com raiva de mim?" E a minha mãe nunca considerou o que eu falei sobre isto.

T - Amanda, a gente aprende a ser mãe, sendo mãe. Provavelmente ela cresceu no meio de comparações de irmãos. Mas podemos encontrar, aqui em psicoterapia, formas de conversar juntas sobre este pedido seu e abrir para escutar a sua mãe...

A - É... realmente, a minha mãe sempre reclama da minha avó que comparava ela com as minhas tias, ela fala isto mesmo... Então, por que faz isto com a gente, se já sabe como foi péssimo para ela?

T - Infelizmente funcionamos assim. Parece muito estranho, né? Mas aquilo, que sempre criticamos em nossos pais, é o que já estamos identificados e para não repetirmos teremos que fazer grandes esforços... Pense: sua mãe nasceu, cresceu, viveu assim, percebe? É o que ela sabe fazer. Para fazer diferente terá que retirar "leite de pedra"...

A fez um breve silêncio e T pediu que fizesse o segundo pedido ao gênio da lâmpada. Amanda permaneceu em silêncio, abaixou a cabeça e se pôs a chorar compulsivamente. Foi oferecido um lenço de papel e, quando resgata o seu olhar, T perguntou:

T - O que dizem essas suas lágrimas? No que pensou, quando começou a chorar? Conseguiria colocar em palavras?

A - Que se o gênio da lâmpada resolvesse este pedido para mim, o resto é "pipoca com guaraná"..., não tenho outro pedido, resolvido isto tudo se resolveria na minha casa, como consequência.....

T - Como assim? Você tem mais dois pedidos para ele...

A - Não precisa de mais dois pedidos... Se resolver isto em casa, tudo ficaria resolvido. A minha irmã iria melhorar o comportamento agressivo dela comigo, eu iria viver melhor com ela, o meu pai iria chegar em casa sem ter tantos problemas para escutar... Só isto... Talvez a minha mãe também respeitar um pouco mais a minha irmã do jeito que ela é, também simplificaria a nossa vida, com os defeitos dela, com as notas baixas dela... É, talvez fizesse este segundo pedido... Mas penso que se a minha mãe comparasse menos nós duas, a minha irmã já melhoraria por tabela, nem precisaria de um segundo pedido, o resto é "pinga com café".

T - E como é para você ocupar este lugar perfeito? Fez tudo sempre tão bem, as boas notas, as tarefas, as roupas sem sujar, os armários arrumados...

A - Sempre fui assim...

T - E como se sente sendo assim?

A - Bom por um lado, péssimo por outro... Parece que para a minha mãe nunca basta o que eu faço, ela sempre quer mais, mais e mais. Descobri que não tem fim.

T - E imagino o quanto estas comparações não soam como cobrança para você também...

A - Sim, eu acho que sim.

No prosseguimento dos atendimentos de Amanda, foi utilizado o jogo Túnel do Tempo por um ano de processo psicoterápico e, em algumas sessões foram feitas sem o uso do jogo, quando se percebia que a necessidade de um mediador era desnecessária, ou seja, descartávamos o uso do jogo nos momentos que a paciente relatava e se expressava durante o período de tempo da sessão falando com tranquilidade.

O seu profundo silêncio e o impasse em uma conversa que pouco se desenvolvia na primeira sessão, foi visivelmente quebrada, com a magia do gênio da lâmpada. Acima de tudo, constatou-se que deste modo se iniciou uma aproximação afetiva fundamental, que provavelmente facilitou a continuidade dos atendimentos. Quanto à importância do investimento neste aspecto no atendimento do adolescente, Násio (2011) complementa, dizendo que a cura de um adolescente ou pelo menos o alívio de seus sofrimentos, indiferente da técnica psicoterapeuta empregada, está relacionada à qualidade do diálogo afetivo que ele estabelece com o profissional.

