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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Psicanálise e arte: o programa de humanização no hospital São Lucas em Sergipe

 

Psychoanalysis and art: the humanization programme in São Lucas hospital in Sergipe

 

 

Ricardo Azevedo Barreto1

Universidade Tiradentes

Círculo Psicanalítico de Sergipe

Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No escopo do enlace da Psicanálise com a Arte, este trabalho delineia as diretrizes do programa de humanização desenvolvido no hospital São Lucas, em Sergipe. Refere-se ao projeto de extensão por intermédio da Universidade Tiradentes, "Humanização e promoção de saúde no hospital geral: uma perspectiva psicológica", em desenvolvimento no hospital São Lucas, e ao projeto da supramencionada instituição hospitalar, "Psicologia hospitalar: uma proposta de humanização diária", ambos idealizados e coordenados por este autor, mas realizados no dia a dia com as contribuições de muitos profissionais e estagiários. Em digressões, o desafio paradigmático de um hospital humanizado põe-nos em xeque: o ser humano, muito mais do que apenas células e bioquímica, pode ser reconhecido em suas produções artísticas e de linguagem.

Palavras-chave: Psicanálise, Arte, Humanização, Hospital.


ABSTRACT

This paper describes the references of the humanization programme that has been developed in São Lucas Hospital in Sergipe by the design of Psychoanalysis and the Art’s marriage. It refers to the Tiradentes University´s project, "Humanization and health promotion at the general hospital: a psychological perspective", developed in São Lucas Hospital, and the over mentioned hospital’s project, "Psychology in the hospital: a daily humanization proposal". Both of them are from my authorship and coordination and they were developed day by day with the contributions of many professionals and students. In digression, the paradigmatic challenge from the humanized hospital faces us: the human being, much more than only cells and biochemistry, can be recognized in their artistic and language productions.

Keywords: Psychoanalysis, Art, Humanization, Hospital.


 

 

[...] o essencial é invisível aos olhos.
Antoine de Saint-Exupéry

 

Hospital: psicanálise, humanização e arte

Anteriormente ao século XVIII, o hospital era basicamente uma instituição de assistência aos pobres, assim como de separação e exclusão (FOUCAULT, 1979).

[...] O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente [...] (FOUCAULT, 1979, p.101).

Como percebemos, o personagem, alvo dos cuidados do hospital, varia historicamente, assim como as práticas que o sustentam: o pobre e a assistência material-espiritual, o doente e a assistência terapêutico-curativa...

Foucault (1979) explica que o hospital não era uma instituição médica e a Medicina não era uma prática hospitalar. Trata do surgimento do hospital na tecnologia médica. Diz: "O hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, que data do final do século XVIII" (p.99).

Podemos, então, constatar que nem sempre hospital e Medicina confluíram, o que se torna importante para a legitimação do caráter histórico e relativo da ordem médica no hospital a fim de que passos adiante sejam alcançados.

Neste delineamento, pode ser uma questão nossa a ruptura com o modelo do hospital medicalizado. E é! Preferimos fazer referência a um hospital em equipe, balizado pelo paradigma biopsicossocial. Contemplamos ainda críticas tecidas ao viés hospitalocêntrico da formação médica brasileira que não favorece práticas de saúde bem distribuídas em diferentes locais e nos distintos níveis de atenção: primário, secundário, terciário etc.

Se considerarmos, por outro lado, que a questão não é o local de atuação, mas o modo de concebê-la e produzi-la, podemos pensar em atenção primária e promoção de saúde com um sentido amplo, mesmo em um hospital, contemplando seus agentes institucionais e usuários.

A nosso ver, Guirado (2004), com base em Guilhon Albuquerque, fornece sustentação teórica ao nosso pensamento ao falar de uma instituição não como um estabelecimento, mas um conjunto de relações sociais que se repetem e se legitimam na repetição.

