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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.35 Belo Horizonte jul. 2011
Rastros e rasgos na busca de sentido ao cotidiano
Tracks and tears in search of meaning to the every day
Magda Maria Colao
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Universidade Caxias do Sul
RESUMO
Este texto parte da reflexão sobre a valorização da concepção do ser humano e a busca de sentidos à realidade vivida. A natureza humana guarda em si a potência de ser diante de muitas situações do cotidiano. O caos, a solidão e a capacidade de resiliência são idéias integrativas que possibilitam a criação de um novo estado, bem como uma consciência de continuidade do existir. Além do princípio do prazer (Freud, 1976) enlaça as inquietações da realidade objetiva – o real vivido. “Todo desenvolvimento é uma aventura” diz Cyrulnik (2009, p.206). Oxalá, podermos desenvolver nossa capacidade de dar sentido à condição humana.“O compromisso não é uma característica dos insanos. O homem maduro nem é tão bonzinho nem tão desprezível quanto o imaturo. A água no corpo é barrenta, mas não é barro” (WINNICOTT, 1988, p.160).
Palavras-chave: Princípio de prazer, Pulsão, Resiliência.
ABSTRACT
This text starts from the reflection about the appreciation of the human being conception and the seeking of senses for the reality lived. Human nature keeps in itself potency to be in the presence of many everyday situations. The chaos, the loneliness and the resilience capacity are integrative ideas that enable the creation of a new state, as well as an awareness of the being continuity. Beyond the pleasure principle interlace the inquietude of the objective reality – the reality lived. “Every development is an adventure” says Cyrulnik. Let’s hope, we are able to develop our capacity to give meaning to human condition. “Compromise is not a characteristic of the insane. The mature man is neither so good nor so mean as the immature. The water in the body is muddy, but it is not clay”.
Keywords: Principle of pleasure, Pulsation, Resilience.
Introdução
Este trabalho foi apresentado numa Jornada de Estudos, no Círculo Psicanalítico do RS, e arrisco-me, como Bion (1992, p.157), “a ter ousadia de exercitar a especulação imaginativa e o raciocínio especulativo [...]. Entretanto aquilo com que temos que lidar são situações que, literalmente, são estimuladas de repente, no momento”. Do impacto das pulsões do cotidiano que criam a realidade objetiva e alimentam a realidade interna originam-se problemas específicos que estimulam o desenvolvimento da nossa capacidade de resiliência. O real assume as contradições inerentes ao ser humano. “A vida de uma pessoa consiste num intervalo entre dois estados de não – estar-vivo. O primeiro dos dois, a partir do qual emerge o estar-vivo, dá colorido às idéias que as pessoas costumam ter sobre o segundo”, pontua Winnicott (1988), p.154. Freud (1976) desenvolveu a idéia dos instintos de vida e morte. Tratou do estado inorgânico do qual se origina cada sujeito e ao qual retorna. Diante deste paradoxo Winnicott (1988), alega:
[...] um observador pode perceber que cada ser humano individual emerge como matéria orgânica da matéria inorgânica, e no devido tempo retorna ao estado inorgânico [...] do mesmo tempo, do ponto de vista do indivíduo e da experiência individual, o indivíduo emerge não do inorgânico mas da solidão (1988, p.154-155).
Para Cyrulnik (2009), não somos senhores das circunstâncias, nem de nossas almas, nem do sentido que atribuímos às coisas. Resta-nos, porém, uma certa “possibilidade” pois estamos imersos nos símbolos culturais, com significados que remetem a criação de redes significantes, criações a partir da imaginação e da capacidade de resiliência. É preciso um ato de passagem, e não uma passagem ao ato, para pensar e elaborar histórias vividas. De acordo com Cyrulnik (2009, p.59): “A busca de sentido revela o despertar da vida psíquica”. Assim, este texto mostra algumas inquietações a partir do significado que a natureza humana é capaz de se propor, passando pelo real Além do princípio de prazer (Freud, 1976) além do cotidiano.
