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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte dez. 2014

 

 

A transposição da vida sexual nos tratamentos psicanalíticos. O modelo da histeria morreu?

 

The transposition of sexual life at the psychoanalytic treatments. Has the hysteria model died?

 

 

Monique David-Ménard

Tradução: Leda Beirão

I Escola Freudiana de Paris
II Universidade Paris-Diderot

Endereço para correspondência

 

 


ABSTRACT

This paper brings basic contributions about present sexuality through a clinical case of obsessive neurosis. The author shows that in some instances of neurosis it’s necessary to summon the Name-of-the father as a restraining function to the excesses shown at current clinic.

Keywords: Contemporary sexuality, Present clinic, Excess, Obsessive neurosis.


 

 

Desde a era vitoriana caracterizada, dizem, por um interdito massivo e socialmente orquestrado, dirigido contra a realização plena da vida amorosa e sexual, nossa sociedade, a dos países do neocapitalismo poderia se resumir por “gozar e consumir”.

A permissividade do sexo, que a caracteriza na mídia, vem acompanhada do retorno de um moralismo combativo. A violência atuante nas relações sociais se radicaliza. Esses fatores levam à obliteração do que chamamos em psicanálise ‘a sexualidade na formação das individualidades humanas’: não só os atos sexuais ou a sexualidade dita psíquica, mas o campo definido pelas experiências de prazer, desprazer e de angústia, que são também experiências pelas quais se formam as singularidades humanas.

Há muito tento não usar mais a oposição do psíquico e do somático, que alimentou demasiados debates insolúveis sobre de que, afinal, se trata quando falamos de sexualidades. Defini, portanto, a sexualidade da seguinte maneira: a formação das singularidades no terreno do prazer, do desprazer e da angústia imprime sua marca em todos os campos da existência de um sujeito, seja ela de saber, seja ela de atos e, na antiga linguagem da psicanálise, de representações ou de afetos, de significantes ou de pulsões.

O que denominei vivências pode ser chamado também de experiências (em alemão Erlebnis pode se traduzir de duas maneiras)1 porque os desejos são polarizados por um excesso que pode ser destrutivo, se ele se realiza ignorando (quer dizer, não levando em conta) os obstáculos ou as limitações que encontra. O desejo – podemos definir, então, além do princípio do prazer – não tem limite natural. A maneira pela qual as interdições do incesto e do assassinato limitam a realização passa pela família e pelas pessoas cujos gestos e palavras intervêm diretamente nessa tendência excessiva de visar os prazeres e sua proximidade com a angústia.

O que chamei de tendência excessiva na busca do prazer implica que os indivíduos que se constroem nessas experiências não as dominam. Os filósofos sempre, e equivocadamente, assimilaram esse não domínio à irracionalidade, enquanto a novidade freudiana foi fazer a análise rigorosa desse excesso. Propor a junção sistemática entre as regras que formam os pensamentos do sonho e o excesso que habita nossas buscas de prazer caracteriza especialmente a psicanálise. Esse não domínio da parte do sujeito por aquilo do qual ele é constituído se realiza nas suas atividades tanto quanto nos seus pensamentos e se formaliza nos seus sonhos sem que ele possa guiá-los. Esse não domínio concerne também ao saber ou, antes, ao não saber que ele tem daquilo que o constitui. Na história da psicanálise, esse aspecto teve por muito tempo um papel relevante: aquilo que é sexualizado não somente é inconsciente, mas é o inconsciente.

Fazendo do inconsciente um substantivo, Freud e os psicanalistas que o seguiram quiseram insistir na separação entre si (soi) e si (soi), que implica a sexualidade no momento em que ela escapa ao domínio daquele ou daquela que ela forma. Falando de não domínio, antes de usar o termo “inconsciente”, quero insistir sobre aspectos diversos, não somente da ordem do saber e da verdade, dessa digressão. Essa é a razão pela qual no termo alemão que nós traduzimos por “transfer” em francês e por “transferência” em português, eu realço o aspecto da atuação Übertragung, e não somente o aspecto representativo.

Transposição implica uma mudança de espaço e, portanto, uma modificação relativa das condições nas quais se expande a via dos desejos: não tenhamos medo de fazer do tratamento uma das cenas do sexual, caracterizado pela prevalência instituída da palavra e pela interdição das realizações sexuais, o que mostra bem que incitamos os desejos a se exercer em condições um pouco diferentes das experiências comuns.