Podemos, não sem paradoxos, falar de implosão do hospitalocentrismo, de desconstrução do reducionismo do paradigma usual de hospitalização, dentro do hospital. Ruptura essa de campo de atuação que desenhamos na ambivalência de uma relação dentro da estrutura física do hospital como estabelecimento, mas fora do modelo hegemônico de concepção e produção das práticas hospitalares e da ordem médica. Não seria esta uma posição possível a um psicanalista ou estrangeiro em "terras médicas"?

Então, o que a Psicanálise tem a ver, ou reaver, com o hospital?

São inúmeras as situações de mal-estar no contexto hospitalar. A ordem médica contorna apenas algumas delas ao passo que questões referentes à subjetividade constituem um terreno fértil ao trabalho psicológico. Precisamos escutar as demandas e nos desalienar delas para análise em nosso labor psicanalítico.

Freud falou muitas vezes que a Psicanálise é uma teoria da personalidade, mas também um método de psicoterapia e um instrumento de investigação (ETCHEGOYEN, 1987). Sabemos quanto contribui para o atendimento psicológico clínico, a compreensão da Psicopatologia e a reflexão da cultura, entre outros inúmeros exemplos. A depender do recorte teórico-metodológico e de aproximações com outras fontes do saber e/ou com modelos estranhos ao cenário tradicional, podemos afirmar que a Psicanálise é uma reinvenção contínua de seu campo no cotidiano. E por que não?

No trabalho de um psicanalista em um hospital, reconhecer as especificidades de sua situação torna-se imprescindível. Se a Medicina frequentemente se orienta pela enfermidade física e pelo corpo anátomo-fisiológico das aulas com o cadáver, a Psicanálise legitima, no protagonismo da cena, o sujeito do Inconsciente e assume uma perspectiva de corpo que não o dissocia dos fantasmas e símbolos na tessitura psíquica. A depender do autor, podemos falar do corpo real, do gozo com o sintoma, dos ganhos com a doença e de toda uma "sorte" de investimentos libidinais e agressivos, transferenciais ou não, em relação ao processo saúde-doença, à hospitalização, à instituição hospitalar, a seus agentes institucionais, ao convívio entre pacientes e deles com os acompanhantes e a equipe de saúde.

A Medicina e a Psicanálise trabalham com visões diferentes de homem, de corpo humano e com corpus teórico-metodológico peculiar. No delineamento de Bezerra (2003), a Medicina relaciona-se com o sintoma do corpo. Por outro lado, diz a autora: "O sintoma no corpo é a marca do significante, é uma mensagem ignorada pelo próprio autor dela, a ser decifrada na fala deste autor-sujeito" (p.19).

Santos et al. (2004, p. 91) esclarecem:

Dois corpos diferentes. O corpo do sofrimento erógeno da psicanálise é o corpo que o médico não vê, simplesmente porque a verdade do sintoma de que nos ocupamos, como uma carta em espera, está por fora dos aparatos da ótica cada vez mais sofisticada que a ciência põe a serviço da medicina. É necessário instalar outra perspectiva para poder vislumbrar o que desse corpo se deixa ler - ou melhor, ouvir.

Na nossa compreensão, está lançado o terreno do trabalho psicanalítico e de humanização em um hospital. A cena da comunicação está no cerne do ofício. A escuta é nosso lugar e o que dela podemos ouvir e analisar dos efeitos do sujeito do Inconsciente, seja no contato com um ser humano em adoecimento e hospitalizado, com o corpo e a alma feridos, seja no acompanhamento do discurso de um familiar ou acompanhante ou nas interlocuções com a equipe.

Em "Reação à doença e à hospitalização", Botega (2002, p. 43-44) comenta:

[...] vivência pungente, trazida pela doença, é a quebra de uma linha de continuidade da vida, das funções desempenhadas no dia-a-dia, de certa previsibilidade que guardamos sobre o dia de amanhã [...]

