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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Uma interlocução entre psicanálise e educação, compreendendo a psicose: a exclusão do diferente, a loucura em questão

 

 

Denise Regina Quaresma da Silva

Instituto de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do RS

 

 


RESUMO

Contém as indagações sobre a possibilidade de incluir-se a criança dita psicótica no ensino regular, originando pesquisa de doutoramento. Discute-se a “loucura” e sua repercussão no meio escolar, apontando a importância do tema, numa necessária articulação da Psicanálise com a Educação.

Palavras-chave: Psicose, Exclusão, Estrutura, Sintoma, Aprendizagem.


ABSTRACT

The present text is the result of several questions made by the author concerning the possibility to include or not the so said “psycotic” child in the elementary schools. The research will be present as a Ph.D. thesis. The “madness” is discussed as well as the importance of the articulation between Psycoanalyses and Education.

Keywords: Psycosis, Exclusion, Structure, Sympton, Learning.


 

 

Inicio estes escritos, inspirando-me na introdução do livro de KRISTEVA, Estrangeiros para Nós Mesmos, no qual ela nos convoca a pensar nas diferenças, intensamente:

Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades (KRISTEVA, 1994, p.9).

Fins do século XVIII, início do século XIX: os loucos, segundo FOUCAULT (1995), transitam entre os hospitais gerais, as casas de detenção, as casas de caridade, os depósitos de mendigos e as prisões familiares. Nesses espaços, ficavam isolados todos os que eram considerados improdutivos para a burguesa sociedade vigente: os doentes, mendigos, velhos, presos políticos ou quem colocava em risco valores estabelecidos, como a propriedade e a família, originando disto o estigma de que a loucura é perigosa.

Esse mesmo autor tematiza profundamente a loucura, esse tipo de contingência humana que foi significada complexamente ao longo da história, justamente pela perplexidade que suscita. A loucura fala, com a da diferença que nos aponta, do estranhamento possível nos humanos, do “estrangeiro” apontado por KRISTEVA (1994) no início destes escritos, do contraditório que rompe com o limite fixado por padrões estabelecidos, parecendo se relacionar com o indizível. Enfim, ainda hoje, vemos novas formas de isolar o “louco” na nau, como aponta FOUCAULT (1995), enviando-o para longe de nós, evitando defrontarmo-nos com a imprevisibilidade humana que surge na (com)vivência.

Diante disto, MACHADO (1990) coloca que apesar dos diversos modos de elaboração que a loucura teve em cada época, a dinâmica da exclusão sempre esteve presente por se tratar de um indivíduo que “aparece como outro, como diferente, como estrangeiro aos olhos da razão e da moral” e por tal motivo, ainda segundo o autor, busca-se classificar o estranho a nós como sendo desclassificado e sem razão.

De acordo com JERUSALINSKY (2001), hoje quando falamos em inclusão, repetimos o equívoco da Revolução Francesa, pois declaramos iguais pela lei os que não dispõem de recursos para exercer sua igualdade e legitimou-se a restrição dos caminhos que possibilitam ou ampliam tais recursos. Este aspecto, segundo esse autor, é de extrema importância, pois juridicamente temos aberto as portas da escola para as diferenças, mas adverte que:

Ao mesmo tempo, são poucas as experiências de onde se desenvolvem os recursos docentes e técnicos e o apoio específico necessário para adequar as instituições escolares e os procedimentos pedagógicos-didáticos às novas condições de inclusão. Com isso, tem despencado sobre a escola comum uma avalanche de crianças que apresentam condições psíquicas, funcionais e de aprendizagem, com que os docentes não têm experiência nem condições de sustentar, sem contar, ao mesmo tempo, com o apoio adaptativo necessário. De tal modo que as crianças acabam tendo que suportar a inadequação institucional, num momento de mudanças, e durante anos muito delicados de sua vida. (...) muitas crianças são lançadas precipitadamente nessa experiência sem que se tenha preparado as condições necessárias, nem nas crianças, nem nas escolas, para que a sua inclusão possa efetivar-se sem transformar-se em um ato de mera aparência (JERUSALINSKY, 2001, p. 19).

Enfatiza esse autor a importância de reconhecermos e entendermos as diferenças, para que elas possam ser atendidas, minimizadas e elaboradas, impedindo desta forma que elas se tornem fonte de discriminação ou exclusão.

