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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.40 Belo Horizonte dez. 2013
O Setting analítico na clínica cotidiana
Analytical Setting in everyday clinic
Glória Barros
Círculo Psicanalítico de Pernambuco
Espaço Psicanalítico da Paraíba
RESUMO
Refletimos sobre o Setting analítico e o manejo clínico de nossa prática cotidiana, à luz da teoria psicanalítica. Inicialmente nos referimos à visão freudiana e posteriormente nos detemos em Ferenczi e Winnicott, dois clássicos nas teorizações sobre o Setting/manejo de pacientes com maior comprometimento psíquico ou mesmo resistentes ao processo terapêutico, para facilitar mudanças psíquicas no processo psicanalítico. Alguns fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o estabelecimento da comunicação no Setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do Setting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la, e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um Setting adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu fortalecimento e seu crescimento.
Palavras-chave: Setting analítico, Psicanálise, Manejo clínico.
ABSTRACT
We pondered about the analytical Setting and the clinical handling of our everyday practice under the light of the psychoanalytical theory. We first referred to the Freudian vision and, later on, we approached Ferenczi and Winnicott, two classic authors in the theorizing of Setting/handling of patients with larger psychic endangerment or even resistant against the therapeutic process, so as to facilitate psychic changes in the psychoanalytical process. Some fragments of an analysis in our clinic show a well-succeeded experience and reinforce our certainty that the analyst's move is fundamental to establish communication in the therapeutic Setting. His adaptation to the patient's needs constitutes the primordial factor for the clinical handling, with the Setting handling being the main resource in the treatment of much-regressed patients. The warmest initial reception, the flexibility of the sessions duration to listen to her, to welcome her and the availability to assist on some of the patient's manifested needs showed to be of great importance. I believe that the creation of a Setting adapted to Marina's needs during a stage in her analytical process provided her with strengthening and growth.
Keywords: Analytical Setting, Psychoanalysis, Clinical handling.
Introdução
O Setting analítico tem a ver com os dois integrantes do processo analítico: analista e paciente. A sensibilidade do analista é fundamental, e isso tem que levar em consideração tanto as características do paciente quanto as do analista, que se derivam de seu próprio percurso.
Temos nos deparado no exercício da clínica psicanalítica com as múltiplas faces do sofrimento humano. Situações inusitadas nos colocam frente a desafios que muitas vezes põem em xeque o arsenal teórico que nos embasa. Diante desse panorama nos sentimos instigados a fazer uma reflexão teórico-clínica sobre o setting analítico e seu manejo clínico. No presente estudo tentaremos tecer considerações sobre algumas situações clínicas especiais que exigiram mudanças no setting terapêutico. Essas considerações serviram de base ao trabalho que apresentamos no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental (BARROS, 2012) e posteriormente retrabalhado, no Círculo Psicanalítico de Pernambuco, por ocasião de nossa passagem para analista, em março de 2013. Com várias modificações e correções, apresentamos agora o texto aos leitores.
Sobre a técnica psicanalítica: o setting e o manejo
No campo psicanalítico, o setting é um espaço que se oferece para propiciar a estruturação simbólica dos processos subjetivos inconscientes, reunindo as condições técnicas básicas para a intervenção psicanalítica. Nesse campo são englobados todos os elementos organizadores do setting: o espaço físico de atuação, o contrato estabelecido para seu desenvolvimento, assim como os princípios da própria relação, transferencial e contratransferencial, estabelecida entre analisando e analista.
No seu texto Recordar, repetir e elaborar (1914) Freud faz um histórico do desenvolvimento da técnica psicanalítica, sublinhando "as alterações de grandes consequências que a técnica psicanalítica sofreu desde os primórdios" (FREUD, 1969, p. 193). Ele concebia o setting analítico, como um lugar específico para que a relação terapêutica se desenvolvesse; é composto por um conjunto de elementos que podem ser compreendidos como variáveis independentes, que devem permanecer sob controle, para assegurar o êxito do tratamento: o analista; o paciente; o cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fundamental; a atenção flutuante.
