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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.42 Belo Horizonte dez. 2014
O direito se lê como campo de gozo: o caso jurídico como caso único e a clínica no laço social
The law read as a field of jouissance: the legal case as unique case and the clinic in the social bond
Walter Rodrigues Filho
I Universidade Católica de Salvador
RESUMO
A relação entre direito e psicanálise é tratada de modo discursivo e operacional. A psicanálise é usada como operador de leitura de um campo discursivo, segundo as premissas lógicas, éticas e topológicas da psicanálise lacaniana. O direito não é reduzido ao aspecto normativo. O direito se lê como um campo operatório estruturado discursivamente – um campo de gozo, que ex-siste em ato, a partir dos diferentes discursos jurídicos, um a um. O caso jurídico, concebido como caso único, se estrutura a partir do sinthoma jurídico, sendo correlato da père-version, como produção discursiva, e condição da clínica no laço social, uma clínica de discurso que faz ex-sistir o analista, só depois, como aquele que lê topologicamente.
Palavras-chave: Direito e psicanálise, Campo de gozo, Operador de leitura, Père-version e sinthoma jurídico, Clínica de discurso e laço social.
ABSTRACT
The connection between Law and Psychoanalysis is treated in a discursive and operational mode. Psychoanalysis is used as a reading operator of a discursive field, according to the logical, ethical and topological assumptions of the lacanian psychoanalysis. Law is not reduced to normative aspects. Law is read as a discursively structured operating field - a field of ‘jouissance’, which ‘ex-sists’ in act, from different legal discourses, one by one. The legal case designed as unique case is structured from the legal ‘sinthome’, being correlated to the ‘père-version’, as a discursive production, and a condition of the clinic in the social bond, a discourse clinic that makes ‘ex-sist’ the analyst, afterwards, as the one who reads topologically.
Keywords: Law and psychoanalysis, Field of jouissance, Reading operator, Père-version and legal sinthome, Clinical discourse and social bond.
A relação entre direito e psicanálise é aqui tratada a partir da seguinte questão: como usar a psicanálise enquanto operador de leitura (LACAN, 1985, p. 39 e seg.; LACAN, inédito [1974-1975], aula de 14 jan. 1975) de um campo discursivo – no caso, o direito? Entende-se que não se trata de opor aprioristicamente os dois campos, nem se trata de uma abordagem metalinguística (ou seja, falar sobre o direito, a partir da psicanálise e de sua semântica), e sim de uma abordagem discursiva e operacional, segundo as premissas lógicas, éticas e topológicas da psicanálise lacaniana. Trata-se de inscrever uma clínica de discurso, que lê o direito a partir de suas operações, fazendo do campo jurídico um campo operatório estruturado discursivamente – um campo de gozo (RODRIGUES FILHO, 2007c; RODRIGUES FILHO, 2007a; RODRIGUES FILHO, 2007b),1 que ex-siste em ato.
O direito como campo de gozo tem existência em sua práxis e em seu funcionamento discursivo, e não como um conjunto pressuposto de normas, indivíduos, valores ou instituições.
Não é o caso, pois, de afirmar ou (de)negar o direito (na suposição de que ele tem um estatuto predeterminado, anterior às suas operações), mas de ler o campo jurídico em seu funcionamento, através dos atos de fala e modos de dizer inscritos pelos operadores do direito, um a um. Tais operadores, no ato mesmo de suporem2 possível uma descrição ou compreensão correta do direito, inscrevem uma razão, constitutivamente enganada, que funciona e produz efeitos de gozo e de poder, fazendo ex-sistir a verdade do sujeito de direito – um sujeito de discurso, ser falante – em torno do furo que estrutura o campo jurídico.3
O campo do direito se estrutura assim como um discurso a-científico. Trata-se, a partir do objeto a da notação lacaniana, de um discurso em que a alteridade e o vazio lhe são constitutivos; não se trata de um discurso que se opõe ao discurso jurídico ou ao discurso científico, já que a psicanálise, em sua práxis discursiva, opera em relação ao sujeito da ciência (LACAN, [1965] 1998, p. 873) (ou do direito)... que se escreve e se lê. Pode-se dizer do que chamo aqui de discurso a-científico o que Lacan diz de alíngua ou do discurso analítico: de tal discurso “[...] há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro” (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 26). O discurso a-científico, antes de se opor, condiciona a ex-sistência dos diferentes discursos jurídicos, um a um, e com isso inscreve o vazio constitutivo da razão jurídica.
