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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

O nome e a lei, a “sensoalidade” e o direito1

 

The name and the law, the senseuality and the law

 

 

Paolo Lollo

Tradução: Cristiane Cardoso Lollo

I Universidade Paris 13
II Hospital Pitié-Salpêtrière

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Que relação existe entre o nome e a lei? Entre o direito e o universal? A psicanálise nos mostra que existe um saber inconsciente, que acompanha o discurso e o religa ao real. Freud descobre que as associações livres não são totalmente livres. Segundo Lacan elas são religadas por fios invisíveis que são postos em movimento por um sujeito inconsciente. Que relação existe ainda entre inconsciente e sexualidade? De que maneira eles podem fazer sentido? O trabalho do analista coloca o inconsciente em movimento, permite ao universal reencontrar o singular e transformar e construir o sujeito. Assim também o jurista, bem como o político, deveriam velar para que a lei esteja em relação com o direito, a fim de permitir à democracia não somente continuar viva na cidade, mas renovar-se.

Palavras-chave: Lei, Direito, Sexualidade, Universal, Diversidade.


ABSTRACT

What are the bonds that exist between the name and the law? Between the law and the universal? Psychoanalysis shows us that an unconcious knowledge follows the speech and ties it again to the real. Freud discovers that free associations are not completely free. According to Lacan they are reconnected through invisible ties that are set in motion by an unconscious subject. What is the bond between the unconscious and sexuality? In what way they can make sense. The analyst’s sets the unconscious moving, allows the universal to resume the unique, to change and construct the subject. In the same way the lawmaker, as also the politician should care that the law bears a bond to the legal, as to allow to democracy not only to continue alive at the city, but also to renew itself.

Keywords: Law, Sexuality, Universal, Diversity.


 

 

Bom dia a todos! Quero, antes de mais nada, agradecer a Cibele o convite que me fez para estar aqui. Quero agradecer ainda a todos os membros do Círculo Psicanalítico da Bahia.

Para começar, gostaria de apresentar muito rapidamente o caminho que vamos percorrer juntos durante estes dias. Acredito que vocês conheçam o tema – Direito, psicanálise e sexualidade: universal e diversidade –, e minha ideia é apresentar três pontos e tentar articulá-los num mesmo discurso, o qual, espero, será interessante para pensarmos nossa prática analítica. O primeiro ponto é o nome e a lei do pai; o segundo é Antígona e a lei não escrita; e o terceiro, a função do desejo.

O Nome-do-Pai,2 logo de entrada, traz à tona a questão da nominação. O nome está ligado a algo que o precede, sua origem: alguém o nomeia, o produz, o cria. Lacan atribui uma função fundamental à nominação quando ele enuncia: “Seria preciso escrever a coisa assim, seria preciso escrever nhomear” (LACAN, 1975). Nomear é, então, dar um nome e, ao mesmo tempo, criar o homem, o ser falante. O nome é a essência do humano, que encontra sua origem e seu fundamento (ousia3) num ato criador: a nominação. Sua origem é também seu começo, ou seja, sua entrada no tempo. A nominação possibilita a entrada do objeto no tempo e o humaniza.4 Para Lacan (1975), o Nome-do-Pai é o Nome do Nome do Nome. Essa tripla nominação remete aos três registros imaginados por Lacan – imaginário, real, simbólico – e ao nó borromeano.

Quando o pai nomeia seu filho, reconhece nele o outro, mas como sua imagem no espelho. Essa primeira nominação tem um dominante imaginário. A partir do momento em que nomeia seu filho, ele responde à pergunta do seu próprio nome: “Quem é você?”. Mas como não pode responder como Deus respondeu a Moisés – “Eu sou o que sou” –, ele responde deste modo: “Eu sou o pai, a origem do meu filho”.

Com essa resposta, vemos aparecer o real do pai nessa relação pai e filho, relação de nominação, de criação. Esse real se encarna no objeto a enquanto objeto desde sempre perdido – falta primordial –, lugar vazio, furo, que o pai vai tentar fechar utilizando um objeto imaginário substituto: um filho. A mãe, por sua vez, reconhece o nome do pai e confirma que foi ele que gerou o filho, estabelecendo, assim, entre o pai e o filho, uma relação simbólica que irá unir e unir-se ao real e ao imaginário. A metáfora paterna permite fechar o círculo e torna possível um quarto registro: o Nome-do-Pai, que faz nó, religando os três registros.

No Seminário R. S. I. Lacan (1975) diz: “A nominação é a única coisa que, podemos estar certos, faz furo”. A nominação faz furo, mas permite também a união do imaginário, real e simbólico: ela faz, ao mesmo tempo, furo e três. Ou seja, e aqui eu antecipo, ela faz fundamento (ousia). Fazer furo significa transformar o animal homem em espécie humana, em animal falante; fazer furo significa fundar a linguagem.

Nomear é, então, um ato de transformação e, de certo modo, um ato mágico que permite ir além do imaginário e do terrível e incompreensível real. O nome é o produto desse ato de criação que transforma imagem e real em símbolo, através do qual o sujeito aprende a agir e a transformar.