Nos textos Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o início do tratamento (1913), Freud ressalta que o que garante efetivamente a situação analítica é não tanto os dispositivos proporcionados pelo setting, mas a posição simbólica assumida pelo analista no percurso de uma análise. Para ele o conjunto de derivações dessa posição interna do analista é que dá consistência ao tratamento.
No V Congresso Psicanalítico Internacional (1918) Freud recomenda uma mudança de atitude do analista nos casos em que a análise da transferência não se apresenta como recurso suficiente para vencer as resistências e desentravar o processo, e ao analista cabe adotar uma postura mais ativa. Ele transfere a incumbência de prolongar a duração do tratamento e de encontrar técnicas capazes de atestar o sucesso do método analítico para seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se destacou nessa tarefa.
A percepção da dificuldade apresentada pelos pacientes bastante regredidos que frequentavam a clínica de Ferenczi o levou à formulação de que a técnica e o enquadre utilizados eram responsáveis pela produção de "resistências objetivas" à experiência analítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele estabelece a técnica ativa como medida a ser utilizada com pacientes resistentes ao método interpretativo.
O percurso clínico de Ferenczi é todo pautado no desafio de acolher o sofrimento dos pacientes chamados "difíceis" (1926). Ele conclui que as dificuldades enfrentadas nesses processos eram decorrentes da "insensibilidade" dos analistas, que não queriam se deixar afetar pelo encontro analítico, se pronunciando por introduzir a faculdade de "sentir com", pelo projeto de "soltar a língua" (1927).
Para o autor seria preciso tornar a técnica mais elástica, de maneira a favorecer a expressão afetiva. O privilégio dado à expressão de afetos na análise provocou, assim, uma ampliação cada vez maior dos limites do permitido na clínica, chegando-se à formulação de um princípio de relaxamento como contraponto ao de abstinência (1927).
Ferenczi introduz seu projeto de "soltar as línguas" nas análises, implicando e convocando o analista à adoção de um estilo clínico diferenciado, resgatando a criatividade do analisando, exercitando a sua capacidade de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito de contratransferência como algo que não dificultaria a análise, mas que faz parte da própria técnica a ser empregada. O manejo técnico deve dosar bem a empatia e a capacidade de "sentir com", e o processo é conduzido melhor a partir da análise pessoal do analista, que o capacitará para avaliar a situação analítica a distância. Esse é o entendimento que Ferenczi tem do analista elástico.
Seguindo a mesma linha de pensamento de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital reexaminar sua técnica, pois suas observações clínicas apontavam para a necessidade de uma adaptação do setting para promover uma evolução favorável do paciente e ajudá-lo no fortalecimento e na evolução de sua personalidade.
O trabalho psicanalítico winnicottiano busca promover o desenvolvimento de aspectos da vida psíquica que não puderam evoluir em função de falhas no processo inicial, além de valorizar o meio ambiente na estruturação do self. A adaptação no setting, na sua visão, auxiliaria os pacientes na busca e no encontro de suas necessidades, favorecendo o estabelecimento de um campo transferencial propiciador de mudanças.
O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teorizações ele "apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente". Um setting diferenciado é utilizado quando estamos diante de alguns quadros clínicos que apresentam maior fragilidade psíquica ou quando existem necessidades especiais do ambiente exigindo cuidados mais específicos.
Winnicott nos alerta para não trabalharmos de forma rígida utilizando uma aplicação cega a uma técnica, pois o paciente que procura análise precisa ser acolhido na sua dor e, isso ocorre à medida que ele se sente compreendido no seu sofrimento. Nem todos os pacientes que chegam à clínica buscando ajuda podem ser submetidos a uma análise. O método que iremos utilizar nesse processo dependerá das condições psíquicas e clínicas em que ele se encontra.
A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios psíquicos que tem como fundamento a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Winnicott pontua:
Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las (WINNICOTT, 1983, p. 65).