Ilustração clinica do emprego do Jogo no processo psicoterápico

Para ilustrar o conteúdo desenvolvido será apresentado o caso clínico de um paciente adolescente, com 13 anos de idade, que será chamado de Fábio (nome fictício). Seus sintomas obsessivos eram bastante graves e comprometedores e limitavam gravemente sua vida escolar e social. Seu sofrimento era claro para ele, tanto que a psicoterapia foi uma solicitação pessoal. No entanto, falar das suas dificuldades era sentido como algo impossível, como ele mesmo expressou na sessão. Havia excessivo pudor quanto aos seus desejos em relação às garotas e não conseguia se referir aos seus temores de objetos cortantes. Fábio não se alimentava utilizando a faca, usava somente o garfo e a família tinha que esconder estes objetos, que lhe causavam repulsa. Da mesma forma, todos da família não podiam usar este utensílio na sua frente, pois ele se desequilibrava e, assim, todos aderiram ao seu pedido em função do estado físico, que ele ficava diante do objeto (suava frio e gritava desesperadamente).

Os objetos de vidro da casa tinham que ser retirados de sua presença uma vez que, no seu entender, poderiam ser quebrados e transformados em objetos cortantes. Dizia que não conseguia nem pensar nestes objetos, que sentia um mal estar indefinido e arrepios no corpo.

Nas sessões não conseguia falar sobre o tema, dizia sentir o mesmo arrepio e mal-estar somente de "pensar" no assunto e ficava transtornado, andava pela sala transpirando. Fábio não conseguia falar e tinha convicção de seu intenso sofrimento e do desejo de se livrar de tudo isto. Nas primeiras sessões de entrevista, Fábio não aceitou a aplicação do HTP2 (Buck, 2003) e outros recursos com desenhos, anunciou logo no primeiro contato que "não queria desenhar".

Diante do paciente que parecia desejar se comunicar, porém ficava muito tenso frente a esta comunicação, a T optou em introduzir o jogo logo nas primeiras sessões. Os temas das frases incompletas se referiam a outro tema, que muito o angustiavam e amedrontavam: morte e desejo de suicídio, bem como o isolamento social por constatar que sentia "algo pelos garotos" e curiosamente, por meio do jogo e dos desenhos, aos poucos, foi podendo falar destes sentimentos.

A Figura 1 mostra um de seus primeiros desenhos, solicitado pelo jogo Túnel do Tempo: "Desenhe o que o deixa mais triste". Ele desenhou um funeral. Relatou, que pensou nos vários funerais, que vivenciou ultimamente em sua família.

 

 

Esse desenho permitiu a ele falar de várias mortes ocorridas com entes queridos, o que significou para ele e a dificuldade da família de falar sobre o assunto. Em outra sessão posterior, com o uso de outra frase incompleta (Tempo do Futuro: "Nas próximas férias eu pretendo"...), foi observado indiretamente o tema de sua própria morte e ele relatou o desejo de se matar. Explorando o tema, foi pedido a ele que fizesse uma carta relatando o que gostaria de dizer para as pessoas antes da sua morte. Ele mergulhou profundamente nesta imaginação e escreveu:

"Eu não aguento mais viver neste mundo. Estou cansado. Quero me livrar através da morte do meu sofrimento. Não quero mais ser um peso para vocês, meus pais, como estou sendo. (Relatou neste momento detalhes do relacionamento).

Quero um velório rápido para não dar mais este trabalho. Avisem a todos que eu morri".

Falar sobre o seu sintoma principal, a repugnância às facas e objetos de vidros que pudessem ser quebrados, ocasionava-lhe pânico na sessão, ânsia de vômito, e um mal-estar extremo, que nada poderia remeter ao tema. Em outra sessão, com o uso do jogo, vem a seguinte solicitação: "Desenhe seu maior medo".

Após o desenho (Figura 2), T perguntou-lhe o que eram aqueles desenhos e ele disse que eram vidros e uma faca. T questionou o que aquela faca, escrito sangue ao lado, representava para ele. Ele respondeu que representava a morte. T perguntou: Morte de quem?

 

 

F - De todos.

T - Todos quem?

F - Parentes e amigos.

T - Quais?

F - Todos. Faca é como se todos estivessem sendo velados e todos em volta do caixão.

T - Como assim?