Situamos então a psicose para além do campo orgânico e/ou “psi”, apontamos a questão da psicose incluindo aos demais o campo da diferença. Durante muito tempo, como aponta FOUCAULT (1995), qualquer diferença era dada como loucura, psicose e debilidade eram confundidas e a distinção entre uma forma e outra não ocorria. Sob o “rótulo” da loucura, essa diferença, que é estrutural, não era entendida. Neste sentido, surge a incontestável utilidade dos conceitos freudianos e dos estudos de LACAN (1988) para um melhor entendimento das sintomatologias que aparecem sob a forma de sintomas polimorfos e lábeis.

Sobre os sintomas psicóticos, CORDIÉ diz que:

Não se organizam em sistema como nós vemos nas neuroses, histérica ou obsessiva, mas tomam as figuras mais desconcertantes. Essas podem ser as condutas desviantes, o suicídio, a toxicomania, os distúrbios graves da imagem do corpo, as fobias, um isolamento, uma diminuição do rendimento escolar, às vezes uma sucessão de repetições, uma recusa em ir à aula em crianças e adolescentes que até então eram bons alunos. Essa ausência de coerência e continuidade da sintomatologia torna necessária uma aproximação que não seja uma classificação descritiva banal (1996, p. 167-168).

A aproximação da psicanálise com as demais ciências do pensamento humano, tais como as do campo da Educação, visa contribuir no entendimento dessa questão buscando evitar que um falso igualitarismo possa acabar em segregação, auxiliando para que a criança, que está com sua estrutura em formação e aparentemente encaminhando-se para uma psicose, possa pela sua integração à escola “permitir-lhe descer do trem que conduz os psicóticos ao exílio manicomial antes de chegar ao fim da linha” (JERUSALINSKY, 1999, p. 147), seja porque sua estrutura se transformou e ele deixou de ser psicótico, o que segundo o autor em alguns casos é possível antes da puberdade, ou seja porque a psicose se articulou de forma a não impedir o sujeito de funcionar socialmente.

A partir dessas colocações, vamos para o entendimento da psicose, à luz da psicanálise.

 

O Sujeito da Psicose à Luz da Psicanálise Lacaniana

A questão que se coloca a propósito das psicoses é saber o que acontece com o processo da comunicação quando, justamente, ele não chega a ser constitutivo para o sujeito (LACAN, 1999, p. 151).

Para entendermos a psicose, a partir da teorização original proposta por LACAN ( 1979), colocamos em evidência o conceito de estrutura, com seus pontos-chave de seu estabelecimento: os mecanismos de recalcamento e de foraclusão.

CORDIÉ (1996) aponta-nos que o conceito de inibição se apresenta diferentemente na neurose e na psicose, pois enquanto na neurose o bloqueio das operações intelectuais está ligado a um interdito do saber que o sujeito se impõe sem saber na psicose a inibição deve-se a uma impossibilidade radical de integração do saber devido a um defeito maior na estrutura do sujeito. Temos, então, que enquanto o sujeito neurótico é dividido pelo recalcamento, o sujeito psicótico é dividido pela foraclusão. Este conceito é utilizado por Lacan (1979) fazendo referência ao termo freudiano Verwerfung, designando um mecanismo específico da psicose, através do qual o sujeito rejeita um significante fundamental para fora do seu universo simbólico. Quando ocorre essa foraclusão, um significante primordial é rejeitado no universo simbólico, não se integra ao inconsciente, como ocorre com os neuróticos sob a forma de recalque. Esse significante foracluído retorna então (no real) para o sujeito, como uma alucinação ou um delírio que invadem sua fala ou a sua percepção.

LACAN (1979) afirma que está foracluído aquilo que escapa à simbolização, ou seja, a inscrição do sujeito na linguagem, resultando disso que todo processo secundário está comprometido, ficando o psicótico “fora do discurso”. O significante perde então sua função de ser móvel e substituível e remeter o sujeito a outro significante na cadeia, fixando-se em uma significação dada, ficando ele então surdo à metáfora, sendo que esta impossibilidade de metaforização, conseqüência da foraclusão, é uma das maiores desvantagens do psicótico, pois ele não se estabiliza no discurso nem “escuta” para além das palavras, tornado-se problemática sua comunicação com as pessoas que o rodeiam. Segundo Lacan, na psicose está foracluído o significante da função paterna, Nome-do-Pai: a metáfora paterna simboliza a separação primordial em relação a mãe e os significantes do seu desejo.