Winnicott (1983) enfatiza a importância do diagnóstico focando o grau de maturidade em que o paciente se encontra para guiar a ação terapêutica. Para ele é fundamental basear seu trabalho terapêutico de acordo com o diagnóstico, permanecendo na elaboração de um diagnóstico, individual e social, ao longo de todo o processo de tratamento, pois, assim procedendo, poderemos fazer uma adaptação no setting se a situação emocional do paciente naquele momento assim requerer.
Nesse sentido ele afirma:
[...] faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise [tradicional]. Posso até tentar estabelecer uma cooperação inconsciente, ainda quando o desejo consciente pela psicanálise está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo método por excelência é a interpretação do conflito reprimido inconsciente] é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. (WINNICOTT, 1983, p. 154).
Na visão winnicottiana, para que ocorra o acolhimento de forma irrestrita, não podemos nos colocar de forma a manter a análise protegida por um setting rigoroso, pois, dessa forma, correremos no risco de reforçar as nossas defesas como analista e as defesas do paciente, impossibilitando o acolhimento radical da loucura. Assim, perderemos de vista elementos fundamentais que mostrarão todo o arsenal do sofrimento e da psicopatologia manifestada pelo paciente.
O analista, na visão de Winnicott, deve se abster do autoritarismo e da doutrinação, permitindo uma fruição mesmo desorganizada ao longo das sessões. É fundamental que o analista vivencie um estado de relaxamento e espontaneidade, acolhendo de forma ativamente passiva e ativamente expectante os conteúdos emergentes, a fim de estabelecer uma base de confiança para que o processo caminhe.
O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teorizações ele "apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente".
Da teoria psicanalítica à pratica clínica
Nesse contexto, quero apresentar Marina, paciente que bem se adéqua às nossas reflexões do tema que escolhemos para discutir neste momento. Minha supervisora havia me indicado para que Marina continuasse seu processo terapêutico comigo e, apesar de saber que iria encurtar duas horas para chegar ao local de seu tratamento, ela não se sentia tranquila para fazer essa passagem. Coincidentemente eu a encontrei na saída de sua sessão, e esse encontro foi decisivo para que ela me procurasse depois do parto, já que estava no final de sua terceira e última gestação.
Ao chegar para a primeira sessão, Marina diz "O seu olhar, sorriso e o aperto de mão no nosso primeiro contato abriram caminho para que eu decidisse vir até aqui". Após quatro meses do parto, ela me procura. Vinha sempre acompanhada de seu bebê e do marido.
Traremos alguns fragmentos da análise de Marina, que durou cerca de doze anos e, até hoje, através dos contatos telefônicos mantidos nos seus momentos de alegria e aflição, constatamos a importância do acolhimento sustentado ao longo de todo o seu processo para a manutenção de um campo de confiança e um vínculo transferencial. Marina, 32 anos, odontóloga, era casada, tinha três filhas, mas não exercia a profissão naquele momento.
Quando iniciou sua análise comigo, ainda era grande a sua fragilidade. Depois de alguns anos, conseguiu falar sobre o abuso sexual que havia sofrido na infância e, a partir daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos anos de seu processo psicoterapêutico, sendo trabalhado intensamente. Depois de um tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar novamente com toda a força.
Tempo, paciência e tolerância eram vitais nesse processo, tanto para ela quanto para mim. Marina caminhava muito lentamente nas suas elaborações. Nós não poderíamos ter pressa. Juntas, passamos a viver em muitos momentos uma experiência de mutualidade.
Winnicott (1993) afirma que o paciente busca no terapeuta as funções de que necessita. Se o terapeuta compreende a situação, temos um momento mutativo. E nos fala ainda em formas especiais de conduzir o setting como uma metáfora dos cuidados maternos. Observa-se que ele privilegia o modelo de cuidado materno, transportando-o para o setting, incluindo o analista como parte do setting, que é visto como o lugar que proporciona o desenvolvimento. Nas situações vividas neste caso, a analista privilegiou esse modelo de cuidado a partir da compreensão do processo de Marina.