Enfim, se essa aproximação entre o passional de nossos desejos e as leis do pensamento do sonho pode ocorrer, é graças aos sintomas que se produzem na existência e na palavra: sintomas são entraves fatuais, produzidos pelo encontro do desejo excessivo com os recalques que tentam, frequentemente mal, limitar esse excesso.

Quando Lacan ([1964] 1973) definiu em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ele começa pelo inconsciente, que definiu na clínica como a ausência de si – esse fading característico do sujeito que fala a um outro desconhecido. Ele cita, em seguida, a repetição, a pulsão, a transferência. Mas no momento em que aborda a transferência, ele esclarece que se trata de um “retorno na transferência”, quer dizer, a tudo que ele formulou sobre o inconsciente e a significância do desejo, sobre a repetição e as pulsões, sobre o velamento (LACAN, [1964] 1973, p. 165) da falta interna na rede de significantes e da falta interna à pulsão que induz a função do objeto contornado pela pulsão. Tudo isso só tem sentido nas condições da transferência, “colocada em ato pela realidade do inconsciente” (LACAN, [1964] 1973, p. 137).

Quando Lacan aborda o primeiro conceito – o inconsciente – sua proposição é muito interessante. Lembrando os esquemas freudianos do aparelho anímico (seelisches Apparat), designa o inconsciente como aquilo que se produz e se situa “entre percepção e consciência, como se diz, entre pele e carne” (LACAN, [1964] 1973, p. 46).

Esse fenômeno do surgimento e da perda daquilo que acaba de surgir em favor dos lapsos, dos sintomas, dos atos falhos e dos jogos de palavra é induzido pela posição do analista que acolhe a transferência, ou seja, a transposição do desejo e da angústia no espaço de tratamento. Nesse seminário, Lacan é muito pouco normativo, porque ele tomou a transferência como produção daquilo que se repete graças às condições nas quais o desejo e a angústia são mobilizados. E ele toma mais de perto que “a sexualidade é estritamente consubstancial à dimensão do inconsciente” (LACAN, [1964] 1973, p. 133).

Hoje minha tese é a seguinte: quando expomos dessa maneira o que é a sexualidade, a questão não é definir o que regula os desejos, e não vemos como a sexualidade tal qual a prática analítica a convoca poderia estar ultrapassada.

 

Duas críticas muito diferentes da sexualidade

Caracterizada dessa forma, a vida sexual aparece como uma dimensão necessária da existência humana cujas manifestações entravam a vida ao ponto de que uma mulher ou um homem queiram se livrar dos sofrimentos ou das inibições que ela ou ele encontra. Dimensão que ocuparia um campo que se estende entre medicina e cultura. Por todo lado, elevaram-se vozes para dizer que a sexualidade assim concebida não era um dado inerente das sociedades.

A primeira voz foi a de Michel Foucault que considerava a era vitoriana não de repressão da sexualidade; ao contrário, a orquestração social que inventava sua importância. Por exemplo, nos “colégios” ingleses, da sociedade vitoriana, as interdições faziam o sexo interessante, impondo por todo lado um sistema de educação no qual o sujeito se lança aos desejos sexuais, desejos que davam mais substância a um saber de si quando as realizações de prazer eram suspensas. Foucault (1976) aproximou de início e muito rapidamente (La volonté de savoir [A vontade de saber]) o dizer do desejo à prática cristã da confissão. Em seguida, aperfeiçoou sua crítica da psicanálise fazendo desse dispositivo de sexualidade apenas uma das tecnologias de si que se instituíram nas tradições ocidental e oriental: o uso dos prazeres, o cuidado de si, a sabedoria articulada à arte erótica ligam de outra maneira prazeres, angústias, sociabilidade e pensamento que, pelo sistema das interdições, moldam o sujeito por sua culpabilidade. Perspectiva que será própria ao “dispositivo de sexualidade”.

É à superação do epistema dessa prática discursiva que nós assistimos? E qual foi o papel dos movimentos gays que, tendo lido Foucault, propõem a modificação das formas de vida, de preferência, a uma análise da sexualidade?