F - É como se desse medo e ao mesmo tempo atenção.

T - Atenção. Atenção é algo bom, não é?

F - Depende, às vezes.

T - Fala disto...

F - É bom porque morte acaba com o sofrimento e todo mundo vai te dar atenção, sei lá... e, por outro lado é ruim, porque você vai morrer.

T - Tente explicar mais...

F - Quando você morre os outros ficam lembrando de você e você vai para o céu. Ou então, quando você se mata com uma faca, você é hospitalizado e todos te darão atenção. E acaba com o seu sofrimento também.

T - Quanta coisa saiu desta faca, hein! Morte, desejo de se matar, de se machucar para ir a um hospital e receber atenção. Será que não existiria outra forma de receber atenção na sua família? Será que isto não são os restos da doença do seu irmão, que ficaram para você como a única fórmula mágica de se comunicar dentro da sua casa, através do sofrimento?

Espero que com o tempo, possamos ir compreendendo tudo isto, para que faca, para você, seja somente para cortar carne e fazermos um gostoso e prazeroso churrasco em família com muita diversão e atenção por esta via.

T aproveitou esse material e os conteúdos importantes, que foram paulatinamente aparecendo posteriormente, para trabalhar nas sessões em parceria com os pais. Teria que mostrar-lhes que o sofrimento de Fábio é um modo de segurar os seus pais (ainda muito depressivos com a morte do irmão) próximo dele, como age um bebê que muito chora ao constatar que a mãe está muito triste. Ainda era necessário apontar, na própria fala destes pais, os momentos em que eram solicitados saudavelmente por Fábio para um passeio ou qualquer atividade escolar e que não era escutado ou atendido.

Com o conteúdo de outras frases incompletas foi sendo esclarecido que, Fábio, após acompanhar uma séria doença do irmão mais velho e a sua morte, não reconhecia seu espaço na sua própria casa. Seus pais ainda presos a este sofrimento, não falavam de sua morte e agiam como se este irmão ficasse em um lugar idolatrado na família, promissor de um futuro ideal que não ocorreu. Este lugar angustiava Fábio que prosseguia sem o cuidado dos pais que zelaram muito pelo irmão no período em que este estava adoecido e assim continuaram, em função do profundo luto da família que se arrastava por quatro anos. Além disto, Fábio sentia-se incapaz de corresponder ao lugar idealizado do irmão que não sobreviveu.

Desse modo, meio que brincando e desenhando, as questões sobre a agressividade, inveja fraternal e raiva, começaram a surgir. Isto era muito complicado de sentir, uma vez que esse irmão já não estava mais entre eles. Fábio pôde recordar das difíceis viagens esporádicas para o tratamento do irmão, quando se sentia abandonado na casa dos tios ricos, com o primo da mesma faixa etária que tinha tudo: os pais, dinheiro, viagens de férias, passeios, enquanto ele era privado dos pais, cujo dinheiro na casa sempre priorizava o tratamento do irmão e tinha ainda que se submeter aos relatos exibicionistas daquela família. A dor desta separação, os olhares somente para o irmão, a raiva desse irmão e desse primo, a raiva dos pais pela condição que o colocaram e a aos poucos a noção de que a morte e a doença eram, naquela casa, um "ótimo negócio" para se obter alguma importância, algum significado.

Em "Desenhe o seu quarto", Fábio relatou que não conseguia desenhar. A T pediu-lhe para contar o que o seu quarto representava para ele, que disse que representava o seu próprio "EU" (o paciente escreveu em letras maiúsculas), pois ali estão todas as suas coisas. Foi pedido novamente que desenhasse, mas ele disse não conseguir. Então foi solicitado que expressasse em palavras o seu quarto e então escreveu os seguintes termos para explorar durante toda a sessão:

EU

Ódio - vingança

Raiva - Ciúmes

Morte - desespero - pavor - ansiedade - medo - dor

Vômito

Orgulho

Embaixo destas palavras segue um desenho, que diz não ser nada, apresentado na Figura 3.