É o que percebemos muitas vezes em um paciente hospitalizado: como se o espelho no qual se via fosse quebrado. Não há mais a possibilidade de enxergar com as referências de outrora, o que traz vivências e angústias profundas a serem trabalhadas, inclusive as de dor, aniquilamento e morte. Levar o paciente automaticamente a uma suposta segurança numa proposta de apoio e ajustamento é impedir que fale, cresça e se recrie como artista e obra de arte, até onde e a quem o trabalho psicanalítico possa alcançar pelo simbólico. Por outro lado, o ser humano pode ser pensado como sujeito de linguagem por meio de um trabalho que tem, no setting mutante do hospital, algumas condições, entre as quais a associação com liberdade do paciente, bem como por parte do psicanalista a atenção flutuante, o manejo da transferência e a intervenção nos dinamismos psíquicos inconscientes do paciente para a reconstrução subjetiva no discurso.

Com base em Moretto (2001), o trabalho psicanalítico em um hospital não visa à adaptação à ordem médica. Busca escutar o sujeito do Inconsciente. Nessa perspectiva, é que é construída a intervenção.

O que é função central do analista é oferecer uma escuta diferenciada [...] diferenciada daquele que é o discurso que reina no contexto hospitalar, o discurso médico. Na medida em que o analista promove a fala do sujeito e o escuta a partir de uma posição diferente (que é a posição analítica), abre a possibilidade de o próprio sujeito escutar-se, propiciando, desta forma, a subjetivação (MORETTO, 2001, p.207).

A nosso ver, a Psicanálise pode contribuir assim para a humanização da assistência em saúde e a qualidade de vida nos hospitais sem que negue o mal-estar do existir. Não nos parece incongruente que consideremos tal possibilidade em consonância com outras das Artes, da alegria e do humor, entendidas como ricas do ponto de vista terapêutico dos mecanismos de reparação, sublimação e da criatividade.

Na nossa acepção particular, humanizar a assistência em saúde é devolver ao sujeito o que lhe foi extirpado pelo processo de coisificação do ser humano, que tem sido muito intenso, sobretudo no contexto neoliberal. Aqui estamos... em um período de transição, um espaço potencial, para nossas recriações.

Winnicott diz que o espaço potencial permanece ao longo de nossas vidas dando margem a fenômenos relacionados à transicionalidade, e é esse o caso das atividades culturais (arte, religião e ciência) [....] (CALLIA, 2008, p.146).

 

O programa de humanização no Hospital São Lucas em Sergipe

Em livro com pesquisa e texto de Luiz Antônio Barreto (2009), é contada a história de quarenta anos do São Lucas em Sergipe. Em outubro de 1969, germinou a Clínica São Lucas, fundada pelo médico José Augusto Barreto e pelo cofundador Dietrich Wilhelm Todt, também profissional da Medicina. Com o avanço histórico, em setembro de 1978, foi inaugurado o Hospital São Lucas. Tudo começou pelo coração, sinaliza o escrito. A Clínica e Hospital São Lucas conta atualmente com muitos médicos e funcionários, tendo, há quase uma década, como superintendente do hospital Paulo Azevedo Barreto, engenheiro com pós-graduação em Administração. A instituição, por outro lado, possui uma galeria de benfeitores.

Mencionando um pouco da nossa experiência pessoal na instituição, coordenamos o programa de humanização no Hospital São Lucas que começou a ser implantado em 2003, mas já estava no hospital desde o final de 1999, desenvolvendo algumas atividades como psicólogo com um referencial teórico psicanalítico.

O referido programa encontra solo no humanismo presente na alma da instituição e em seus fundadores. No movimento de humanização da instituição hospitalar, o poeta, o músico, o ator e o psicanalista podem conviver com profissionais da área médica. Se o hospital já foi morredouro, se a instituição hospitalar se medicalizou; a Psicanálise (engajada com questões sociais, e não pretensamente neutra), a Arte e a Humanização da Assistência em Saúde podem produzir outros posicionamentos.