Inquietações sobre a realidade
Percebo o quanto é difícil agir racionalmente, exercer uma práxis num mundo caótico, razão pela qual é preciso buscar novas narrativas que ofereçam formas para responder as demandas externas. Urge a prioridade de “busca de sentido”, de adaptação, de organização de novas estratégias de vida. Cyrulnik (2009) realça:
Nossa sensorialidade é que nos tira do caos e são nossos relatos que impregnam sentido nos acontecimentos. Essa adaptação necessária explica o amor pelos mitos, pelos preconceitos e pelos tiranos. Eles nos salvam do caos, dão sentido à nova comoção, e nos levam à perdição, para nossa grande alegria. Suponhamos que nunca houvesse caos em nossa vida, viveríamos em uma rotina anestesiante, uma não vida antes da morte (2009, p.24).
“Somos compelidos ao sentido”, exclama Cyrulnik (2009, p.25). Não há “atividade mais íntima que o trabalho de atribuir sentido. O que ficou impregnado pelo trauma real alimenta sempre representações de lembranças que constituem nossa identidade íntima. Esse sentido persiste em nós e tematiza nossa vida”, afirma Cirulnik (2006, p.13). “Por sorte, alguns momentos de ruptura existencial balizam nossa memória. Sofremos com eles, claro, mas depois, quando repensamos aquilo, eles estruturam nossa identidade narrativa” declara Cyrulnik (2009, p.25).
Dialeticamente, cada formação material particular (corpo, coisa, fenômeno) não é eterna, está sempre em transformação.
Sua existência tem um começo e um fim. Ela aparece, existe um certo tempo e depois desaparece, transformando-se em uma outra formação material. Nenhuma formação material é ilimitada, mas pelo contrário, ocupa um lugar determinado e limitado no espaço. É apenas o mundo em sua totalidade que é eterno e infinito (CHEPTULIN, 1982, p.74).
A realidade objetiva remete ao mundo exterior, à matéria. “A matéria é uma categoria filosófica que serve para designar a realidade objetiva dada ao homem por meio de suas sensações, que a copiam, a fotografam, a refletem e que existe independentemente das sensações”, ratifica Lenin (apud CHEPTULIN, 1982, p.68). Tudo está em constante movimento, perpetuamente transformando-se. O sentido pode estar depositado no que chamamos de original, na procura de palavras para outras palavras.
O sentido não está, portanto, presente no original como um caroço na fruta, ou como uma realidade substancial de que as formas expressivas seriam meros atributos. O indeterminado é o sentido, cuja ausência atrai e fascina o original e sua tradução. O sentido é o que [...] obriga a pensar, a fazer e a tomar forma. O sentido é aquilo que não está nem pode estar dado, que vai além do dado (LUZ, 2007, p.14).
A natureza do sentido revela-se no ato de consciência. “A grande propriedade da consciência é a de refletir a realidade objetiva”, diz Triviños (1987, p.62). Na obra A ideologia alemã desvenda: “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência [...]. Parte-se da vida real. [...] dos próprios indivíduos vivos reais [...]. A realidade objetiva é a fonte última da experiência sensorial, e vêem no conhecimento um reflexo da realidade objetiva”, escrevem Marx e Engels (1984, p.23). A realidade objetiva é a vida cotidiana, que carrega per si articulações com a totalidade existente, vivida ou não. É interligada na constatação de que o princípio do prazer age sob o efeito dos mais diversos aromas, ligações e contradições. Neste azimute, os opostos estão em permanente interação. As contradições estão assentadas nas circunstâncias da vida, produzindo, por sua vez, uma força contrária que tende a frustrar, anular, subverter ou transformar, pensa Bottomore (1988).
No texto Além do princípio do prazer - um estado de não-ser ou de morte – Freud (1976) declara que a experiência de satisfação inclui uma falta. Nesse ínterim, Freud para Safouan (1979, p.23) “propõe-se a resgatar o sentido da realidade para o neurótico, e para a humanidade em geral, examinando o desenvolvimento” ao modelo do ser humano ainda muito próximo do seu nascimento. O desejo também é uma busca do prazer. Prazer e dor têm sede no corpo, enquanto o desejo tem sede na lembrança, nos aromas da memória, sugere Safouan (1979).