É essa razão jurídica – uma razão discursiva e pragmática (LACAN, 1985, p. 26; LACAN, [1974] 1986, p. 28; COSTA, 1980, p. 2, 42)4 – que faz existir efetivamente a carta constitucional. A carta e o direito ex-sistem e se escrevem com letras, uma a uma. As letras usadas pelos operadores do direito e pelos cidadãos situam o ser falante em uma posição discursiva e produzem efeitos ex-cêntricos – políticos, sociais, econômicos, culturais, éticos etc. –, fazendo ex-sistir, só depois, o sistema ou conjunto jurídico5. Trata-se de um conjunto descentrado (ou diz-centrado) das oposições apriorísticas tradicionais: normal/patológico; ciência natural/ciência humana; sistema fechado/sistema aberto. O fechamento do sistema jurídico se faz operacionalmente e, enquanto tal, funciona como condição de sua abertura (LUHMANN, 200-, p. 384 e seg.) e ex-sistência (LACAN, [1972] 2003, p. 473),6 inscrevendo, por efeito da letra, um modo de dizer e de ex-sistir contingente, que enoda topologicamente direito e poder (LUHMANN, 200-, p. 384 e seg.).7 Ou seja: da mesma forma que o significante se articula ao gozo (LACAN, 1992, p. 44 e 169; ver ainda GERBASE, 2006), os modos de real-ização do direito constituem modos de exercício do poder,8 em uma articulação topológica, que se escreve e se lê.
O direito é o que se lê9... e o que se lê não são os conteúdos ou ditos jurídicos, e sim essa articulação topológica, que estrutura (LACAN, [1972] 2003, p. 485; LUHMANN, 200-, p. 384 e seg.)10 o campo jurídico, em ato – o ato de usar e dizer discursivamente o direito. Não existe, portanto, o último fundamento jurídico, anterior a sua ex-sistência discursiva. Nem existe hierarquia a priori entre as normas jurídicas ou entre os direitos fundamentais – assim como não há hierarquia a priori ou metadiscursiva entre os Nomes-do-Pai ou entre os três registros, porque Há Um, na função de 4, como ato discursivo, um a um, que enoda e inscreve o sinthoma (LACAN, inédito [1974-1975], aulas de 11 e 18 mar. 1975; LACAN, 2007, p. 21 e seg e 50 e seg.; BADIOU, 1994, p. 102; VIDAL, 1993, p. 43).
Os direitos (ditos) humanos ex-sistem como fundamentais, justamente porque funcionam, um a um, como fundamentos da argumentação e decisão jurídica, inscrevendo, em ato, a a-nomia estrutural ao campo jurídico. Essa a-nomia não é o resultado da falta, insuficiência ou ilegitimidade da lei, mas efeito da lei, efeito da norma e dos modos discursivos de operar e dizer o direito, em uma estrutura que admite a positivação de critérios ou fundamentos de decisão incompatíveis, ponderáveis caso a caso.11 A a-nomia, portanto, não significa mera falta (ou in-determinação semântica) do todo. Ela institui a père-version como correlata da lógica do não-todo e, com isso, inscreve o ato de nominação e de de-cisão, em um campo discursivo.
A ênfase, portanto, não é colocada no direito escrito em sua origem – por um suposto poder constituinte originário –, nem no seu desenvolvimento linear (no sentido de um suposto consenso social), já que o direito, ao se realizar, desloca a linearidade do esquema temporal passado-presente-futuro: ele se escreve e se real-iza em ato, em um tempo atual... literalmente.
Há Um ato discursivo, por efeito da letra, que produz furo e inscreve o sujeito de direito como um sujeito sinthomático, responsável por suas posições discursivas, posições de gozo e de poder. A inscrição desse sujeito sinthomático é discursiva e funcional: ela funciona como condição de uma clínica social, entendida aqui não como clínica do social, mas como uma clínica de discurso, uma clínica no laço social (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 110; LACAN, [1972] 2003, p. 475), que ex-siste através dos atos de fala dos operadores do direito, um a um, produzindo o caso jurídico como caso único.