Antes de responder diretamente a essa questão pelo debate que eu tive alhures com Deleuze e Gattari no Deleuze et la psychanalyse: L’Altercation (2007), mais recentemente com Foucault no Eloge des hasards dans la vie sexuelle (2011) e ainda com Judith Butler em Sexualités, genre, mélancolie (2009), prefiro hoje contar como trabalho na clínica.

A questão de saber se os modelos psicanalíticos tradicionais são invalidados pelas nossas práticas e se a sexualidade teve sua época se colocará a partir daí. Da mesma forma, as discussões com os movimentos gays se coloca em termos diferentes a partir da clínica.

Foucault propunha uma análise crítica da sexualidade que fazia dela um sistema de enunciados (práticas e saberes) onde a positividade tinha limites temporais, como era o caso da mathesis universalis no século XVII (Les mots et les choses [As palavras e as coisas]) ou do “fragmento do suplício” como arte de punir antes da invenção das prisões (Surveiller et punir [Vigiar e punir]).

É surpreendente escutar os analistas proporem a ideia de que a sexualidade talvez chegue ao final. Charles Melman, em sua obra lançada em 2007, falava de um homem sem gravidade porque sem sexualidade, quer dizer, que não será mais constituído pela união entre o inconsciente (o fato de o sujeito estar preso na linguagem) com a consequente perda do ser e a questão de diferença dos sexos.

No que foi dito antes, liguei intimamente inconsciente e sexualidade. Melman, quanto a ele, começa pelo inconsciente, mas sem o ligar à transferência como fez o Lacan de 1964.

Esse homem contemporâneo para o qual a junção inconsciente e sexual não se fará mais, não somente sem gravidade mas sem lugar porque ele será abandonado pelas normas que ligavam nas gerações anteriores a falta-a-ser e a função paterna autorizando, assim, a sexualidade dos filhos, graças à metaforização dos desejos do incesto e do assassinato. Mas Charles Melman descreve esse homem sem gravidade em termos negativos. O quadro conceitual a partir do qual ele questiona a clínica parte sempre da distinção que, sem dúvida, Lacan usou e abusou, mas que é muito mais simples: distinção entre o desejo e a necessidade.

Não seria simplificação retórica invocar sempre a perda de parte da vida que o vivente vincula à linguagem e que viria se juntar à falta do objeto da pulsão sexual sem que compreendamos exatamente como a metonímia do desejo, que o objeto evita por princípio, se articula à perda concernente ao vivente do fato de que ele fale?

Sabemos pela leitura de Lacan e Winnicott que aquilo que Winnicott denomina “necessidades da criança” não é nada biológico, mas faz referência aos processos de ilusão e de desilusão que formam a própria experiência do tratamento e pelos quais se forma um ser humano sexuado.

Minha tese salienta que a sexualidade forma muitas das singularidades humanas, mesmo se as diversas hipóteses, que lhe dão sentido, sejam não verdades eternas mas teorias, submetidas ao mesmo tempo à discussão racional, à verificação e à invalidação no nosso campo experimental, que é o da clínica.

Charles Melman, que deplora que o homem psicanalítico não exista mais, que crê que nas novas patologias os objetos do desejo se tornaram meros objetos da necessidade, que lamenta que a apresentação (Darstellung) desses objetos tenha se tornado mais importante que a elaboração da ausência deles pela representação (Vorstellung), esse analista, entretanto, não se questiona de que, talvez, os analistas tenham raciocinado sobre uma base conceitual muito estreita que adquiriu, nos círculos psicanalíticos, papel de esquemas normativos e não mais de hipóteses para reagrupar e discutir a novidade dos fenômenos clínicos. Ele nunca se pergunta se as oposições conceituais de base pelas quais os analistas abordam os sintomas não seriam muito simples e inadequadas.

Antes mesmo de nos interrogarmos sobre os “casos-limite” e depois sobre uma eventual “perversão generalizada” na cultura do “consumir e gozar”, podemos afirmar a inadequação para a clínica de dados teóricos demasiadamente gerais.