 

"Humanização e promoção de saúde no hospital geral: uma perspectiva psicológica"

Como professor da Universidade Tiradentes (UNIT), desenvolvemos este projeto de extensão no hospital São Lucas há alguns anos. Temos recebido, ao longo do tempo, inestimável apoio do Magnífico Reitor Jouberto Uchôa de Mendonça e da Pró-Reitoria Adjunta de Assuntos Comunitários e Extensão (PAACE), sobretudo na pessoa do professor Gilton Kennedy.

As atividades são de quatro horas semanais, uma vez por semana, seguindo o calendário acadêmico, com nossa presença e a de estagiários de Psicologia da UNIT, geralmente alunos em conclusão do curso. O objetivo do trabalho é a humanização das práticas e a promoção de saúde nas relações do trinômio pacientes-acompanhantes-equipe no hospital geral. De modo específico, configuram-se como propósitos: contribuição para a flexibilização do papel profissional na área de saúde no hospital, minimização do sofrimento implicado na hospitalização dos pacientes e acompanhantes e obtenção de efeitos na qualidade das relações e no bem-estar das pessoas da tríade supracitada.

Do ponto de vista metodológico, trabalhamos com: a) os pacientes e acompanhantes por meio de grupos de discussão sobre a hospitalização em salas das alas do hospital com a frequente articulação de recursos expressivos artísticos (destaquemos, aliás, nosso pioneirismo na intersecção da Arte com atividades psicanalíticas e terapêuticas no referido hospital); b) a equipe por meio de um grupo de trabalho com reuniões semanais de uma hora de duração numa perspectiva integrativa multiprofissional. Realizamos ainda: c) pesquisa semestral por meio de questionário investigativo dos efeitos de nosso trabalho.

Ressaltemos que, logo no início do programa de humanização, anteriormente ao desenvolvimento de nossas intervenções, passamos um tempo entrevistando pacientes, acompanhantes e profissionais para conhecimento e caracterização da realidade a ser trabalhada.

Outro aspecto a ser enfatizado é que, embora não adotemos uma postura psicanalítica rígida, a Psicanálise é o referencial teórico que seguimos para nosso trabalho e sua leitura. Por isso, estudos frequentes da literatura especializada têm ocorrido durante todo nosso trajeto.

Outra dimensão a ser marcada é que, nos grupos com pacientes e acompanhantes, que são de um único encontro e duração de aproximadamente uma hora e quinze minutos, não participam os portadores de doença infectocontagiosa, nem os pacientes em surto psicótico ou com contra-indicação médica para saírem dos apartamentos e enfermarias e irem à sala onde acontece o trabalho. Tais condições de triagem foram eleitas em função da especificidade da intervenção grupal que realizamos em um curto espaço de tempo.

Além disso, o profissional psi e os estagiários de Psicologia assumem funções diferenciadas e rotativas no grupo (às vezes, há sobreposição): a) de acolher os pacientes e acompanhantes que vão chegando à sala dos encontros, b) de observar a dinâmica grupal (papel de observadores), c) de compreender e intervir analiticamente durante o acontecimento grupal, d) de registrar o encontro e dados de identificação dos participantes e e) de acompanhar as exceções clínicas e tomar as providências cabíveis, por exemplo, quando o soro é desinstalado, e é preciso chamar uma enfermeira ou quando ocorre a necessidade de acompanhar um paciente ao quarto, pois se levantou bruscamente em direção ao apartamento antes do término do encontro, o que mostra a importância de uma atenção individualizada. Aliás, destaquemos que o grupo de discussão sobre a hospitalização que desenvolvemos tem sido um lugar privilegiado para a identificação e o encaminhamento de pacientes para o atendimento psicológico individual.