O caso jurídico se escreve e se lê como caso singular, único, em torno do sinthoma jurídico que o estrutura.12 O caso jurídico não tem uma existência empírica imediata, nem existe em conformidade com a Norma (então pressuposta como suscetível de aplicação), já que ele se real-iza e ex-siste como produção discursiva, em um contexto jurídico-argumentativo, através da mediação dos discursos e modos de dizer jurídicos.
O caso jurídico como caso único: a père-version como produção discursiva e o dispositivo jurídico
A definição do caso jurídico como caso único repercute, por exemplo, na definição do crime ou da perversão. O crime e a perversão constituem efeitos de discurso, não podendo ser identificados imediatamente a um indivíduo ou a um fato. A norma não se aplica imediatamente à pessoa ou ao in-divíduo dito marginal, já que o dispositivo jurídico faz ex-sistir a conduta criminosa, o ato criminoso, através da mediação discursiva: o crime e a perversão ex-sistem, em ato, através do uso discursivo das normas e dos procedimentos jurídicos.
A procedimentalização do direito, presente nas diferentes áreas jurídicas e de implementação de políticas públicas (como mostram os exemplos cotidianos de gestão da saúde, bolsa família, segurança pública, educação, PAC, etc.), faz dos direitos fundamentais, direitos condicionados discursivamente, que requerem decisão para sua ex-sistência: mesmo o estatuto da vida humana é um f-ato discursivo... e real e, por isso mesmo, impossível.13 Os direitos fundamentais não são naturais, ideais, absolutos ou essenciais, nem possuem objetividade normativa, senão por efeito de uma pretensão ou suposição do ser falante, que o inscreve em uma posição discursiva. Os direitos fundamentais ex-sistem através do dispositivo jurídico, entendido como um campo discursivo, dotado de corpo: não simplesmente um campo de linguagem, mas um campo de gozo, ou seja, os mecanismos e procedimentos jurídicos se estruturam como procedimentos de gozo e de poder que modulam a decisão; a constituem, só depois, como uma de-cisão radical, em seu modo de dizer. A de-cisão jurídica, que faz a justiça ex-sistir como justiça contingente (LUHMANN, 200-, p. 173), em ato, é correlata de uma práxis discursiva regulada pela ética do bem-dizer (LACAN, [1970] 2003, p. 539), o que coloca a questão da responsabilidade do ser falante (FORBES; REALE JR; FERRAZ JR, 2005, p. 81; cf. FORBES e p. 101, cf. FERRAZ JR).
Ora, com isso a sociedade contemporânea não se define nos termos do discurso do capitalista (Lacan) ou do relativismo pós-moderno, que pressupõem uma ética normativista. A sociedade contemporânea ex-siste, a cada ato de dizer, como uma sociedade radicalmente atual, condição da democraci-a. Ela se atualiza e se real-iza através da mediação discursiva e, em particular, a mediação do campo do direito, constitutivo do sinthoma jurídico e do impossível de se dizer, no dizer. É por isso que a decisão jurídica não é simplesmente uma decisão sobre o que é ou não é o direito, e sim uma decisão sobre o modo de proceder e decidir (ALEXY, 2010, p. 87 e seg., 172 e seg.; FERRAZ JR., 2001, p. 309) – decisão sobre o modo de dizer e fazer ex-sistir o direito.
Não se trata, portanto, de denunciar a crise do direito ou o declínio da metáfora paterna, já que tais denúncias se sustentam na im-potência e, pois, na possibilidade mesma de uma função simbólica capaz de ordenação do gozo, então imaginarizado. A im-potência não vale senão enquanto uma posição discursiva entre outras e, pois, condição do impossível de se dizer, no dizer. Na práxis discursiva, a afirmação de que o Outro não existe se escreve e se lê operacionalmente, nos termos das premissas lógicas, éticas e topológicas da psicanálise lacaniana: o Outro ex-siste. A metáfora paterna ex-siste. A perversão ex-siste como père-version, como produção discursiva, através dos atos de fala, um a um, que condicionam a de-cisão jurídica com os efeitos ex-cêntricos que produz.