Desde 1983, na L’hystérique entre Freud et Lacan,2 eu discutia a pertinência da abordagem da histeria por Lacan, que foi retomada por Charles Melman em 1984: reconduzir a insatisfação histérica ao desejo de tomar o lugar do pai morto, acedendo ao saber sobre o sexo; instalar o desejo do ser insatisfeito como recurso estrutural da histeria na leitura lacaniana do sonho da açougueira (Interprétation du revê [Interpretação dos sonhos]), isso integra diretamente a histérica a esse esquema segundo o qual só a função simbólica do pai permite aceder à falta-a-ser constitutiva do desejo na clínica e do fala a ser na teoria.

Não estou certa de que, ao reduzir os sintomas de conversão a uma lógica de signo que não alcançaria a significância do desejo, faríamos verdadeiramente justiça à busca por parte do histérico de um acordo impossível entre o gozo e o saber. Isso que se delineia há vinte anos é que, para escutar nossos pacientes e permitir uma transformação subjetiva, convém se desfazer dos esquemas teóricos prontos que pretendem unificar epistemologia do desejo e eficácia clínica. Dito de outra forma, é necessário se ater aos “quatro conceitos fundamentais da psicanálise”. Quando uma teoria se torna norma de escuta, ela impede os impasses da sexualidade de correr o risco de uma repetição.

É sempre tempo, se verdadeiramente a clínica for uma fonte de pensamento, de transformar os esquemas sobre os quais, equivocadamente, nos apoiávamos. Por exemplo, se outro dispositivo além do Nome-do-Pai permitir a um(a) paciente sair do impasse, por que não chamar de simbólico esse dispositivo, relativizando o valor das teorias sobre a função do pai e revendo o estatuto da linguagem que não é somente estrutura significante como acreditávamos?

 

Como pensamos o sexual na clínica?

Antoine Decitre poderia ser descrito sob a rubrica dos “obsessivos” conforme a primeira tradução do termo alemão Zwangsneurose, que atualmente substituímos por neurose de coerção. Sua vida, tanto de trabalho quanto sexual, se choca a inibições constantes. Ele diz viver razoavelmente bem, ter uma profissão universitária reconhecida e algumas relações amorosas no decorrer das quais afronta com angústia a impotência que o paralisa, pelo menos, no princípio da relação. Reconhece que suas atividades de pesquisa também estão como paradas, que ele se contenta com o mínimo o que pode, no final, comprometer sua carreira. A regularidade das sessões de análise transformou-as num rito entre ritos, do qual se trata também de poder emergir.

Ele é tão perspicaz quando fala de um sonho que tudo o que ele quer a propósito desse sonho é uma maneira de se distanciar do fato mesmo de ter sonhado. Por seu saber, ele pulverizou o desconforto que o sonho, no momento, o fez sentir. O analista é tentado a esperar passivamente que a violência contida na sua amabilidade tão constante se coloque em relação com uma suposta violência nas suas relações com o pai. Mas nada disso acorreu.

Um acontecimento da sua vida amorosa chamou minha atenção para a violência recalcada que se inscreveria dentro do esquema clássico do conflito edipiano: ambivalência na relação com o pai, obstáculo ao desejo pela mãe. Seu primeiro sonho durante a análise efetivamente colocava em cena sua culpabilidade. Ele fugia com um amigo porque tinha cometido um crime. Crime indeterminado mas que se acompanhava de uma cláusula suplementar: tinha roubado as orelhas dos pais. Ele se encontrava só, na prisão, estava condenado à morte e escrevia uma última carta aos pais, falando-lhes do seu amor.

Despertar... Que maravilhoso sonho edipiano, diríamos a esse, cujo crime se dirigia aos pais tomados em conjunto. Não adiantava, no tratamento, esperar que se manifestasse uma violência diretamente dirigida ao pai.

Como a verdade frequentemente ultrapassa a ficção, durante a análise ele se apaixonou e viveu durante certo tempo com uma jovem cujos pais tinham sido assassinados. Eu notava que sua impotência deixava de existir quando ele ia encontrá-la em outro continente, interrompendo a análise por algumas semanas. Ele respeitava tanto o sofrimento dela ligado à morte dos pais que aceitava, para não fazê-la sofrer mais – e por ciúme nesse caso – não rever seus amigos nem, sobretudo, suas amigas “de antes”, pronto a se separar de quase todos aqueles que contavam para ele. Durante esse período, ele teve muitos sonhos nos quais era sempre culpado, mesmo se não fizesse nada pelo qual sua amiga pudesse reprová-lo. Ele não podia se justificar diante dela – sua culpabilidade estava além da razão. Para ele era de certa forma mais confortável se sentir culpado sempre. Esses sonhos lhe permitiram, no entanto, dar conta de como a situação lhe era insuportável.