O Código da Lei Judaica ao versar sobre os aromas, mostra que esses são chamas de amor: “qual a coisa que só dá prazer à alma e com que o corpo não se beneficia? A resposta é: o cheiro. [...] Quando todas as especiarias estão amarradas juntas e o cheiro delas está misturado, é recitado uma benção” afirma Gantzfried (2008, p.336). Então, o sentido que alcançam os diferentes aromas do cotidiano – o real – trata da constatação de que pertencemos ao humano e cada um cria sua realidade. Frisa Safouan (1979, p.10): “tudo estaria resolvido se o organismo não fosse humano”. Ser humano é um reconhecimento, uma gratidão que lança sentidos assim como bênçãos na unidade dos aromas no judaísmo. Vários fenômenos agitam os atos humanos e nesse ensaio reflito sobre minhas experiências. O anseio de ousar do ideal do ego, o desejo de escrever, move-me a dialogar com a condição humana, com as pulsões, com o narcisismo de vida e de morte. Lembra Winnicott (1988):
Os filósofos sempre se preocuparam com o significado da palavra “real”, e houve escolas de pensamento fundadas sobre a crença de que
“Pedra, árvore, ou
o que quer que mais seja,
só terão existência se houver quem as veja...”
Com a alternativa
“A pedra, a árvore
seja lá o que for,
estarão bem aí mesmo sem espectador ...”
Nem todos os filósofos percebem que este problema, que aflige todo ser humano, constitui uma descrição do relacionamento inicial com a realidade externa no momento da primeira mamada teórica; ou melhor ainda, no momento de qualquer primeiro contato teórico (WINNICOTT, 1988, p.134).
Também nesse momento da obra Winnicottiana, Natureza humana,: o autor afirma:
[...] alguns bebês têm a sorte de contar com uma mãe cuja adaptação ativa inicial à necessidade foi suficientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de realmente encontrar aquilo que eles criaram (alucinaram). Eventualmente, depois que a capacidade para o relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais tarde, um destes bebês crescerá e dirá: “Eu sei que não há nenhum contato direto entre realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado. A mim não importa nem um pouco se aí existe ou não um problema filosófico” (WINNICOTT, 1988, p.135).
Dar conta de diferentes direções, compor aromas na junção destas possibilidades nos brinda com a contradição, com o constante ir e vir-a-ser.
[...] seja porque o filhote humano nasce inteiro mergulhado num mundo já culturalmente constituído, seja porque a prematuridade orgânica que o caracteriza ao nascer, bem como a ausência total de um aparato instintual, o obriga a valer-se de um dos seus semelhantes (Nebenmensch) para viver.
Assim é que, já ao primeiro jorro de leite destinado a saciar-lhe a fome, o bebê estará em verdade recebendo, engolindo, incorporando como se fora ele próprio, o semelhante que o provê (num único e mesmo ato) de leite e do universo no qual gravita esse obscuro ponto que é o desejo.
O momento do nascimento verdadeiramente humano, o momento de inauguração do psiquismo está ilaqueado à experiência de satisfação. O leite mata a fome, mas mata também tudo o que nela há de exclusivamente orgânico e natural. Desde então toda e qualquer função orgânica será atravessada por este psiquismo incipiente, mas já humano, que traz em seu bojo uma outra fome, essa jamais saciável: o desejo (SAFOUAN,1979, p.10).