Na perspectiva da nossa abordagem, a chamada perversão generalizada14 é entendida de modo radical: ela é constitutiva do mal-estar na cultura como estrutural (FREUD, [1930] 1974, p. 116-117, 170; ver ainda SANTOS, 2014, p. 21 e seg. e BOBBIO, 2004, p. 42-4, sobre o problema da realização dos direitos humanos); é constitutiva da a-nomia, da qual falamos, sendo condição da definição da estrutura, do geral, como constitutivamente furado e, pois, condição da responsabilidade do ser falante. Ela não significa a falta ou falha da normatização, nem a instituição da norma como degenerada, que tudo admite, justamente porque coloca a questão do impossível de se dizer, no dizer, que é correlata da ex-sistência da père-version como ato discursivo. Afinal, Há Um ato discursivo, que se escreve e se lê.
Se a perversão (ou o crime) não tem existência imediata nem caracteriza imediatamente a passagem ao ato, é porque para sua constituição é necessária a mediação discursiva, em um contexto jurídico-argumentativo específico, o que faz do caso jurídico um caso único. O caso único se articula à père-version jurídica e é por isso que ele não pode ser dito de difícil ou fácil interpretação, de modo a priori. A questão fundamental não é mesmo de interpretação, mas de literalização discursiva: a inscrição do limite entre caso fácil e caso difícil se dá, em ato, e importa a função da letra, ou seja, importa a ex-sistência de uma posição discursiva e argumentativa que condiciona a de-cisão jurídica.
A construção discursiva da perversão não precisa, aliás, aguardar o funcionamento do dispositivo jurídico. Ou ainda ela se realiza mesmo quando o funcionamento do dispositivo jurídico se produz articulado a um não funcionamento. Seja porque a não decisão é um modo de produzir de-cisão; seja porque o dispositivo jurídico, se não é causado, se faz atravessado, furado pela inscrição discursiva de outros mecanismos sociais. A mídia, por exemplo, produz (ou não) um fato como perversão ou crime, segundo as estratégias utilizadas na redação e divulgação do relato, dentre as quais a decisão quanto à seção em que o inscreve: política, econômica, esportiva, cultural... ou policial.
A perversão e o crime, em suma, o sintoma social não existe, pois, como evidência empírica ou como resultado imediato da compreensão geral da sociedade. O sintoma social se faz único, porque ex-siste, só depois, através da sua inscrição em um dispositivo discursivo. Essa ex-sistência sinthomática condiciona a clínica social, fazendo dela uma clínica de discurso, uma clínica no laço social.
A clínica no laço social: leitura topológica e ex-sistência do analista
A clínica no laço social inscreve o caso único e a ex-sistência do analista. A constituição do caso como caso único não decorre do ser do analista, do seu reconhecimento (jurídico, social ou institucional), nem da semântica que utiliza, mas do modo como opera e relata o caso... que se escreve e se lê. O relato do caso faz ex-sistir o analista (na posição de analista). Ele funciona como passe, passagem à posição de analista: ele produz, só depois, em ato, a ex-sistência do analista, como aquele que lê, segundo as premissas lógicas, éticas e topológicas da psicanálise lacaniana.15
Tome-se, por exemplo, o relato de um caso que envolve a ex-sistência de um sujeito em um contexto de supostas práticas ilegais na administração pública (através de atos institucionais de autoridades e funcionários... que a corrompem e privatizam, só depois). Tal relato não há de se basear em uma estrutura que opõe o dentro e o fora, o crime e o não crime. Não se trata de simplesmente descrever que o indivíduo saiu (empiricamente) da situação em que se encontrava. Afinal, para o sujeito sair... ele há de entrar (discursivamente) no dispositivo analítico, ou seja, ele há de formular uma questão que o implique na produção do seu sintoma, no mal que o acomete (LACAN, [1958] 1998, p. 602, se reporta a Freud; ver ainda VILLALBA, 2005).