Nesse período em que se expunha às reivindicações violentas de sua companheira, ele falava muito, e dessa vez sem intelectualização, do fato de que não suportava ser para alguém a causa ou mesmo a ocasião de um sofrimento.

Eu assumo a culpa por tudo de que Flore me recrimina. Mesmo se não há nada mais entre mim e Isabelle faz tempo, quando Flore me acusa, de todo modo, sou culpado e prefiro desaparecer da sua vida.

Não lhe passava despercebido que esse cenário de culpabilidade era também uma maneira eficaz de se distanciar da Isabelle. Culpabilidade, portanto, transformada em masoquismo de exclusão, que não se organizava segundo o esquema rígido de uma rivalidade edipiana. Era isso que ele repetia no tratamento falando sem parar, fazendo como se não se dirigisse a ninguém nas sessões. Para ele seria pedir muito que o analista estivesse presente e existisse por sua escuta. A transferência foi vinculada ao retraimento generalizado que tinha marcado sua adolescência. Era inesgotável o terror – sempre presente – que lhe inspirava a avó materna, que tinha perdido sucessivamente o marido e o filho em circunstâncias trágicas. Ele “sabia bem” que sua relação com o sofrimento vinha do poder exercido pela avó que lhe incumbia de compensar todos seus pesares, mas isso não mudava em nada suas inibições.

O importante na repetição transferencial é o seguinte: a pessoa que o escutasse não deveria figurar no programa do tratamento. Isso possibilitava, paradoxalmente, minha intervenção concernindo a ouvinte indeterminada da qual ele necessitava para não sair do esconderijo. Em resposta a minha intervenção, evoca palavras de sua mãe que o tratava de “carniça” quando ele ficava insuportável e fazia coisas perigosas e excessivas. Pois ele não tinha sido sempre esse homem retraído. Datava da adolescência o momento em que não acompanhava mais os companheiros, persuadido que não saberia jamais o que fazer com as meninas, nem desenvolver seu corpo como eles. Nessa época começou a investir no trabalho intelectual, compatível com seu retraimento.

Um acontecimento inesperado, no entanto, lhe ocorreu: um dia, para afirmar sua presença de menino junto a uma companheira de classe, se plantou diante dela no pátio do recreio e lhe disse todos os desaforos que conhecia. Desde a escola primária, ele sempre tinha considerado as mães que esperavam os filhos à saída da escola umas fofoqueiras “esquadrinham merda”. No dia seguinte, na saída de escola, a mãe dessa menina o chamou de lado e lhe repreendeu, “passou um sabão”. Com os olhos de hoje, ele considera que ela agiu corretamente: de fato, ela o chamou à parte sem divulgar a questão para sua família, nem às outras crianças do pátio do recreio.

Não impede que as mães da saída da escola sejam fofoqueiras. Eu queria apenas afirmar a Cécile que eu gostava dela. Desde então não me importo mais com nenhuma mulher.

Na verdade não é exato quando digo que essa lembrança lhe voltou inesperadamente. Depois da minha intervenção sobre “falar com ninguém”, ele teve o seguinte sonho: ele mastigava um cartucho de tinta, deixando correr tinta pela garganta. Diante dele estava um colega, um pouco mais velho, mas que tinha um percurso de pesquisa satisfatório. No momento em que o colega se surpreendia com o seu gesto, ele diz no sonho “Sou completamente louco”. Na sessão, ele fala, então, de seu exibicionismo. Diz que se envergonha de ser surpreendido em uma cena tão boba: “Como se eu fosse o idiota da aldeia”.

Escutando-o, eu pensava nas páginas de Sartre sobre Flaubert, nas de Deleuze sobre a idiotice, nas de Foucault, nas de Lacan. Sabemos que etimologicamente um idiota é um ser encerrado em uma posição limitada e muda, que pertence somente a ele. O contrário da uma singularidade. Depois, Antoine atravessa uma crise violenta de hipocondria que o subjuga sem que se desse conta de que aquilo pudesse ter relação com a lembrança das “mães fofoqueiras” ou com sua escolha de uma analista-mulher. Ele tinha hemorroidas, se sentia exausto e acreditava estar gravemente enfermo. “Talvez seja seu sonho que o fatigue ao extremo”, lhe disse. Ele escutava educadamente minhas palavras quando eu o reconduzia ao sonho, mas estava transtornado – eis o excesso, no caso – pela convicção de estar gravemente doente. Seu clínico geral, ao ver o resultado dos exames prescritos (era uma mulher), lhe disse: “Não estou preocupada com você”.