 

 

Graña (1991) propôs uma estratégia importante para o atendimento desta faixa etária. Ele considerava não haver inconvenientes se reunir com os pais, quando necessário, mostrando aspectos do comportamento deles, que realimentavam o problema. E, em algum momento, se possível, fazendo-os compreender certos pontos de sua relação com o filho, que exigem um redimensionamento. Contudo, o centro da preocupação é o adolescente e a abordagem terapêutica usada é a analítica e individual, evitando alongar as entrevistas com os pais, o que poderá ser entendido pelo paciente como uma manobra infantilizante e criar problemas para a manutenção do vínculo. Assim, com base na proposta de Graña, neste caso clínico, os pais, sempre com a autorização de Fábio para compartilhar dados descobertos em sessão, foram convocados em diferentes momentos do processo psicoterápico.

É importante salientar que este mesmo jogo produz respostas extremamente diversas em cada caso clínico. A proposta é exatamente instigar a projeção, em que o psicoterapeuta somente concede a abertura, ou seja, uma frase inicial a ser completada, que deve ser preenchida por diferentes conteúdos.

Neste caso, velórios, doenças, ciúmes e raiva surgiam nas frases incompletas de diferentes maneiras, desde o modo como se relacionava com seu animal de estimação até nos sentimentos mobilizados nos relacionamentos com os amigos. Abordar e dar sentido a estes medos tão cheios de significados para Fábio, conduziu-o no período de um ano à melhora de alguns de seus sintomas: o pavor de facas e cacos de vidros, que remetiam indiretamente a situações de verdadeira raiva frente a figuras ambivalentes de amor como seus pais, irmão e o primo. Dar conta da inveja em relação aos amigos e colegas do mesmo sexo diminuiu o sintoma de temor e aversão social e curiosamente, aos poucos, Fábio foi se integrando a um grupo de amigos, que era também outra queixa pessoal: ele não tinha um grupo de amigos.

Neste caso, o único recurso de comunicação foi o uso das frases incompletas do jogo Túnel do Tempo. O garoto, logo que chegava à sessão já solicitava este recurso e, assim, era iniciada a conversa por meio destas frases. Como já citado, algumas não tinham muita significação, e então, rapidamente o dado era jogado e o jogo continuado. Em outras vezes, a frase levava a permanecer praticamente durante todo tempo de uma sessão. O fundamental era o fluir de seus conteúdos emocionais. O recurso do jogo proporcionava esta possibilidade e, então, as sessões prosseguiram em encontros semanais, conforme as possibilidades familiares de levarem o garoto aos atendimentos.

No entanto, Fábio prosseguia com um perfil rígido e obsessivo e tinha consciência disto e ambicionava novas mudanças em sua vida. Por outro lado, seus pais "não conseguiram mais horários compatíveis" para trazê-lo à sessão e houve um rompimento. Neste ano de psicoterapia, Fábio já havia conseguido falar de seus sentimentos e ingressar em um grupo de amigos, ter uma rotina de sair para tomar lanche nos sábados à noite com esta turma, ter uma namorada e sentir a frustração de um rompimento. A família também começou a ter uma vida social normal com o desaparecimento de alguns sintomas, que limitavam a todos do grupo, uma vez que ninguém na mesa podia utilizar uma faca, pois sua atitude era de um descompasso desagradável e desconcertante para todos perante os amigos.

Os temas que surgiam neste momento do processo psicoterápico apontavam para um futuro, perspectivas, sonhos que Fábio elaborava para si. Trazia nos últimos meses de atendimento seus encontros com os amigos, os passeios, as novas amizades e descobertas.

Em seu último desenho: "Desenhe um grande desejo seu" (Figura 4), apareceu a descrição das viagens que sonhava realizar e os lugares que desejava conhecer, relatava o desejo de casar-se e ter filhos e um caderno com seus planos futuros, sua escolha profissional e o período da faculdade. Fábio tinha na época somente 14 anos de idade. Parecia que necessitava voar longe, talvez para fugir de um ambiente que, por mais que tenha se modificado em função da sua pessoa, ainda permanecia mórbido em muitos aspectos. Porém, encontrou seu caminho em outra direção, diferente da que tanto o angustiava.

