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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. n.30 Belo Horizonte ago. 2007
Estados conturbados do corpo: dor, gozo e glória
États bouleversés du corps: douleur, jouissance et gloire
Léa MeilmanI,*; Flávio José de Lima NevesI,**; Wagner Siqueira BernardesII,***
ICirculo Psicanalítico de Minas Gerais
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, doutor em psicologia pela UFRJ
RESUMO
Neste texto os autores trabalham vicissitudes do corpo na neurose, na psicose e na perversão. Na neurose temos o corpo doloroso, aprisionado e limitado pela ação do recalque e marcado por um cortejo de formações sintomáticas. Na perversão encontramos o corpo gozoso, mais livre dos efeitos imobilizantes do recalque e, por isto mesmo, capaz de fazer agir mais livremente seu desejo. Na psicose, deparamo-nos com o corpo glorioso, isto porque é um corpo que manifesta e testemunha a influência transformadora que cria uma nova realidade.
Palavras-chave: Corpo, Neurose, Perversão, Psicose.
RÉSUMÉ
Dans ce texte les auteurs travaillent les avatars du corps dans la névrose, la perversion et la psychose. Dans la névrose on voit le corps douloureux, attrapé et limité par l’action du refoulement et marqué d’un cortège de formations symptomatiques. Dans la perversion nous trouvons le corps jouissant, plus libre des effets immobilisants du refoulement et, par conséquence, capable de faire agir plus librement son désir. Dans la psychose on envisage le corps glorieux, parce qu’il s’agit ici d’un corps qui manifeste et témoigne de l’influence transformatrice qui crée une nouvelle réalité.
Mots-clés: Corps, Névrose, Perversion, Psychose
Introdução
Ao longo da obra de Freud, o corpo aparece com enorme freqüência, desde o Projeto (1895) até os escritos mais tardios. Em “O ego e o id” (1923) Freud faz considerações inovadoras sobre uma segunda tópica do aparelho psíquico. Já no final do capítulo II, em que descreve as relações entre os sistemas consciente, pré-consciente e inconsciente, e depois de definir as diferenças e algumas possíveis relações entre o ego e o id, Freud termina afirmando que, ao que anteriormente fora dito sobre o ego consciente, pode ser acrescentado que, o ego é, acima de tudo, um ego-corpo – e não um “ego corporal”, como querem algumas traduções.
I. Possibilidades de apresentação do corpo na clínica psicanalítica
A equação ego-corpo nos permite abordar o tema desta Jornada a partir, justamente, desta realidade complexa que dá suporte ao processo psicanalítico, e nele, faz-se presente o tempo todo: o corpo, em suas diversas formas de apresentação. O corpo pode ser visto, ouvido e pensado a partir de, no mínimo, dois eixos, que são superponíveis e complementares.
Inicialmente, considerando-se o primeiro eixo, pode-se falar de um corpo somático, visto como uma realidade anatômica e funcional (ou fisiológica, se preferirem); depois, é possível considerar o corpo pulsional, sede dos sentidos e das percepções provenientes tanto do meio externo como do interno e, sobretudo, fonte e lugar de irrupção, circulação e descarga dos instintos e das pulsões; e por último, é possível falar do corpo fantasmático, o corpo tocado por imagens tão fortes e marcantes que funcionam como elementos polarizantes do funcionamento psíquico. O corpo fantasmático não é apenas marcado, mas também representado como imagem, produto sempre mutável e mutante de nossos investimentos pulsionais. Isto faz dele um corpo erógeno, parte integrante essencial de nossos cenários imaginários, isto é, da nossa vida fantasmática, em que representamos e vivenciamos, internamente, nossos desejos, sempre numa relação com outros objetos igualmente investidos que são, também, corpos.
Uma outra maneira de falar sobre o corpo é estabelecendo uma relação entre ele e as principais patologias psíquicas: neurose, perversão e psicose.