“O recém-nascido tem fome antes de conhecer o seio materno, por consequência não poderia alucinar”, adverte Safouan (1979, p.23-24). O seio materno é capaz de serenar a tensão orgânica, logo se sobrepõe a necessidade “que outra coisa não é que a representação desse complexo circuito compreendido entre o apelo do organismo e sua satisfação”, pontua Safouan (1979, p.11). Freud nos faz pensar sobre a interioridade, a condição do sujeito na relação com os outros. “A cultura reserva ao homem o acesso ao delegado, ao representante da coisa, ao significante dela”, pensa Safouan (1979, p.11). Em seu trabalho O fracasso do princípio do prazer, Safouan (1979) comenta que a coisa mesma denota ser sempre perdida porque a representação é a própria produção de sua ausência. Safouan (1979) assegura que:
Representar é produzir a ausência da coisa representada. Consuma-se assim o destino humano, marcado que está pelo desejo nascido e mantido por essa coisa que falta e da qual só temos a representação [...] O sucesso do princípio do prazer reside em que fracasse repetidamente. [...] a verdade do prazer é que ele é prazer da privação, é prazer do desprazer, da ausência da coisa. Repetir sempre o eterno fracasso do encontro, reconsumara falta, eis o verdadeiro princípio do prazer ao qual o homem está fadado (1979, p.11).
Por conseguinte, temos o conceito de pulsão, entre o somático e o psíquico, fundamental na metapsicologia freudiana. Freud foi um pesquisador atento à compreensão do sujeito inacabado e trouxe à discussão estudos que representam pilares da psicanálise: pulsão, inconsciente, recalque e transferência. No texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1974, p.108) declara: “A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – Sua majestade o Bebê [...] ‘Sua majestade o ego’”.
Ao mesmo tempo, expressa Freud (1974), há outros modos de tratar que nos permanecem acessíveis, e através deles podemos obter um conhecimento melhor do narcisismo. “[...] uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento [...] retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos” (FREUD, 1974, p.98).
Para a psicanálise, o amor é um conceito fundamental e um pilar da existência. A referência à primeira relação amorosa, a que se dá entre mãe e filho, que dá suporte e potência constitutiva à existência tanto biológica como psíquica da criança, constitui o modelo de base para amores ulteriores.
O amor é destacado por Freud (1930) como uma das “ artes da vida” mais importante na busca da felicidade e na evitação, ao longo da existência do ser humano. Essa arte apresenta, entretanto, uma dualidade peculiar, porque, assim como aproxima o sujeito da aventura almejada, o expõe, como nenhuma outra, às dores da dependência: nunca estamos menos protegidos contra as peroas do que quando temos perdido o objeto amado ou seu amor”. Talvez por isso a civilização contemporânea, que alia o individualismo narcísico e hedonista ao combate acirrado a toda forma de dor, parecer haver renunciado a apostas de tão alto risco como a caracterizada por Freud, que prevaleciam, sem dúvida, no auge da modernidade, Narcisismo e Amor de objeto seriam esses adversários clássicos que continuam a enfrentar-se, em sucessivos rounds, ao longo da história dos homens e das mulheres (FUKS, 2008, p.54-55).
Esses diálogos provocam espaços para trocar idéias, crescer, dialogar com o tempo, com nós mesmos, com a vida. Nessa perspectiva me reporto aWinnicott (1975) e a sua crença de que a vida vale a pena ser vivida. “Que coisas temos acrescentado e que outras há perspectiva de continuar contribuindo conforme a possibilidade de cada um” (GARBARINO, 2002, p.29). Sinaliza, com razão, Bion (apud AHUMADA 1999, p.31) que: “precisamos desenvolver com urgência a psicanálise, ou algo melhor”. A psicanálise tem como ponto de partida um substrato que, segundo Ahumada (1999),
se apóia nas lógicas da vida diária e as estende a novos âmbitos e dimensões, precisou por isto, mais do que outros campos do saber, estabelecer seu espaço-substrato contra um saber admitido, isto é, contra uma “topografia do psíquico” do saber comum ou de áreas especiais como a medicina e a filosofia. Tal estabelecer-se contra um saber corrente se torna notório no caso das paralisias histéricas, cuja espacialidade, não coincide com a anatomia dos neurologistas, teve que ater-se a uma lógica diferente, a lógica da fantasia sexual (1999, p.33).