 

"Psicologia hospitalar: uma proposta de humanização diária"

Também com o objetivo de humanização da assistência em saúde, com este projeto por intermédio da Clínica e Hospital São Lucas, desenvolvemos diversas atividades na referida instituição hospitalar durante alguns anos; em alguns períodos, de forma mais intensa do que em outros. Dentre as atividades fomentadas por nós, destacamos:

a) Diálogos com profissionais: são grupos temáticos com a presença de médicos, psicólogos, psicanalistas, fisioterapeutas, nutricionistas, enfermeiros, entre outros profissionais convidados. Este profissional propicia o debate de pacientes e acompanhantes em torno de um assunto, por exemplo, a saúde do brasileiro, os fatores impeditivos da mudança do estilo de vida. Há também a presença de um profissional do campo psi ou estagiário de Psicologia na plateia que, quando necessário, facilita a discussão do tema por compreender as dinâmicas psíquicas no grupo e ser orientado psicanaliticamente. A ideia central é que a adoção de recursos reflexivos e não estritamente pedagógicos pelos facilitadores possibilita "pensar sobre"/analisar e não dar uma receita.

b) Cinema São Lucas: o trabalho com musicais nos parece bem interessante, pois a libido dos pacientes e acompanhantes de nosso público-alvo não tem se investido em filmes com roteiro denso ou que exige grande concentração. Propomos, então, que pacientes e acompanhantes se reúnam para assistirem a DVDs de música (geralmente, utilizamos as músicas popular e sertaneja, pois percebemos que produzem uma boa aceitação em nosso meio). Não passamos geralmente todo o musical, o que varia a depender da adesão do grupo à proposta. Após assistirem ao musical, são trabalhadas questões referentes à hospitalização e ao estilo de vida ou outras emergentes por meio da discussão livre de ideias. É uma fase de compartilharem vivências que geralmente se inicia com disparadores: "O que tocou mais em vocês?" "Alguma coisa chamou a atenção de vocês no musical?" Às vezes, a letra de uma música é o dispositivo mais importante para a abertura do discurso; em outros momentos, uma impressão sensorial e/ou imagética. De qualquer forma, este é um espaço a mais para testemunharmos as manifestações do sujeito do Inconsciente. Houve uma época em que fizemos um trabalho com filmes que não eram musicais com profissionais do hospital e seus familiares, o que surtiu efeitos interessantes analíticos e de socialização.

c) Grupos 10, 15 ou 20 minutos: precisamos sistematizar mais esta experiência, que nos parece bem proveitosa. É um trabalho com profissionais nos diversos postos de enfermagem do hospital, de curto tempo de duração, sobre o atendimento do paciente, o contato com o acompanhante e a concepção sobre o programa de humanização. Mecanismos inconscientes, psicodinamismos peculiares e aspectos transferenciais podem ser percebidos e trabalhados pela escuta analítica. Há uma libertação da palavra dos participantes, e o tempo cronológico é o que menos importa.

d) Atividades no espaço lúdico: são ações de análise do brincar de crianças hospitalizadas e seus acompanhantes. O lúdico como recurso expressivo e projetivo nos possibilita o trabalho com dimensões subjetivas do adoecimento, da hospitalização e do estilo de vida. É também um recurso que promove a qualidade da existência cada vez mais inserido nos cenários hospitalares, muitas vezes com as contribuições e lutas de profissionais psi.

e) Atividades do grupo de cantoria e do teatro musical: compomos um grupo de cantoria com a participação de funcionários do hospital e um cantor que desenvolvem atividades para a tríade pacientes-acompanhantes-equipe. Temos também o teatro musical com a participação de funcionários do hospital, que se caracterizam como clowns, e um cantor, que interagem com os públicos externo e interno da instituição por meio das Artes. Essas atividades a favor da promoção de saúde são vistas por nós como aliadas do trabalho psicanalítico e não como antagônicas a este. Os mecanismos de reparação, sublimação e a recriação de si e do ambiente hospitalar são produzidos por um contato profundo com o outro que promove, numa terminologia winnicottiana, o desenvolvimento do verdadeiro self. Mais do que interpretações, o que produz efeitos terapêuticos é o setting em que se transforma o hospital.

f) Desenvolvemos as galerias dos pacientes e acompanhantes com quadros pintados por eles em alguns encontros grupais. Os locais são chamados "Cantinhos da troca" e humanizam, a nosso ver, o ambiente hospitalar. Também criamos um carrinho estilizado do grupo de humanização, no qual são dispostos telas e recursos artísticos diversos que se deslocam da sala de Psicologia do hospital para as alas hospitalares para o uso de pacientes e acompanhantes.

g) Têm sido realizadas ainda jornadas internas de humanização da assistência em saúde e/ou eventos comemorativos com o intuito de integração e divulgação das ações do programa.