Considerando-se um segundo eixo, na neurose temos o corpo doloroso, resultante da ação eficaz dos mecanismos de recalque e de repressão, corpo aprisionado e limitado pela ação do recalque e marcado pela castração, com todo o cortejo de formações sintomáticas que se originam da ação destes fenômenos, seja numa sintomatologia predominantemente corporal (histeria, neurose de angústia e fobias), seja numa sintomatologia predominantemente psíquica (neurose obsessiva). Na neurose, é bom lembrar, temos, como conseqüência do recalque, a elaboração secundária ao conflito, com a conseqüente capacidade de fantasmatização e de simbolização que possibilitam a descarga pulsional – mesmo que parcial e repetida – através de um ou de vários sintomas. Na mesma linha da dor, apresenta-se o corpo afetado por manifestações psicossomáticas.
É importante lembrar que Freud em nota de rodapé, acrescentado ao caso, Dora nos fala que o motivo para ficar doente é invariavelmente a obtenção de alguma vantagem. Mais adiante diz: “cair doente envolve uma economia de esforço psíquico; surge, como sendo, economicamente, a solução mais conveniente quando há um conflito mental (falamos de uma ”fuga para a doença”), ainda que, na maioria dos casos, a ineficácia de tal fuga, possa tornar-se manifesta numa fase posterior”1
Devemos restabelecer a verdade no que se refere à atenção de Freud às questões do corpo, muitas vezes desconsideradas pelos autores contemporâneos. Basta mencionar a carta 76 a Fliess (Novembro de 1897), a Conferência XXIV das “Conferências Introdutórias” (1916-17) e o capítulo III de “Inibições, sintomas e angústia” (1926).
Na linguagem popular são freqüentes as conexões das manifestações da doença com a raiva, a decepção, a tristeza, etc. Expressões tais como: “fazer um câncer”, “reagir com um derrame”, “fazer um enfarte”, “ter uma úlcera em conseqüência de”, situam a doença como uma resposta frente a conflitos tidos como insolúveis e podem ser interpretados por nós, psicanalistas, como o lucro auferido com a doença, no que diz respeito a uma economia de gozo.
Se consultarmos as anamneses médicas que investigam e, tão bem, exemplificam os ganhos advindos da doença, constatamos que o corpo sofre quando o psiquismo mostra-se incapaz de elaborar as formações do inconsciente.
Há um nítido corte que separa a psicanálise da medicina com relação à questão do corpo como campo de apresentação de sintomas: o psicanalista não pretende abolir os sintomas como o médico, que visa sempre uma cura rápida e um pronto alívio. O psicanalista, em seu trabalho, conta com a doença e não está contra ela, uma vez que a prática analítica não abole aquilo que a torna possível, isto é, angustia da castração.
Na perversão encontramos o corpo gozoso, mais livre dos efeitos imobilizantes do recalque e, por isto mesmo, mais capaz de expressar e atuar, fazer agir mais livremente seu desejo e suas necessidades. É o corpo que funciona continuamente aguilhoado por um auge de tensão sexual que procura incessantemente a descarga pulsional e, como seu fim, um gozo permanente e, por isto mesmo, continuamente buscado e repetido. Entenda-se aqui, como “gozo”, um máximo de prazer alcançado por meio de uma descarga de tensão sexual tão intensa que busca a experiência orgástica idealizada e repetida, fantasiada como algo inesgotável. Nestas condições, muitas vezes, prazer e desprazer já não mais se distinguem.