Ele tampouco acreditou nela, mas nesse momento um episódio novo na sua vida profissional lhe permitiu ao mesmo tempo o reconhecimento de seu gozo passivo e sua transformação: um conflito violento envolvia vários colegas e, em vez de fugir como de costume, ele interveio na violência do conflito e ficou surpreso de que lhe agradecessem calorosamente por ter criado uma saída para a crise. Imediatamente esqueceu a angústia de estar enfermo, surpreso de ter saído da inibição usual com a intervenção ao mesmo tempo violenta e eficaz no conflito. Ele trouxe de volta, na análise, o fluxo de impropérios que tinha sido sua maneira, quando menino, de se colocar perante uma menina. A única maneira que dispunha, então, para estar lá, para afirmar sua presença.

Podemos sempre dizer, na escuta desse paciente, que lhe faltou um pai mais vigoroso que o fizesse sair de seu aprisionamento no gozo materno e no da avó. E que a analista – mulher ou homem, pouco importa – estava em posição de pai simbólico. Mas em nome de que gostaríamos de impor determinada norma de subjetivação, que a escuta clínica não exige? O gozo desse homem se desenvolve conforme um cenário efetivamente passivo, mas não era a rivalidade edipiana nem o esquema da castração simbólica que o faziam sair.

A seguir do sonho, ele falou muito dos lápis que seu pai, empregado em uma papelaria, lhe oferecia encorajando, assim, seus talentos de pintor e desenhista. Mas ao mesmo tempo, é o poder próprio do “sonho do cartucho de tinta escorrendo dentro da garganta” que lhe permitiu, nesse momento da sua análise, se reconhecer na sua passividade.

Até então ele o admitia intelectualmente, com a condição de não se imaginar no “gozo de idiota”. E esse reconhecimento – eis o processo da análise – se identifica com a invenção em outra cena, a das relações sociais, de uma saída desse gozo até então aprisionado nos sintomas de fuga e de impotência.

Quando essa transformação se produziu, notemos que interveio de forma contingente uma ocasião, um fator aparentemente independente, mas que permite que se invente a transposição do sintoma que ao mesmo tempo utiliza um aspecto de sua história ligada ao social – o trabalho do pai – e alcança a se transpor para realidade social atual: o conflito dos colegas – alheio a ele – mas no qual ele intervém.

Esse papel do fator contingente, tomado da realidade e por si-mesmo sem conexão com o sintoma mas que transforma, graças à transferência, o real em sofrimento no sintoma, me fez escrever no Eloge des hasards dans la vie sexuelle [Elogio do acaso na vida sexual], que o analista é menos um “sujeito suposto saber”, conforme expressão de Lacan, que um conector, graças a quem se faz a ligação entre espaços de existência até então cuidadosamente separados pelo gozo – no presente caso –+ o gozo mudo de um “idiota”.

Que esses fatores contingentes sejam emprestados da realidade e que, graças a eles, o real ou seja, o traumático do sintoma, encontra para se transportar, mostra também que não há de um lado um sujeito e ao exterior dele uma realidade social ou relações de poder que, às vezes, cruzam os desejos. Desse ponto de vista, mesmo se Deleuze e Guattari, no l’Anti-Œdipe O anti-Édipo erraram ao construir o social e o político a partir unicamente dos fluxos de desejos, eles tiveram razão ao afirmar que o desejo não era uma interioridade nem um “psiquismo” independente da realidade social que lhe seria exterior. Eles têm razão de colocar um fim ao psicologismo e ao pressuposto da extraterritorialidade da psique em relação ao social e ao político. Mas como esse exemplo permite precisar, a conivência do social e do desejo é paradoxal: ela requer um momento de contingência (não de exterioridade) que, único, permite transformar o que se encontrava paralisado “dentro” do sujeito a quem, erroneamente, creditamos uma interioridade.