Temos procurado, cada vez mais, ampliar as formas de Arte com as quais temos trabalhado como recursos de expressão do Inconsciente e produção de subjetividades. Também percebemos que a música e a pintura são condições interessantes de holding, expressão e socialização dos pacientes e acompanhantes antes de grupos de discussão. Por exemplo, os participantes vão a uma das salas das alas, após indicação de quem pode sair dos apartamentos e enfermarias pelos profissionais dos postos de enfermagem; lá são acolhidos por profissional psi e estagiários de Psicologia, e também se deparam com apresentações do grupo de cantoria e têm acesso a telas e pincéis, disponibilizados no carrinho estilizado do grupo de humanização. Pintam sobre a hospitalização, ouvem música e são informados sobre o programa. Posteriormente, quando iniciamos o grupo de discussão sobre a hospitalização (atividade descrita do primeiro projeto), os participantes estão mais abertos ao contato. As expressões do Inconsciente se manifestam com as associações sobre as pinturas, como um trabalho com sonhos. A dialética dos conteúdos manifestos e latentes está na base da atividade analítica. Apresentam simultaneamente o ser humano como se vê, enxerga a hospitalização e o adoecimento e o sujeito do Inconsciente que escapa, sinalizando as rachaduras no discurso e a divisão psíquica. Delineia-se assim uma depuração da análise possível das modalidades de existência realizada nas impurezas do setting hospitalar. Há uma Psicanálise sim, mas reinventada no cotidiano de um hospital. Como um recorte no campo epistemológico, se nos afastamos da técnica psicoterápica psicanalítica clássica em alguns aspectos, nós nos norteamos pelo referencial teórico psicanalítico contextualizado pelas particularidades de nosso trabalho.

Alguns outros pontos que merecem comentários são:

- Nossas atividades de humanização têm ocorrido, sobretudo, nas salas que existem nas alas do hospital de modo que pacientes e acompanhantes se deslocam dos quartos, o que facilita a deambulação. Além disso, os encontros promovem a socialização e a ruptura com a visão tradicional do doente acamado em uma situação sombria, bem como diversos efeitos analíticos e terapêuticos.

- Os dois projetos que desenvolvemos têm, com o tempo, se integrado cada vez mais.

- Pensamos na Psicanálise como possibilidades ímpares e diversas de trabalho psicológico com o ser humano em que as características do vínculo nos parecem centrais. Entendemos a Psicanálise como uma instituição de conhecimentos e práticas em que é legítimo haver um rearranjo de lugares da cena analítica, quando o contexto não é mais o de Freud, nem as condições de trabalho estritamente freudianas. Isso não é uma heresia, mas uma possibilidade de criar e recriar e analisar sempre. Aliás, compreendemos que, no mundo atual, são necessários uma interlocução de especialidades e o trabalho em equipe, o que permite à Psicanálise no hospital conversar com a Análise Institucional, a Psicologia Hospitalar, a Medicina, sem que perca a sua filiação, nem o psicanalista, o seu nome próprio. O problemático, a nosso ver, são as trombadas epistemológicas, o ecletismo desfigurador, o dogmatismo, a busca obsessiva de ser um seguidor ou simulacro de Freud, a falta de noção de objeto e método de trabalho.

- Salientemos que nosso trabalho só tem sido possível porque construímos um grupo em base de tomada de decisões, composto por nossa pessoa, profissional da Psicanálise, a diretora Rosa Mérice Cardoso e as Relações Públicas da instituição, Maria Helena Souza. Isso ocorreu após algum tempo de desenvolvimento do programa de humanização. Nossas atividades também só têm sido efetivas com a participação, ao longo do tempo, de vários estagiários de Psicologia e funcionários do hospital. Impossível nomear todos os que compõem uma rede de ações e intenções em prol de uma perspectiva de humanização hospitalar.