Marina havia iniciado sua primeira análise por causa de um quadro depressivo grave. Com esse acompanhamento, pôde elaborar e enfrentar o seu medo de engravidar, relacionando seu quadro ao abuso sexual sofrido aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia referência ao fato como "o estrago que esse fato provocara na sua vida".
A mãe dizia para Marina esquecer o ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi obrigada a fazer um tratamento dentário no tio, como forma de agradecimento e pagamento, pois ele havia transportado no seu caminhão os móveis de consultório dela. Marina se sentia desamparada e incompreendida pela família, não acreditava que sua depressão tivesse relação com o abuso sofrido, afirmavam que aquilo tudo era "coisa do diabo". Eles eram evangélicos e diziam para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse à igreja não precisaria fazer terapia nem tomar remédios.
Diante de tal situação, como enquadrar o caso que eu tinha na minha frente me desafiando e me fazendo ver que algumas mudanças no manejo deveriam ser adotadas?
A teoria do setting de Winnicott (1993) estuda a estruturação, a significação, a função e seu manejo pelo analista, inclusive a possibilidade de sua ruptura parcial ou de transgressão. Ele também estuda o problema das falhas do analista e a possibilidade de seu uso por parte do paciente. A experiência clínica levou Winnicott a reexaminar sua técnica no tratamento de pacientes muito regredidos. Ele pontua:
As necessidades do paciente só podem ser definidas a partir de um diagnóstico psicodinâmico considerando três grupos de pacientes. No primeiro grupo temos pacientes que operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão nas relações interpessoais. Estes pacientes podem ser submetidos à análise clássica. Num segundo grupo temos os pacientes depressivos no qual a totalidade da personalidade está apenas se esboçando. Em relação ao manejo, devido à função do amor e ódio, a ideia da sobrevivência do analista aos ataques do paciente é um fator importante. Num terceiro grupo estão os pacientes cuja estrutura pessoal ainda não está fundada de forma segura, e o tratamento deve lidar com os estágios mais primitivos do desenvolvimento emocional. A ênfase está no manejo, funcionando como holding e estes pacientes necessitam de um setting mais regressivo (WINNICOTT, 1993, p. 460).
A cada sessão ia reforçando o diagnóstico de que Marina se encontrava no terceiro grupo, funcionando de forma primitiva e precisava de um setting mais acolhedor. Dentro da visão winnicottiana, o setting analítico deve comportar os aspectos relacionados à mãe-ambiente, em que o analista oferece constância, previsibilidade e confiabilidade, tanto pelo ambiente físico quanto pela qualidade do cuidado pessoal, procurando se ajustar às expectativas do paciente, para possibilitar o estabelecimento de comunicações mais profundas.
A adaptação do terapeuta às necessidades do paciente será fator primordial para o manejo da clínica winnicottiana. No processo deve ser oferecido um lugar, um momento e uma abertura para que possa vir à tona a problemática do paciente, que emergirá na dependência de muitos elementos, em especial, do movimento do analista para o estabelecimento da comunicação no setting terapêutico.
Desde o início, percebíamos a fragilidade e o desamparo de Marina e que seu tratamento, além de requerer muito cuidado no manejo, necessitava de muita disponibilidade nossa na condução do processo.
Suas sessões não poderiam ter o tempo normal (cinquenta minutos), e assim, suas sessões duravam em média de uma hora e meia a duas horas. Desde as primeiras sessões, a paciente trazia uma enxurrada de sintomas com suas longas histórias e, se não fosse possível trabalhar grande parte das questões levantadas, a angústia era tão intensa que requeria depois muitos contatos telefônicos até ela conseguir se acalmar.
As sessões tinham, desde o início, um ritual. Ela sempre trazia um caderno com seus escritos da semana. Falava sem parar, levantava inicialmente as dificuldades, depois seus ganhos, seus sonhos e, assim, se sentia mais calma no final da sessão. Se não fosse assim, ela saía péssima, não suportando ficar naquele estado por toda a semana, o que muito lhe pesava e torturava.
Observava que seu nível de tolerância era baixíssimo e sua mobilidade psíquica muito pequena. Qualquer tensão não era suportada por ela, e sua tendência era descarregar no corpo somatizando. Ela vivia em muitos momentos a possibilidade de entrar em colapso.