É o corpo que, escapando aos efeitos tirânicos do recalque, acontece como um corpo de prazer, corpo despudorado que se oferece e se lança na busca de outros corpos – objetos apenas contingentes – sempre no contexto do espetáculo (voyeurismo-exibicionismo, sado-masoquismo, travestismo e várias outras possibilidades). Por espetáculo, entenda-se toda encenação que acontece tanto no mundo externo como no mundo interno, onde o que importa, é a dimensão de cenário ou montagem em que o sujeito é o protagonista, sempre interagindo com outros objetos-corpos. O que, a nosso ver, determina a dimensão de espetáculo, é a fantasia da presença de um espectador anônimo para cujo olhar a encenação é oferecida (McDougall, 1978). Visto isto, fica clara a possibilidade de casos em que a perversão ocorre de modo silencioso e solitário, sem uma platéia externa, mas sempre com a conotação de uma exposição para um terceiro anônimo, porém presente na cena sexual.
Na psicose, encontramos o corpo glorioso. Glorioso porque é manifestante e testemunha de uma influência transformadora que cria uma nova realidade. Muitas vezes, influência cósmica ou divina. É o corpo na condição trans: corpo transformado, transfigurado, transmutado, transbordante e transexual. É o corpo que se refaz além das bordas e dos limites da realidade consensual e compartilhável, inclusive e sobretudo em sua realidade anatômica. É o corpo miraculoso e miraculado, vivido e apresentado como continente de mudanças e alterações que correspondem a um novo ego-corpo, algo da ordem de uma neo-realidade. No âmbito da psicanálise, o exemplo mais radical desta possibilidade é o corpo de Schreber: transmutado por influência e ação miraculosa de Deus, para chegar à bem-aventurança final e eterna, teria de ser transformado em mulher e, por meio de tudo isto, ser glorificado e elevado à suprema condição de, fecundado por Deus, redimir o mundo, devolver-lhe a bem-aventurança perdida e gerar uma nova raça humana (Freud, 1911).
Neste trabalho, queremos também mencionar o aparecimento do corpo no espaço psicanalítico além de certos quadros específicos como a neurose, a psicose e a perversão bem caracterizadas. Pensamos em algumas condições situadas no limite da realidade, do prazer, da dor e da vida. Limite aqui considerado como uma zona de transição, algo como o lusco-fusco, uma twilight zone. Estamos querendo falar de formas de apresentação nas quais o corpo aparece conturbado, subvertido ou reinventado: as somatizações, onde ele se expressa na dor e na descarga muda das comunicações impossíveis; a drogadição, em que o corpo é transformado em lugar de paradoxo entre prazer e dor, agonia e êxtase, vida e morte; o uso de piercings, tatuagens e outras marcas, sinais e símbolos de pertencimento, exclusão, sacralização, anátema ou execração, que transformam o corpo em emblema, totem ou monumento. E por que não mencionar o corpo transexuado, transformado e reinventado na psicose?
Ainda e fora do campo da psicose – pelo menos, dos casos oficialmente registrados, como tal, em prontuários e receituários médicos - mencionaremos também as intervenções sobre o corpo ditas científicas, efetivadas pela ação e com o respaldo da ciência oficial, da medicina estética e da cirurgia plástica, que vão desde os peelings, das lipoaspirações, das aplicações de botox e dos implantes de silicone, chegando às cirurgias de mudança de sexo, hoje disponíveis até pelo SUS. Nestes casos, não seria a ciência, através do discurso competente que lhe é próprio, a patrocinadora destas formas de subversão infligidas ao corpo, aqui respaldadas pela respeitabilidade científica? Isto nos leva a pensar no problema da atuação da ciência a serviço do mercado capitalista: procedimentos muitas vezes caríssimos são oferecidos para consumo de pessoas que podem dispor de fortunas para operarem mudanças no corpo, freqüentemente, dentro da filosofia de que só é bom o que é caro. E por uma cruel ironia do destino, quantas vezes vemos casos de pessoas que, caindo numa repetição compulsiva de melhorar o que foi consertado – aquela coisa do “é só mais um retoque” - acabam desfiguradas? Só que, por meio da identificação projetiva, elas sempre são capazes de ver e criticar o estranho ou o monstruoso nos outros, negando aquilo que não conseguem perceber e aceitar, de deformação, presente em si mesmas.