No serviço de Psicologia como um todo, há ainda a possibilidade de ser oferecido, mas este é um serviço privado por enquanto, atendimento individualizado aos usuários, como há outras ações e trabalhos de ótimo nível desenvolvidos por colegas do campo psi. Alunos de Psicologia também têm chegado cada vez mais à instituição para estágio curricular ou extracurricular, desenvolvendo perspectivas interessantes. Alguns estagiários que tivemos a oportunidade de orientar, inclusive, ingressaram, posteriormente à formatura, na especialização em Psicologia Hospitalar em centros importantes do país.

São essas as sementes de nosso movimento, pelo menos do que foi lembrado neste momento de reflexão. São essas as sementes do "Jardim das Pétalas das Lágrimas", como é definido o trabalho desenvolvido.

 

O que dizer de nosso programa de humanização?

Por meio de nosso trabalho, percebemos que o ser humano, muito mais do que células e bioquímica, pode ser reconhecido em suas produções artísticas e de linguagem. O hospital medicalizado se desmedicaliza à medida que a Medicina/ordem médica deixa de ser a única perspectiva do trabalho em saúde. Podemos pensar em atividades de humanização da assistência, por exemplo, da Psicanálise e das Artes, mesmo que na contra-correnteza das tendências hegemônicas.

Como nos ensina Foucault (1979), o hospital não era uma instituição médica e a Medicina não era uma prática hospitalar. Completaríamos: a história não acabou com a equação hospital=terra dos médicos.

Escuta de demandas e subjetividades, recorte e recontextualização de contribuições psicanalíticas para o setting hospital, ressignificações da noção de corpo e adoecimento da Medicina com base em contribuições diversas, por exemplo, de Bezerra (2003) e Santos et al. (2004), reflexões sobre a extraterritorialidade do psicanalista no hospital com base em Moretto (2001), questionamentos a respeito do hospitalocentrismo, como mantenedor da doença e hospitalização, para uma transição a favor de uma ruptura de campo por meio de trabalhos com o estilo de vida e a promoção de saúde no hospital estão na ordem de nosso discurso.

Desse modo, pensamos contribuir para devolver ao sujeito o que lhe foi excluído no processo de civilização e coisificação do humano. Da destituição do sujeito na área de saúde, às avessas, institui-se, no giro epistemológico, como perspectiva, o ser humano como obra de arte viva, poética, discursiva, pulsante, para antagonizar, resistir, rebelar-se frente aos atos e atuações das ordens vigentes. O hospital assim é entendido em sua historicidade e seu inacabamento como um dipositivo de poder a ser revisto.

Em nosso trabalho, por meio de pesquisa no decorrer desses anos, temos constatado que os participantes do programa de humanização têm considerado que as atividades que desenvolvemos humanizam as práticas e promovem a saúde das relações no hospital, bem como diminuem a dor e o sofrimento do paciente e do acompanhante. Outros pontos com score elevado têm sido entre outros: efeitos na qualidade das relações e no bem-estar das pessoas dentro do hospital, ampliação do autocuidado e participação mais ativa do acompanhante.

No movimento de humanização hospitalar brasileiro, não deixamos de ressaltar a estrada trilhada por profissionais que produzem atividades psicológicas com o brincar em hospitais, trabalhos como o dos Doutores da Alegria, bem como de tantos psicanalistas e psicólogos em instituições hospitalares em nosso vasto país.

Enfim, percebemos que é possível escutar o sujeito do Inconsciente em meio a jalecos brancos, estetoscópios, tensiômetros, equipamentos e procedimentos médico-hospitalares, principalmente quando concebemos o ser humano e suas produções como provas da arte inesgotável das manifestações do Inconsciente. Desconstruir e construir são dimensões centrais e fundamentais do processo psicanalítico. Ser criatura e criador, objeto e sujeito, incluem-se nas possibilidades não lineares de biografia humana individual e coletiva.