Acredito que a criação de um setting adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou fortalecimento e crescimento. Numa sessão, ao chegar com dor de cabeça por fome, Marina solicitou algo para comer. Percebi que a fome de Marina era de outra ordem, mas o seu desconforto físico não permitia que ela conseguisse usufruir da sessão. Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A partir desse momento ela começou a restaurar de forma visível uma subjetividade tão fragmentada, que se fazia presente no corpo.
Essa experiência não só mudou a visão que a paciente tinha do mundo, das relações objetais, e de si mesma, mas também reintegrou no seu psiquismo aspectos que até então se encontravam dissociados. A partir daí ela aprendeu também a se cuidar e a se alimentar com mais carinho e cuidado quando se encontrava mais fragilizada. O alimento oferecido resgatava, assim, cuidados bem primitivos que lhe faltaram na vida.
O analista se encontra no papel de objeto subjetivo, e este é necessário para que a transferência e contratransferência aconteçam. O vínculo precisa ser estabelecido para gerar confiabilidade nessa relação e, dessa forma, o paciente se sentirá "cuidado" como fora (ou não) por sua mãe (ou outro cuidador) ao longo de sua vida. A transferência é uma ferramenta que favorece o paciente na construção de uma experiência completa para encontrar o seu eu individualizado.
Marina apresentava um quadro clínico que tinha uma variedade de sintomas somáticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com forte intensidade, bem como a necessidade de uma elaboração para uma transcrição dos seus sintomas e uma ressignificação no seu modo de ver a vida. O corpo continuamente se manifestava, para seu desespero. Ora queimava, ora explodia de angústia, ora ficava num vazio ou outras vezes sufocava, e em muitas ocasiões era despertado "um desejo enorme de arrancar a dor das entranhas", relatava ela.
Em relação a essa questão, Winnicott, analisando ainda a relação psique-soma, diz que:
O colapso das defesas leva ao surgimento da ansiedade manifesta em diversos comportamentos. A doença psicossomática se manifesta em decorrência de uma fragilidade ou mesmo de um rompimento da relação psique-soma sendo caracterizada por múltiplos splittings, múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na sintomatologia, uma insistência na integração da psique com o soma, sendo isso mantido como defesa contra a ameaça da perda da união psicossomática ou contra alguma forma de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p. 424).
Constantemente Marina apresentava sintomas manifestando dores por todo o corpo. Eram verdadeiros espasmos que denunciavam o contínuo estado de tensão em que se encontrava. Junto com as dores surgiam ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada, como se pudesse lhe trazer algum alívio.
Cada emoção vivida tinha uma expressão no seu corpo. O medo, a insegurança, a excitação, o ódio se localizavam com excessiva facilidade em um órgão do corpo que entrava em espasmos. Não suportava muita tensão. O medo do amanhã vivia sempre a rondá-la, percebia que não tinha um lugar para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça a esquentar, o peito a explodir os excessos, as pernas a fraquejar e os pés a querer caminhar, procurando uma saída.
A baixa capacidade de simbolização da paciente associada à paralisia estagnadora e ao excesso de excitações — decorrentes tanto das vivências traumáticas quanto das fantasias da paciente — exigiam continuamente uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem essa tradução, era impossível dar um passo para sair da paralisia e do impasse, conseguindo posteriormente fazer novas transcrições no seu modo de viver.
Ao longo do processo desse acompanhamento vivemos momentos mutativos, vitais para que o processo caminhasse mesmo a pequenos passos: durante um bom tempo não era possível para ela se defrontar com todas as suas experiências emocionais, sob o risco de ser aniquilada. As emoções surgiam em muitos momentos, de forma avassaladora, tomando-a por completo. O medo da loucura e o medo de ser aniquilada sempre pairavam no ar.
O setting, cultivando uma qualidade de holding, para um cuidar das feridas de Marina e um aconchego para seu fortalecimento possibilitaram à paciente a construção de vínculos novos com o mundo, com as pessoas, com o trabalho, vitais para seu crescimento e sua transformação.