II. Afinal, de que limites estamos falando?
Aqui, caberia uma reflexão sobre o que é designado de maneira genérica por “casos ou estados limites”, ou borderline. Pensamos que seria necessário buscar acepções diferentes para este conceito. Não mais apenas a colocação do funcionamento mental num espaço nebuloso e movediço entre a neurose e a psicose, com desorganização do pensamento, rebaixamento do controle dos impulsos e da capacidade de resistência à frustração, sexualidade confusa e tendência à atuação, acepção esta que se constrói essencialmente sobre critérios psicopatológicos e clínicos. Propomos pensar a questão dos limites em outra direção, dentro da dinâmica da situação psicanalítica, mais precisamente na relação analista-analisando. Um de nós, em trabalho anterior, já apontou para a correlação entre os limites da analisabilidade nos pacientes e os limites na função de analisar no analista como condição definidora de um estado-limite dentro do processo psicanalítico (Neves, 1980).
Seria o caso de se perguntar: o que é, então, que se situa entre a neurose e a psicose? Podemos encontrar a resposta em Freud, uma resposta que nos parece bastante clara e abrangente: é a perversão. Entretanto, é preciso lembrar que este “entre” marca, na verdade, um ponto de impasse, no qual as noções deverão ser repensadas a partir da perversão. Freud trabalhou esta questão em “Neurose e Psicose” (1924) e desenvolveu suas idéias sobre ela em “A divisão do ego no processo de defesa” (1938).
Assumindo o modelo freudiano, é importante que fique claro que, em nossa maneira de pensar e de acordo com nossa experiência clínica, levando em conta as diversas patologias que se apresentam à analise, em nenhum momento, consideramos a existência de uma gradação de gravidade entre os casos clínicos devida ao diagnóstico. Não pensamos que, por causa de sua própria estruturação, a neurose seja menos grave e, conseqüente e necessariamente, mais analisável do que a perversão ou a psicose (os critérios das chamadas “boas indicações” para análise!). Nem entendemos, por outro lado, que a psicose seja menos “analisável” que a neurose ou a perversão.
Pensamos que, o que determina a analisabilidade de um paciente é sua configuração individual, resultante da conjunção dos diversos fatores que determinam sua patologia psíquica própria: produções do inconsciente, atividade fantasmática, mecanismos de defesa usados, relações de objeto e a experiência do seu próprio corpo. Dizendo de outra maneira: podemos encontrar neuroses muito graves e de difícil manejo clínico, ao passo que certos estados psicóticos e perversões podem entrar num trabalho analítico com resultados muito satisfatórios e até mesmo surpreendentes para as duas partes envolvidas na análise.
Referências
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In:FREUD, S. Um caso de histeria. Três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 1-131. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7). [ Links ]
FREUD, S. O ego e o id. In: FREUD, S. O ego e o id. Uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-83. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19). [ Links ]FREUD, S. Neurose e psicose. In: FREUD, S. O ego e o id. Uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 187-93. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19). [ Links ]
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. In: FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia . Artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 15-108. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12). [ Links ]
FREUD, S. A divisão do ego no processo de defesa. In: FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 305-312. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23). [ Links ]
MCDOUGALL, J. Em defesa de uma certa normalidade. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. [ Links ]
NEVES, F. J. L. Indagações sobre a prática da psicanálise hoje: metapsicologia da relação analista-analisando. Trabalho apresentado ao CPMG em 1981. (Inédito). [ Links ]
Endereço para correspondência:
Léa Meilman
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E-mail:meilman@uol.com.br
Flavio José de Lima Neves
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30150-240 – BELO HORIZONTE – MG
E-mail:fjlneves@uol.com.br
Recebido em 18/05/2007
* Psicanalista , membro do CPMG
**Psicanalista, membro do CPMG
*** Psicanalista, doutor em psicologia pela UFRJ, professor da PUC Minas.
1FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria, p. 40.