O relato de um caso como caso único há, portanto, de mostrar as operações relacionadas a esse efeito topológico, como condição para que o analisante, enquanto ser falante, se analise16 e possa saber fazer, aí, com o sintoma (LACAN, inédito [1976-1977], aula de 16 nov. 1976).17 A ênfase está no relato do modo discursivo de proceder, e não na descrição tipológica do sintoma (obsessivo, histérico, fóbico, ‘novos sintomas’, etc.) ou na descrição do resultado supostamente objetivo e eficaz do tratamento.
Tais descrições, que reproduzem a estratégia de relato dos modelos gerenciais de gestão e das diversas terapias (de base psicanalítica, humanista, cognitiva, tanto faz), desconhecem aquele efeito topológico e de implicação do sujeito, que inscreve o ser falante em uma situação atual e complexa, discursivamente condicionada, subvertendo a oposição entre crime e não crime.18
É isso (que se lê, topologicamente): o sujeito pode (discursivamente) sair (mudar de posição, colocando-se na posição de sujeito)... dentro do crime (empiricamente) (por exemplo, quando analisa a situação em que se encontra para decidir como agir e inclusive como sair de contextos que envolvem práticas criminosas, diante de condições muitas vezes incompatíveis: recursos econômicos, segurança pessoal e da família, prestígio, preceitos normativos, amizade, anseios de liberdade e de exercício de uma profissão, etc.); assim como pode (discursivamente) manter-se dentro, ainda quando sai (empirica ou normativamente) do crime (por exemplo, quando se afasta, voluntariamente ou por imposição jurídica... e isso produz como efeito o encobrimento da insistência e do modo de funcionamento das práticas criminosas).
O ato analítico é um ato discursivo, ou seja, um ato de leitura das posições discursivas e dos modos de gozo e de poder que fazem ex-sistir, efetivamente, a práxis social e jurídica. Não se trata de mera denúncia dos desvios institucionais, na suposição de que o Outro existe; de que existe uma direção correta ou um ideal normativo, suscetível de ser interpretado ou bem dito por alguém supostamente capaz de se colocar em uma posição metadiscursiva. Afinal, como dissemos, a a-nomia, que constitui o campo jurídico e institucional, não se opõe à norma, e sim é efeito da norma e dos modos de operar e dizer na práxis social e jurídica.
A afirmação de que do que se trata é de ler, e não simplesmente de denunciar, relaciona-se a uma questão operatória, que remete à práxis jurídica e institucional. A denúncia, enquanto tal, não dá existência discursiva senão ao discurso que é criticado. A intervenção a partir daí não pode ser senão uma intervenção incondicional: as razões supostamente pensadas (por um sujeito que pensa e goza; ou antes, que se faz pensado, se faz objeto de um imperativo de gozo) não valem para e na situação discursiva.
A questão não é simplesmente do saber institucional (identificado, por exemplo, ao saber do jurista, do burocrata, do governante, do educador, do cientista, etc.), mas da reprodução da posição (suposição) de saber, através dos diferentes atos de fala. A questão, portanto, não se coloca no nível do saber, mas do fazer e do gozo – da posição de gozo que se repete, de diferentes modos, tanto nos discursos de comando, quanto naqueles de obediência ou denúncia; uma repetição, em ato, ou seja, que ex-siste em razão do ato de comandar, obedecer ou denunciar (que se lê, um a um).
Os diferentes discursos, que ex-sistem na instituição, a constituem, efetivamente, e a fazem funcionar (ainda que os sujeitos não saibam ou, sintomaticamente, não queiram saber d'isso, que os implica). Não se trata, pois, de hierarquizá-los de modo a priori, mas de ler as posições de gozo e de poder que os diferentes discursos veiculam, inscrevendo o não saber enquanto estruturante da práxis social e jurídica, como condição da ex-sistência da de-cisão na situação discursiva.
Os diferentes discursos, um a um, inscrevem, incluem... a exclusão na instituição. A inclusão não está lá, no futuro, como correlata de uma demanda de superação da exclusão; mas está aí, em ato, na positivação de cada modo dizer, que inscreve a exclusão, ou seja, inscreve o vazio e os efeitos ex-cêntricos que produz, fazendo da instituição uma instituição constitutivamente a-nômica.
A leitura dessa articulação topológica inscreve a clínica no laço social, fazendo ex-sistir o dispositivo jurídico e institucional enquanto campo discursivo, campo de gozo (RODRIGUES FILHO, 2007c; RODRIGUES FILHO, 2007a; RODRIGUES FILHO, 2007b), como condição do saber fazer, aí, com o sintoma.