“O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte”, garante Freud (1976, p.85). A esse respeito, Freud (1976) em Além do princípio de prazer estabelece que todo desprazer neurótico é um prazer. “Sem dúvida, o ponto essencial é que o prazer e o desprazer, sendo sentimentos conscientes, estão ligados ao ego”, escreve Freud (1976, p.21). O desprazer corresponde “a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição”, realça Freud (1976, p.20). O curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, pelo movimento de tensão desagradável, norteia Freud (1976). Ou seja,
desprazeres não são senão desvios que a realidade nos impõe no caminho que conduz ao prazer. A propósito, observa Freud, a realidade não explica senão uma parte mínima de nossos desprazeres. Pois o “fato é que as pulsões sexuais sucumbem a um recalque (onde se conservam, subtraídas à ação do princípio de realidade), e o retorno delas produz no ego (isto é, diríamos, no sistema que pretende ser aquele mesmo da realidade) um desprazer que é aquele com o qual lidamos na grande maioria dos casos, comenta Safouan (1979, p.80).
Prazer é a ausência de excitação - estabilidade. “O princípio de prazer decorre do princípio de constância; [...] ‘a tendência a mater constante a excitação intracerebral’”, alude Freud (1976, p.19). O que se pode depreender disso? Conforme Safouan (1979), quando as coisas parecem apresentar-se de um modo irredutível ao princípio do prazer, é então que repetimos as experiências penosas de nossa existência e a elas voltamos como se volta aos primeiros amores. Tal seria com o exemplo que Freud (1976) apreendeu sobre repetição ao observar seu neto brincando com um carretel de madeira e barbante (fort-dá/desaparecimento-retorno) reproduzindo ludicamente a separação da mãe, os limites da castração.
Assim, diz Saufouan (1979), Freud propos a existência de um princípio de repetição que reconduzia à pulsão de morte, deixando evidente que o jogo completo se desenrolava em dois tempos: o primeiro ato que era repetido incansavelmente e o segundo ato proporcionava à criança maior prazer. O gesto de fazer desaparecer denota uma conservação. Mas seria mais exato dizer aqui que a criança brincava não de se fazer desaparecer, mas de se ver como não sendo vista. “O que era já uma brincadeira no gesto de fazer desaparecer, era justamente ‘ver’ o objeto mesmo quando não o víamos” (SAFOUAN, 1979, p.91-92).
Qual é o alcance desta brincadeira quando lidamos com nossas diferentes realidades: quando nos sentimos em perigo; quando transformamos um fracasso em oportunidade; quando a crença irracional, num contexto em que tudo morre, possui uma função de reasseguramento? A morte, a solidão brotam como alavancas. “A compulsão ao sentido que nos protege e nos torna criativos, para nossa grande alegria, fabrica ao mesmo tempo quimeras sociais e sacrifícios de bodes expiratórios, para nossa grande tristeza”, reflete Cyrulnik (2009, p.26). “Qualquer coisa é melhor que nada, o psiquismo tem horror ao vazio e o ansioso fica aliviado quando dá ao mundo uma forma coerente, mesmo que essa configuração isolada do real seja delirante” (CYRULNIK, 2009, p.63). Resiliência, solidão e caos estão relacionados com integração. “O caos é, primeiramente, uma quebra na linha do ser, e a recuperação ocorre com a revivência da continuidade [...] uma quantidade de caos passa a fazer parte da constituição do indivíduo. [...] Contudo, a desintegração não é um estado que possa prosseguir por si mesmo”, propõe Winnicott (1988, p.157). Entre rastros e rasgos no caminhar, deixamos à vista as emoções mais primitivas, preenchemos de luz o que ainda não é consciência. Melanie Klein, conta Bion (1992, p.79), “iluminou tanto as coisas que revelou visões ainda maiores na escuridão, de áreas não iluminadas. Em psicanálise, sempre estamos descobrindo mais domínios de ignorância, escuridão, o vazio”. No vai e vem da existência a angústia, o inesperado, a solidão e o amor balançam.
Referências
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Endereço para correspondência
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E-mail: magdacolao@gmail.com
Recebido: 01/03/2011
Aprovado: 29/04/2011
Sobre a Autora
Magda Maria Colao
Doutora em Educação pela UFRGS, linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais, Saúde e Educação. Psicóloga. Pedagoga. Orientadora educacional. Candidata em formação no Instituto de Estudos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade Caxias do Sul – UCS.