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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

A clínica da vintolescência1, 2

 

Gladston dos Santos Silva

Grupo de Estudos Psicanalíticos - Grep

 

 


RESUMO

Articula a ficção de Tolkien em “O Senhor dos Anéis” com a adolescência e reflete como o psicanalista pode causar o sujeito, estimulando a capacidade de criação nesse momento “em que impera a masturbação e a morgação”.

Palavras-chave: Sexualidade infantil, Adolescência, Falo, Pulsão repetição, Gozo, Inconsciente, Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This text presents an articulation between the book The Lord of the Rings, written by Tolkien, and the adolescence. Likewise, it is discussed how a psychoanalyst may cause the subject, stimulating his or her capacity of creation in a period that masturbation and “morgação” make a kingdom.

Keywords: Infantile sexuality, Adolescence, Phallus, Instinct, Repetition, Enjoyment, Unconscious, Psychoanalytic practice.


 

 

Este trabalho se originou da clínica com sujeitos adolescentes e de suas elaborações durante o processo de análise e da leitura da obra de J.R.R Tolkien “O Senhor dos Anéis”.

Não é pretensão interpretar ou fazer uma análise desse livro ou do seu filme, mas pontuar as identificações dos adolescentes com as situações vividas pelos atores, articular a ficção de Tolkien com a adolescência e demonstrar como a escuta do psicanalista pode propiciar ao sujeito a capacidade de criar nesse período “em que impera a masturbação e a morgação”3.

Nesta articulação privilegiaremos a noção de falo, conceito central na teoria psicanalítica.

Com a estréia do filme em Belo Horizonte, iniciou-se na fala dos adolescentes comentários sobre “a sociedade dos anéis, a expedição de Bilbo e o encontro do ‘Um anel’, as dificuldades e aventuras vividas por Frodo em sua viagem com o ‘Um anel’, as mulheres maravilhosas, e os seus encontros com os homens. As identificações com o mago Gandalf, com o Elfos Légolas e até mesmo com o repugnante Gollum”.

“ O Senhor dos Anéis” é uma obra de ficção de John Ronald Reuel Tolkien. É alternadamente cômica, singela, épica, monstruosa e diabólica. A narrativa desenvolve-se em meio a inúmeras mudanças de cenário e de personagens num mundo imaginário absolutamente convincente em seus detalhes.

Tolkien criou uma nova mitologia, um mundo inventado que demonstra possuir um poder de atração atemporal.

Tanto o filme quanto a adolescência retratam uma travessia, na qual os aventureiros se confrontam com perigos de todas as ordens. No filme são os Trolls, Orcs, Elfos, Dragões, etc. Na adolescência são as mudanças fisiológicas produzidas na puberdade. O corpo em transformação prepara-se para exercer a função de reprodução, o encontro com o outro sexo, o novo posicionamento no mundo onde os adolescentes devem desligar-se dos modelos identificatórios da infância, assumir o seu desejo, por sua própria conta e risco e, marcar sua entrada no mundo adulto. Em nossa cultura essa passagem é um verdadeiro enigma.

Segundo Freud, o sofrimento humano acontece no corpo, no mundo externo e nas relações com os outros. Na adolescência, esse sofrimento ocorre intensamente, já que acomete as três esferas simultaneamente. Tanto o filme quanto a adolescência são reedições do passado.

Para melhor compreensão do filme “O Senhor dos Anéis” é necessário ler “O Hobbit”, livro precursor da tríade. Ele retrata a saída de Bilbo (tio de Frodo) do conforto do Condado, chegando até a montanha solitária em busca do tesouro perdido, passando por momentos de grande perigo. Bilbo encontra “Um anel” que, ao ser colocado no dedo, o deixa invisível. O filme começa com Frodo recebendo das mãos do tio esse anel, que lhe dá o poder de tornar-se invisível, o que o retira do campo de visão do outro fazendo o adolescente acreditar que tem o falo.

Em 1905, nos “Três Ensaios”, Freud elabora a sexualidade infantil abrindo um amplo leque que decide o futuro de toda sexualidade humana. “Portanto, o que se dá na adolescência em parte já vem pré-formado nas etapas anteriores, ou seja, na infância, na latência e na puberdade”4. Nessa situação de conflito, nada melhor do que lançar mão de um objeto que torne o sujeito pleno, completo, perfeito e total.

A noção de falo aparece tardiamente em Freud, no texto “A Organização Genital Infantil” (1923), na qual a “característica principal dessa organização genital infantil é sua diferença da organização genital do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo”5.

Foi com Lacan, em “A significação do Falo”,(1958), que a noção dele adquire um status central na teoria psicanalítica: “O falo é um significante, um significante cuja função, na economia intrasubjetiva da análise, levanta, quem sabe, o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios. Pois ele é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante”6.