Os sintomas podem se resolver pela intervenção de fatores tomados emprestados da realidade aparentemente exterior ao desejo, mas do qual o desejo, em sofrimento na repetição transferencial, consegue se servir para se transportar. O sonho do cartucho de tinta toma emprestado um objeto que pertence à profissão do pai, empregado em uma papelaria. Esse objeto é ao mesmo tempo social, paternal e integrado no cenário do gozo do qual Antoine Decitre vive até então de forma congelada.

Qual é exatamente a função desse objeto? O objeto não é único em si mesmo. Ele faz parte de um cenário erótico que faz comunicar pelo menos três zonas erógenas: sua boca, seu ânus, um pênis, talvez. Deveríamos acrescentar o olhar que circula entre o colega e ele? Não exatamente, porque nada no sonho indica que a presença desse homem se produz no elemento do olhar. Mais que o olhar, é a palavra do colega que o desentoca do gozo e é a pesquisa científica, objeto comum aos protagonistas do sonho, que faz parte do circuito pulsional: uma e outra característica tecem a presença (Darstellung) mútua desses dois pesquisadores.

Já me ocorreu muitas vezes lhe perguntar: “Mas como você se tornou um pesquisador? Não estava previsto na sua história!”. Ora, até esse período da análise essa posição de ignorância que eu tinha tomado restara sem efeito. Ela não se coadunava a sua “idiotice”; o que o sonho, no momento, efetuava. O objeto “cartucho” condensa de modo até então mudo o que para esse homem é o mais inassimilável e o mais importante na sua vida. A atividade pulsional não isola em si mesmo o objeto que faz parte de uma cena erótica complexa. Ele bebe a tinta da caneta por um movimento ativo dos lábios e dos músculos da boca, o que não pode deixar de fazer pensar na sucção de um bebê. No momento em que se dá conta, ele fica horrorizado. Foi exatamente isso que o horrorizou quando ele se deu conta do fato. Mas não se tratava de um retorno a um gozo de bebê: a indeterminação do detentor da caneta (o colega pesquisador, ele mesmo ou a analista “esquadrinha-merda”) inscreve a cena em outro modo pulsional, epistemofílico.

Além disso, a maneira anal de participar do sonho (as hemorroidas) inventa outro compromisso entre a atividade e a passividade, mais ligada à lembrança das “mães esquadrinha merda” (entre as quais a analista). Um resumo da história da sua sexualidade, de certa forma! Esse gozo privado concerne ao que Lacan às vezes denominou “um sujeito acéfalo”, ou seja, dotado de uma capacidade de invenção singular e pessoal, tudo sendo aparentemente anônimo como os circuitos pulsionais. Ora, esse gozo privado é o elemento mais ligado às relações sociais, tanto pelo elemento referido ao trabalho do pai quanto pela iniciativa atual de Antoine Decitre, possibilitada pelo fato de que ele aceitou, no presente, reconhecer-se no seu “gozo de idiota”.

Para ficar no vocabulário de Lacan, é esse processo que ele denomina a queda do objeto a na análise. É porque uma transformação está em vias de se produzir que sua maneira de gozar inventa um sonho, que se trata de revelar à analista, mas no princípio, não se entende nada... Os recursos da linguagem em matéria de ambiguidades e de significância permitem esses acordos, ao passo que o ato de superar a inibição foi a audácia de ter o sonho. Que isso possa também ser dito é solidário desse ato.

É vão se perguntar se o que prima é o caráter linguageiro e significante do sonho no tratamento ou se é a reorganização pulsional. O poder de uma análise se atém a um registro onde não temos mais que fazer essa distinção. E esse momento só pode surgir se o analista se desfaz das supostas normas do desenvolvimento psíquico.

Antoine Decitre tinha sintomas obsessivos, mas não respondia ao esquema de um obsessivo tradicional. O que foi eficaz nesse tratamento foi, ao mesmo tempo, que ele tenha podido repetir sua fuga sem que o analista se impacientasse muito e que, chegado o momento, quando ele repetiu até a saciedade, o analista pode nomear aquilo que estava por trás da repetição.