Conclusão
O ato de leitura, segundo as premissas lógicas, éticas e topológicas da psicanálise lacaniana, é constitutivo da clínica no laço social, uma clínica de discurso. A ênfase no jargão psicanalítico, independente do uso da leitura topológica, produz o encobrimento do impossível das práticas cotidianas, que, como indicamos, subvertem a oposição dentro/fora (ou direito/não direito, estranho/familiar). O ato de leitura tem a função de inscrever o caso jurídico enquanto caso único, como condição da ex-sistência de uma argumentação e decisão na situação discursiva.
Note-se que não se trata de garantir que tal decisão é correta ou bem dita (porque eficaz, razoável, legítima, justa. etc.), e sim de afirmar que se trata de uma decisão, segundo a ética do bem-dizer, constitutiva do saber fazer aí com o sintoma, ou seja, constitutiva de um ato de sujeito (na posição de sujeito), que o responsabiliza enquanto ser falante – uma decisão condicionada (irredutível a qualquer normativismo ou ativismo político incondicional): ela se realiza mediante a análise das condições discursivas e do funcionamento efetivo e atual da práxis social e jurídica.
A decisão tem então o estatuto de uma de-cisão contingente e racional, já que a razão jurídica – uma razão discursiva e pragmática, como vimos – admite a positivação de critérios ou fundamentos de decisão incompatíveis, ponderáveis caso a caso, aí, em ato. Afinal, Há Um ato discursivo que faz ex-sistir o direito, enquanto direito que se lê como campo de gozo.
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VILLALBA, I. T. Seminário sobre o cálculo do gozo. Salvador, 2005 (notas manuscritas). [ Links ]
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. [ Links ]
Endereço para correspondência
Rua Miguel Navarro y Canizares, 247/801 - Pituba.
41810-215 - Salvador - BA
E-mail: walter.rf@uol.com.br
Recebido: 22/09/2014
Aprovado: 21/10/2014
SOBRE O AUTOR
Psicólogo. Psicanalista. Professor da Universidade Católica de Salvador (2000-2014). Doutor em Direito (Filosofia do Direito) com a tese O direito como campo de gozo e o laço social.
1 É nesse contexto que situamos a seguinte afirmação de Lacan: “[...] o direito fala do que vou lhes falar – o gozo. [...] É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 10-11). Sobre a noção de campo de gozo, remetemos ainda a QUINET (2006, p. 27).
2 A questão da suposição é discursiva e, portanto, se coloca no contexto da função do sujeito suposto saber e da seguinte afirmação de Lacan (Proposição..., [1967] 2003, p. 253): “Um sujeito não supõe nada, ele é suposto. Suposto, ensinamos nós, pelo significante que o representa para outro significante”, em um campo discursivo. Em Alexy (2010, p. 87 e seg.), essa questão se articula aos problemas da teoria do discurso e, em particular, ao problema da correção.
3 Conforme Lacan ([1972] 2003, p. 469-475 e 493-495; [1967] 2003, p. 337-339; [1976-1977] inédito), para um ser falante, a ex-sistência do dizer em relação ao dito inscreve o registro do engano ou do equívoco como constitutivo da razão; uma razão não-toda, que se estrutura em torno de um furo. É nesse contexto que podemos entender o que Miller (2005, p. 150) fala sobre o positivismo e o dizer na leitura analítica: “Se somos positivistas, há apenas os ditos. Se somos lacanianos, o dizer é isolável do dito, ‘o dizer se demonstra, e por escapar ao dito’”.
4 Sobre a articulação entre razão jurídica, pragmática e o discurso psicanalítico, remetemos a Rodrigues Filho (O direito como campo de gozo e o laço social..., 2007c). Sobre a razão pragmática e discursiva e os atos de fala, a que nos referimos, ver Austin (1990). E em relação à práxis do uso da linguagem, ver Wittgenstein (1995, p. 177 e seg.).
5 É por isso que, como diz Lacan, a letra não designa, e sim constitui o conjunto... e seu funcionamento (Cf. LACAN, [1972-1973] 1985, p. 65).