Conforme ROUDINESCO (1998):
(...) no âmbito da teoria lacaniana do significante, a transição edipiana da natureza para a cultura efetua-se da seguinte maneira: sendo a encarnação do significante, por chamar o filho por seu nome, o pai intervém junto a este como privador da mãe, dando origem ao ideal de eu na criança. No caso da psicose, essa estruturação não se dá. Sendo então foracluído o significante do Nome-do-Pai, ele retorna no real sob a forma de um delírio contra Deus, encarnação de todas as imagens malditas da paternidade (ROUDINESCO, 1998, p. 542).

JERUSALINSKY (1999), esclarecendo como se dá a aprendizagem na criança psicótica, fala-nos da fundamental articulação do simbólico na produção material, para haver o processo de criação, sendo que é pela articulação entre a metáfora e a inscrição do mundo físico que se articula o desejo, advindo o eu do sujeito. Explica-nos também que é necessário, já nas inscrições primordiais feitas na criança, um “esticamento simbólico” que permita que o sujeito produza:

É claro que os psicóticos recebem uma certa marca, uma certa inscrição, mas o problema é que essa inscrição não pode chegar muito longe, pois a receberam de modo tal, esta marca foi feita com tal material significante que o elástico simbólico não pode se esticar ou estica muito pouco (JERUSALINSKY, 1999, p. 139).

Salienta esse autor que é em função dessa falta de possibilidade elástica do simbólico, dessa impossibilidade de metaforizar, que o psicótico tem dificuldades para aprender, não por não ser inteligente, mas porque inteligência não é equivalente a simbolização.

É de fundamental importância o entendimento dessas questões para que efetivamente consigamos auxiliar a criança psicótica no seu processo de aprendizagem. Retornemos a JERUSALINSKY:

Embora as significações possam continuar determinadas pela foraclusão, esse contato com o mundo significante que funciona na referência a um pai (seja lá qual for) parece funcionar, nas crianças psicóticas, como uma janela de luz aberta nessas trevas exteriores em que foi lançado aquele significante primordial que fora rechaçado (JERUSALINSKY, 1999, p. 148).

Na imprevisibilidade do diagnóstico de psicose para a criança, por sua estrutura estar em formação, reside uma possibilidade de aposta importante, em que a escola tem uma função fundamental: “(...) Lacan insiste no fato de que se não há educação e aprendizagem, haverá fracasso no enodamento dos três círculos: do real, do simbólico e do imaginário” (BERGES e BALBO, 2003, p. 28, 29).

Volto às colocações iniciais, nas quais aponto o horror que a psicose infantil suscita e a paralisação, em nível de investimento, que decorre dela. É questão pertinente justamente buscar entender quanto podemos auxiliar, enquanto profissionais da saúde, no entendimento do que está posto sobre a psicose infantil, no social, e quanto podemos contribuir na compreensão dessa “diferença”, produzindo efetivamente uma diferença.

Faço uso das palavras de FILIDORO (2003): “Falar de aprendizagem em crianças psicóticas é percorrer um caminho em construção. A maior parte é de questionamentos. Há poucas respostas, e quase todas são duvidosas” (FILIDORO, 2003).

Concordo com a autora e estou ciente das dificuldades concernentes ao tema, mas considero pertinente que nos indaguemos sobre esses “estrangeiros”, pois urge que nos impliquemos.

 

Bibliografia

BERGES, Jean e BALBO, Gabriel. Há um infantil da psicose? Porto Alegre: CMC, 2003.        [ Links ]

CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clinica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.        [ Links ]

CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.        [ Links ]

FILIDORO, Norma. Palestra proferida, 2003.        [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1995.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. In: Obras completas. Edição. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 20.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Um estudo autobiográfico. In: Obras completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 20.        [ Links ]

JERUSALINSKY, Alfredo (org). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1999.        [ Links ]

JERUSALINSKY, Alfredo. Escritos da criança n. 6. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 2001.        [ Links ]

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. 336 p.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 366 p.         [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth. “Dicionário de Psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 531 p.        [ Links ]

MACHADO, Renato. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.        [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

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