"A hospitalização é um hambúrguer", pintou um paciente em uma tela. Se o quadro mostra um sanduíche, com a abertura da cadeia discursiva, desvelou-se o enigma do pincel, das tintas e do quadro na produção da subjetividade no hospital. O sujeito do Inconsciente irrompeu e o trabalho psicanalítico alcançou a modalidade de existência e a poesia do ser humano e de sua relação com o outro. Havia, nesta situação, um gozo intenso com a transgressão do plano alimentar e o paciente tinha restrição da dieta, era interditado no comer, por causa da doença. O Édipo e suas investiduras estavam presentes na trama.

"A hospitalização é um avião sem asas, com as malas caindo, sem rabo, mas que continua voando, voando", como associou uma criança a respeito de sua pintura sobre a hospitalização: "um avião". Impotência, castração e potência tão intimamente ligadas nos deslizamentos associativos. O avião, tão humano que o sentimos, perde asas, malas, rabo, mas continua a voar... Não perde sua humanidade... Continua a viver e mostrar as ambivalências do existir...

É impossível traduzir a experiência de um psicanalista que fica fora do nicho a trabalhar em um hospital. Entra em um mundo em que escuta discursos anteriormente inaudíveis. Quando vai ao ofício do consultório, seu lugar já não é o mesmo. Abriu as portas da "casa da família" para seguir seu próprio destino. E assim encontrou outros problemas, enigmas, soluções e Esfinges... e a análise não tem fim.

Talvez nos expressemos melhor nas palavras de um poema tecido no baú da existência:

Prólogo

O vaso é esculpido
da luta entre vida e morte
o barro que cai das mãos
a Arte que tropeça o caos
criando a cerâmica

..........................................

um adeus ao luto.

O gosto é cuspido
do verso de um epílogo
vai ao outro
volta a si
o barro que sai de dentro
o ator que se põe no barro
vive o funeral no vaso que nasce
e enfeita a flor
que morre...

Ricardo Azevedo Barreto

 

Referências

BARRETO, L.A. São Lucas Clínica e Hospital 40 anos. Aracaju: PIGusmão Comunicação Integrada, 2009.         [ Links ]

BEZERRA, D.S. O desejo e a fragilidade do corpo. Psicologia hospitalar, São Paulo, v.1, n.2, p.19-27, 2003.         [ Links ]

BOTEGA, N.J. Reação à doença e à hospitalização. In: __________. Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 43-59.         [ Links ]

CALLIA, M.M.M. No caminho da transicionalidade: brincando criamos o mundo. In: GUELLER, A.S.; SOUZA, A.S.L. Psicanálise com crianças: perspectivas teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p.135-150.         [ Links ]

ETCHEGOYEN, R.H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.         [ Links ]

FOUCAULT, M. O nascimento do hospital. In: ___________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.         [ Links ]

GUIRADO, M. Instituições e relações afetivas: o vínculo com o abandono. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.         [ Links ]

MORETTO, M.L.T. O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.         [ Links ]

SANTOS, N.O. et al. O corpo: envelope gozado e odioso - conversação clínica a respeito de um caso envolvendo a questão da alimentação. Psicologia hospitalar, São Paulo, v.1, n.1, p.90-101, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211/Sala 606 - Bairro São José
49010-410 - Aracaju/SE
Fone: (79)3214-6906
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido: 25/04/2010
Aprovado: 14/06/2010

 

 

1 Psicólogo pela USP, mestre e doutor em Psicologia (Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da divisão de Psicologia da FMUSP. Professor da Universidade Tiradentes (UNIT) nos cursos de Psicologia, Medicina e Odontologia. Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe e do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Editor da revista Estudos de Psicanálise (referente à Diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010). Tem experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA) e desenvolve trabalho fundamentado na teoria psicanalítica com arte no hospital São Lucas, em Sergipe, onde coordena o programa de humanização hospitalar.

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