6 A propósito, remetemos a Lacan ([1972] 2003, p. 473): “Em nossas asferas, o corte, o corte fechado, é o dito. Ele produz o sujeito, o que quer que circunscreva...”, em suma, a ex-sistência do dizer.
7 Em terminologia de Luhmann, trata-se do acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político, mediado pela função da Constituição, que se efetiva, caso a caso, de modo contingente, através da argumentação jurídica (Cf. LUHMANN, [200-], p. 384 e seg.).
8 Conforme Lacan, “[...] que outra coisa jamais estudei senão as motivações e os modos do poder?” (Cf. LACAN apud ROUDINESCO, 1994, p. 286).
9 Isso deve ser reportado à função do ato de leitura no discurso analítico (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 39 e seg.).
10 Conforme Lacan ([1972] 2003, p. 485), “A topologia não foi ‘feita para nos guiar’ na estrutura. Ela é a estrutura [...] o corte instaurado pela topologia (ao fazê-lo fechado por direito [...] é o dito da linguagem, porém não mais esquecendo seu dizer”. Sobre Luhmann, ver nota 7, supra.
11 É nesse contexto que entendemos o problema da fundamentação no campo do direito, decorrente das diferentes dimensões (diz-mensões) dos direitos fundamentais (SARLET, 2001, p. 48 e seg., 80 e seg.), o que requer uma decisão jurídica condicionada, no caso concreto (BOBBIO, 2004, p. 23-4), ou seja, uma decisão jurídica atual, como ato discursivo, um a um, que se fundamenta caso a caso e tem ex-sistência na situação discursiva, produzindo efeitos ex-cêntricos e o vazio como estrutural ao sistema jurídico.
12 É nesse contexto que situo a tese de Lacan de que “[...] não há senão um único sintoma social [...]” (Cf. ASKOFARÉ, 1997, p. 182).
13 Lacan ([1974] 1986, p. 40): “[...] que é que escrevi ao nível do círculo do real a palavra ‘vida’? É que incontestavelmente, da vida [...] tudo o que nos induz a ciência, é a ver que não há nada de mais real, o que quer dizer, nada de mais impossível [...]”. Lacan ([1967] 2003, p. 350) alerta para que “Não nos detenhamos na magia da palavra ‘real’”, já que o real ex-siste através da mediação discursiva (Ibid). Sobre o estatuto discursivo da vida, remetemos ainda à questão da vida na biologia do século XXI (EMMECHE; EL-HANI, 2000, p. 31 e seg.) e à questão do biopoder em Foucault (1988, p. 135). A problemática no campo jurídico pode ser colocada, por exemplo, a partir das discussões sobre aborto, genética e uso das células-tronco embrionárias em pesquisas científicas.
14 Para fazer referência a uma terminologia de MILLER (2007, p. 29 e seg.).
15 É nesse contexto que situo o ato analítico (Cf. LACAN, [1969] 2003, p. 371, 373, 375) e o aforismo lacaniano “o analista só se autoriza de si mesmo” (Cf. LACAN, [1967] 2003, p. 248; LACAN, [1973] 2003, p. 311). A ex-sistência do analista, a partir da clínica de discurso, segundo as referidas premissas lógicas, éticas e topológicas, relaciona-se com a seguinte afirmação de Lacan ([1970] 2003, p. 517): “Não baseio essa idéia de discurso na ex-sistência do inconsciente. É o inconsciente que situo a partir dela – por ele só ex-sistir a um discurso”. E ainda: “[...] é na análise que ele [o inconsciente] se ordena como discurso” (Cf. LACAN, [1972] 2003, p. 452).
16 É nesse contexto que se coloca a questão do desejo do analista.
17 Lembre-se que Lacan (Ibid.) associa esse modo de proceder ao final de análise, ou seja, à saída do dispositivo analítico, como enfatiza VILLALBA (2005).
18 Ou ainda, subvertendo as oposições direito/não direito e estranho/familiar, o que mostra que a questão topológica pode ser reportada à perspectiva freudiana (Cf. FREUD, [1930] 1974, p. 116-117; [1919] 1976, p. 277; [1925] 1976, p. 295, 298, 300).