Conclusão
São muitos os aspectos importantes que puderam ser trabalhados com Marina no seu processo psicoterapêutico. Foi necessário que a analista exercesse a função de espelho olhando para Marina e refletindo para ela uma imagem com mais nitidez e amorosidade, ajudando-a a olhar o mundo com um novo olhar e cores mais vivas. Somente quando a criança olha o espelho-rosto da mãe e se descobre a si própria nesse espelho, ela poderá se permitir ver o novo e olhar criativamente o seu mundo.
Inicialmente acreditávamos que Marina apresentava um quadro depressivo. Posteriormente constatamos que seu quadro era bem mais complexo e que ela apresentava uma estrutura borderline requerendo cuidados mais refinados e um manuseio do setting se adequando às necessidades mais prementes dela. O olhar para a estrutura psíquica da paciente segundo as ideias winnicottianas favoreceu a instalação de uma relação transferencial propiciando uma boa evolução clínica com seu crescimento e desenvolvimento emocional.
À medida que o processo analítico evoluía com suas elaborações, o ego de Marina se fortalecia e, como resultado, passamos a observar uma mudança clínica. Houve uma modificação nas suas defesas, que passaram a funcionar de forma menos primitiva; a paciente não ficou se sentindo mais aprisionada e paralisada nos seus sintomas. O processo analítico forneceu à paciente elementos que não foram vividos anteriormente: uma maternagem suficientemente boa, um holding propiciador do descongelamento das situações traumáticas iniciais, saindo assim da paralisia vivida até então. O manejo no setting possibilitou o resgate da confiança, passando a dispor de mais recursos internos para o enfrentamento do mundo.
Marina se sentia sufocada pelas contingências da vida; era difícil dar conta das exigências tanto internas quanto externas, aumentando ainda mais os seus conflitos. Ela pôde construir na sua análise um caminho num terreno mais confiável. O vínculo estabelecido abriu espaço para novas relações no seu cotidiano. O setting analítico teve a função de transformação das suas dores, onde ela despejava as angústias de seu corpo travado e dilacerado. Ela foi, aos poucos, no seu processo, construindo novas imagens, refinando seus valores. A sua mente precisou formular novos caminhos e formas para fazer frente às adversidades que a vida lhe impõe.
Na situação analítica vivida, o setting foi facilitador de mudanças, e o processo analítico pôde ajudar a paciente a funcionar de forma integrada, permitindo que ela entendesse a sua organização e funcionamento somático e psíquico. Ocorreram muitas mudanças após um longo tempo de análise, relativas à sua sexualidade e à forma de enfrentar a profissão. Era tempo de calmaria, há quatro anos não retornava ao tema do abuso sexual. Todo o ódio vivido e elaborado no seu processo analítico foi apaziguado, deixando marcas profundas.
Entendemos que a transferência estabelecida no setting analítico está intimamente vinculada à qualidade da experiência afetiva estabelecida no curso da análise apontando para a qualidade do encontro afetivo.
A reflexão sobre a função do setting e do enquadre se mostram, assim, adequada e importante para que se avance pensando sobre esse importante dispositivo de tratamento no curso de uma análise. Concluímos, na prática, que precisamos estar atentos, em algumas situações clínicas, para a necessidade de promover mudanças no manuseio do setting a fim de obtermos uma resposta clínica mais favorável para uma boa evolução do processo psicanalítico.
Referências
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Endereço para correspondência
EPSI - Espaço Psicanalítico
Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar
58043-000 - João Pessoa/PB
E-mail: gloriacarvalhobarros@yahoo.com.br
Recebido: 11/09/2013
Aprovado: 29/10/2013
SOBRE A AUTORA
Glória Barros
Psiquiatra. Psicanalista. Especializações em psiquiatria, psicologia clínica/psicanálise, medicina psicossomática, homeopatia e psicoterapia somática/biossíntese. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e do Espaço Psicanalítico da Paraíba (EPSI-PB).