Em 1972-1973 no Seminário Mais, Ainda, Lacan elabora o conceito falo em duas vertentes: função fálica e gozo fálico. Segundo ele a primeira, é a que inaugura a falta. Para a criança, ter o amor e a atenção da mãe é muito “precioso”. Ela descobre que não é tudo para a mãe, que não pode completá-la, e que sua mãe deseja algo além dela. O falo aponta sempre para esse lugar vazio. Ela, portanto, é o significante da falta, é aquilo que vetoriza o desejo da mãe e da criança, que regula o ser ou não ser, o ter ou não ter. O gozo fálico é aquilo que sai do corpo e vai pela via do significante, delimitando o prazer do homem e marcando o desencontro entre os sexos.

Percebemos, portanto, que o conceito de falo implica um critério de valor. O sujeito dá um valor fálico a determinados objetos.

Hugo Bleichmar, em Introdução ao Estudos das Perversões, cita uma metáfora, tomada de Lacan, para ilustrar a relação de poder entre as pessoas: é a brincadeira de passar o anel. “O valor que toma uma das pessoas no jogo depende do lugar onde o anelzinho esteja escondido. Este é o que determina que pessoa adquire um valor especial. As pessoas em si, pelo que são, não se diferenciam umas das outras em relação ao jogo. Só pelo fato de que cai em poder de uma delas, o anelzinho adquire um status particular”7.

Tanto no filme quanto na adolescência os personagens lutam para defender o anel. “O um anel – para a todos dominar”8. Anel como representante do falo.

Em sua última jornada, Frodo chega na montanha da perdição. Reivindica o anel para si e o coloca no dedo. Gollum rouba-lhe o anel: “precioso, precioso, precioso! gritava Gollum. Meu precioso! O meu precioso! E assim, no momento em que erguia os olhos para se regozijar com sua presa, deu um passo grande demais, tropeçou, vacilou por um momento na beirada, e então com um grito agudo caiu. Das profundezas chegou seu último gemido, precioso, e então ele se foi”9.

“Bem, este é o fim, (...). E ali estava Frodo, pálido e exausto, e apesar disso era Frodo novamente; agora em seus olhos só havia paz; nem luta de vontade, nem loucura, nem qualquer temor. Seu fardo fora levado"10.

Na adolescência o sujeito oscila entre Ser ou não Ser e Ter ou não Ter o falo. Ser o filhinho da mamãe, ter um futuro promissor, uma profissão, se dar bem na vida ou só ter tamanho.

“ Ora minha mãe me trata como criança, ora como adulto. Não sou criança nem adulto. Acho que não sou nada” (Relato de um adolescente). Essa oscilação própria do sujeito adolescente o deixa confuso na elaboração de seu desejo.

Ao analista cabe manejar a transferência, causando a continuidade do discurso, propiciando ao sujeito suportar melhor suas frustrações, diminuir suas identificações, tornando o objeto menos enganador.

Em análise percebem que não têm o anel, nem o cajado poderoso de Gandalf. Não são bonitos como Legolas nem horríveis como Gollum, são sujeitos de desejo, portanto, seres de falta.

O filme acaba, a adolescência fica na lembrança, como uma jornada repleta de fantasmas e monstros, e o sujeito percebe que “mancar não é pecado”.

 

Bibliografia

BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao estudo das perversões: a teoria do Édipo em Freud e Lacan. Trad. Emilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.        [ Links ]

FINK, Bruce. O sujeito lacaniano. Entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago,1990.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação da teoria da sexualidade. ESB, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago,1990.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Lacan. A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 937 p.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 201p.        [ Links ]

NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.        [ Links ]

NASIO, Juan-David. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.        [ Links ]

TOLKIEN, J.R.R. O senhor dos anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2002.        [ Links ]

TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 1998.        [ Links ]

SILVA, Gladston dos Santos. O que fica no ficar do Adolescente. Vorstellung, ano 3, n. 3, maio 1999/2000. Publ. do Grupo de Estudos Psicanalíticos - Grep.         [ Links ]

 

 

1 Vintolescência foi o termo usado por Tolkien, autor de “O Senhor dos Anéis”, para nomear “os anos irresponsáveis entre a infância e a maioridade”.
2 O ensaio que originou este trabalho foi apresentado na jornada do GREP em out. 2002.
3 Termo usado por um adolescente para expressar o “ficar à toa, o não fazer nada, a inutilidade”.
4 SILVA, Gladston dos Santos. O que fica no ficar do Adolescente. Rev. Vorstellung, ano 3, n. 3, maio 1999/2000. p. 55. Publ. do Grupo de Estudos Psicanalíticos – Grep.
5 FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. ESB. V XIX, 1990, p.180.
6 LACAN, Jacques. A significação do falo. In: Escritos, 1998, p. 697.
7 BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao estudo das perversões: a teoria do Édipo em Freud e Lacan, 1984, P. 19.
8 Filme O Senhor dos Anéis – A sociedade do Anel. Baseado no livro de J.R.R Tolkien, dirigido por Peter Jackson, 2002.
9 TOLKEEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis, 2002, p.1003.
10 Idem.

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