O inconsciente não se liga unicamente ao sexual pela função normatizante da função fálica e pela vivência bem atravessada da diferença dos sexos concebida como única experiência útil. O analista não é nem pai simbólico, nem mãe menos adoecedora. É a junção entre a repetição do pulsional e a escuta que é eficaz e permite a criação do sonho no qual o sonhador retorna sobre aquilo que ele havia excluído.

 

Conclusão

Espero ter mostrado que, mesmo nos tratamentos comuns e não somente nos das psicoses ou novos sintomas, invocar o Nome-do-Pai como função limitadora do excesso que impede o acesso ao gozo suportável ou invocar sua ausência como causa do sintoma simplifica o panorama e não faz mais que avaliar os processos de tratamento por norma estrangeira. Talvez a sexualidade, mesmo na Era Vitoriana, tenha sido colocada em ação por outros processos além do “dispositivo da sexualidade”, ou o Nome-do-Pai como única solução aos impasses dos quais os sintomas testemunham.

Será que eu deveria ter me lançado na polissemia da palavra “cartucho”? Um cartucho é tanto um tubo de vidro ou de plástico que contém tinta para uma caneta como aquilo que se introduz em um fusil para que se possa atirar. Eu poderia construir uma teoria na qual o animal em que se devia atirar seria o pai, enfim confrontado como em Totem et tabou. Um cartucho é ainda um recurso final para ganhar em uma prova difícil “um último cartucho”.

Mas fazendo isso, eu não me daria conta do processo mesmo da análise. Eu sobrecarregaria a ocorrência do tratamento com uma teoria geral do desenvolvimento psicossexual ou da castração simbólica. Fazendo isso, eu perderia o que nos aporta a clínica da psicanálise:

1. Para o pensamento: uma nova relação do real do sintoma com a realidade contingente do qual esse real do sintoma necessita para se transformar, ou seja, o pensamento da ocorrência.

2. Para a ética: apesar de não gostar muito desse termo, frequentemente empregado para reinstalar a análise como norma: o processo do tratamento é uma das experiências que nos libera de toda moral, justamente porque os sintomas podem encontrar aí sua própria transformação. Eu ficaria tentada a dizer de modo imanente (como Deleuze) se a estranheza do ‘outro-analista’ e a contingência daquilo que move elementos traumáticos não tivessem aí um papel decisivo.

3. Às concepções ideológicas do sexo, quer sejam ligadas à norma da diferença dos sexos ou, ao contrário, à máquina de guerra das práticas sexuais que atacam esta última. Porque a clínica mostra que, no tratamento, pela superação do recalcamento da sexualidade infantil – que não é a sexualidade da infância – uma existência se transforma. Repetimos, a partir de Freud, que o inconsciente ignora a diferença dos sexos, mas raramente levamos isso em conta: de fato, quando são convocadas as pulsões parciais, a questão da sexuação reinventa as formulações utilizando, para isso, materiais a partir dos quais a questão da sexuação se cristalizou nos sintomas. Desse ponto de vista, não se fará mais a apologia, por exemplo, das formas anais da sexualidade “contra” as formas fálicas. Não há que idealizar tal pulsão parcial antes de outra. Há aí uma questão a ser reaberta.

 

Referências

LACAN, J. Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris, Seuil, 1973.         [ Links ]

MELMAN, Charles. L’homme sans gravité. Paris: Denöel, 2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
29, Place du Marché St. Honoré
75001 Paris
E-mail: mdm01paris@aol.com

Recebido: 20/10/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta em filosofia e psicanálise. Doutora em psicopatologia clínica e psicanálise, sob a orientação de Pierre Fédida (1978), Universidade de Paris 7. Doutora em filosofia, sob a orientação de Jean-Marie Beyssade (1990), Universidade de Paris 4/Sorbonne-nouvelle. Membro da Escola Freudiana de Paris (1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade de Psicanálise Freudiana desde 1994. Títulos e funções atuais: psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise Freudiana; professora emérita de cadeiras superiores; orientadora de pesquisa da Universidade Paris-Diderot, Escola de Pós-Graduação. Membro da Rede Internacional de Mulheres Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.

 

 

1 É o termo usado por Freud no l'Esquisse d'une psychologie scientifique: das Anfangen der Psychoanalyse. London: Imago Publishing, 1950. p. 325.
2 Tradução brasileira A histérica entre Freud e Lacan. São Paulo: Escuta, 2001.

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