 

 

Diante do temor e desenvolvimento de sintomas físicos em Fábio ao falar de seus temores (foco do processo psicoterápico), a psicóloga se sentiu imobilizada para agir psicoterapicamente.

Souza (2008) contribuiu neste sentido, dizendo que é comum crianças e adultos, que parecem temer seus pensamentos, como se estes não pudessem ser pensados, nem mesmo brincando. Muitas vezes, o processo psicanalítico opera no sentido de permitir que esses pacientes possam pensar seus pensamentos, inicialmente, protegidos pelo setting analítico. Para as crianças, que chegam ao consultório dizendo que "não brincam com armas", "com coisas de crianças", "com coisas de maricas", etc., parece ter faltado a experiência protegida dos playgrounds, onde teriam dado vazão a suas emoções. Quando, ao lado do seu analista, se permitem tais brincadeiras, podem crescer sem tanto medo de seus pensamentos e fantasias. Da mesma forma, é esse o caminho que a análise abre para os adultos, que dizem não sonhar ou não se lembrar dos sonhos. O mesmo ocorre com o adolescente, porém a maneira de "tocar" nestas "armas" não será mais pelo brincar. Novos recursos terão que ser explorados nas sessões, além do discurso verbal e da fala.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o recurso do jogo e, em parceria com o adolescente, pode-se montar o quebra-cabeça da sua vida. Um quebra-cabeça cujas peças estão espalhadas e embaralhadas em sua própria memória. A cada frase incompleta, novas revelações surgirão, a cada nova frase, o desvelar da sua própria história, reflexões sobre fatos concretos da sua vida, o desenvolvimento da habilidade de superar suas frustrações e a possibilidade de embarcar num futuro ainda mais promissor.

A imaginação, presente no indivíduo adulto e na criança, mantém intensa força no período da adolescência, que poderá ser melhor aproveitada em psicoterapia como um recurso de intervenção nesta faixa etária. Distanciar e referenciar a outros temas angustiantes com um lúdico adaptado à faixa etária, por meio de temas que necessitam explorados em psicoterapia, tem se mostrado um facilitador e um catalisador deste processo.

Neste trabalho observou-se que o uso induzido da imaginação no período da adolescência, que permite certo distanciamento para tratar de fatos angustiantes e que se torna um excelente recurso mediador psicoterápico, tanto no psicodiagnóstico como na intervenção, somado a outras técnicas de investigação apropriadas para esta faixa etária, tais como: testes projetivos, desenhos, etc.

Dessa forma, podem ser obtidos mais dados e maior clareza diagnóstica, bem como ser alcançada maior precisão nas intervenções, decisões, direção do raciocínio, direção e conduta clínica. Algo tão necessário na clínica, em especial, na clínica com adolescentes e pré-adolescentes.

Aproveitar os devaneios, as fantasias e a imaginação como recursos técnicos, tão marcantes no período da adolescência se assemelham deste modo, ao uso do brincar no contexto clínico do atendimento infantil. Freud (1972, p. 83) já no final de seus escritos ressalta a seguinte conclusão: "A obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil". Dessa forma considera-se que o Jogo "Túnel do tempo" pode ser usado com resultados muito interessantes na psicoterapia junto a adolescentes.

 

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Recebido em 26/05/15
Revisto em 25/07/16
Aceito em 30/07/16

 

 

* Endereço para correspondência: Maria Salete: Rua Caracas, 500, apto 1302 - Gleba Fazenda Palhano, Londrina - PR. CEP: 86050-070. E-mail: msarenalesloli@gmail.com Fone: (43) 3342-0414. Jorge: abrao@assis.unesp.br; Leila: tardivo@usp.br
1 Partes do artigo serão escritas com o uso da primeira pessoa, pois se baseiam na experiência clí
2 O HTP é uma técnica projetiva dos desenhos da casa, árvore, pessoa (House-Tree-Person, H-T-P).
3 Algumas partes do desenho foram retirados com o objetivo de proteger a identificação do paciente.

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