A palavra grega Onoma5 (ovoμα) significa nome e é escrita quase da mesma maneira que outra palavra grega: Nomos6 (voμóç), que significa lei. A proximidade literal e fonética dessas duas palavras nos sugere a ideia de uma possível relação entre elas – Onoma, o nome, e Nomos, a lei. De fato, a palavra Nomos, lei, remete a uma raiz mais antiga, Nemo (véμω), que significa dividir, partilhar e exprime um sentido originário, ou seja, a ideia de cortar, partilhar, estabelecer limites e fronteiras. Ela é usada para exprimir a ideia de separação de duas superfícies, dois territórios. A lei – Nomos – torna possível a partilha, o que implica também uma ordem, através de uma separação.

Nomear é também um ato que tem como objetivo dar um nome – Onoma – a algo, a fim de distingui-lo, de separá-lo dos outros. Sendo assim, o ato de nomear estabelece fronteiras ao que é nomeado, separando-o dos outros. Podemos dizer que essa fronteira é um limite, uma lei. Quando, dentro de um grupo qualquer, algo é separado, esse algo é ao mesmo tempo identificado em sua especificidade. Quando o pai nomeia o filho, ele o separa de si mesmo, da mãe, dos outros filhos, e de todas as outras coisas que não têm nome. Podemos, então, dizer que o nome, ao separar, cria. Ele introduz o nomeado numa ordem, numa legalidade.

Podemos agora nos perguntar a qual ordem, a qual lei pertence o nome Édipo, que significa “aquele que tem os pés inchados”. Édipo não recebeu o nome de seu pai Laio; no entanto, seu nome tem uma relação real com o seu pai biológico. Este, para escapar do destino anunciado pelos oráculos, ou seja, para não ser assassinado pelo seu próprio filho, decide separar-se dele, decide matá-lo primeiro. Para isso, ele fura os pés do recém-nascido a fim de poder amarrá-los. Em seguida, ele ordena ao seu criado que o abandone aos animais selvagens no monte Citerão. Mas o criado, não querendo abandonar dessa maneira um recém-nascido, decide entregá-lo a Polibos, o rei de Corinto, que o adota. E será seu pai adotivo que lhe dará o nome Édipo, depois de ter visto que o bebê tinha os pés inchados, resultado da ação homicida de seu pai biológico.

O nome Édipo é, portanto, a consequência de um abandono e o efeito de um nó, de um laço, e, ao mesmo tempo, a concretização de uma separação que criará uma ordem, uma lei trágica à qual esse herói, também trágico, será submetido.

O nome do pai de Édipo é Laio. Ele representa uma lei à qual o filho não terá acesso. Édipo acredita que seu pai se chama Polibo, o rei de Corinto, aquele que o acolheu “como”7 filho, mas ele está enganado, e esse engano trará graves consequências sobre a lei à qual ele se submeterá. O verdadeiro nome de seu pai, sua verdadeira ‘lei-do-pai’ é Laio, significante que, no cruzamento dos caminhos, em um face a face com um homem que porta o nome do pai, não reconhecerá. Não reconhecendo sua origem, Édipo irá contra a lei das leis – “Não matarás!”, Não matarás teu pai! – e contra a lei não escrita do interdito do incesto: “Não tenhas relação sexual com tua mãe!”. Édipo, no entanto, negará seu pai, matará seu pai e terá relações sexuais com sua mãe.

Poderíamos aqui falar de uma foraclusão do Nome-do-Pai? Laio, o pai de Édipo nunca ocupou o lugar do Outro, não foi chamado para ocupar esse lugar em oposição simbólica ao sujeito Édipo.8 As consequências nós as conhecemos: Édipo será capturado pelo desejo de sua mãe, Jocasta, e pelo gozo do Outro. Ele não poderá se tornar sujeito, pois não se encontra em condições de se separar dela. Poderíamos dizer que a função paterna não pôde barrar o desejo da mãe nem a instauração de uma completude imaginária que une mãe e filho.

No sujeito neurótico, o significante Nome-do-Pai vem fazer corte e se coloca no lugar do desejo da mãe, ou seja, se coloca entre ela e seu filho. Um significante vem, assim, simbolizar o gozo ligado a esse desejo, que será recalcado sob a barra do significante Nome-do-Pai e inscrito no simbólico.

No mito, Édipo jamais encontrará o Nome-do-Pai. O significante Laio é ausente na vida do príncipe de Corinto e, por isso mesmo, a lei simbólica (nomos) falha em sua função de separação da origem (do pai Laio e da mãe Jocasta). O incesto vem como uma possibilidade, pois a lei simbólica do interdito do incesto não pode ser assumida nem reconhecida; não tem a possibilidade de agir. O pai ausente, forclos, se representa sob a forma de fantasma, como um antagonista que barra o caminho de Édipo, o que suscita sua cólera. Será essa cólera que barrará o caminho de seu pai Laio, um caminho que liga três instâncias: Corinto (imaginário), Delfos (simbólico) e Tebas (real). Esta última, tão real que leva Édipo até a cama de sua mãe Jocasta. A lei não fora capaz de barrar o caminho que levou Édipo a cair nos braços de sua mãe. Depois de matar seu pai com um golpe de espada, Édipo segue em direção à sua derrota.

Esse golpe de espada nos faz pensar no golpe que deu Brutus contra seu pai (adotivo?) César. Depois dos 22 golpes dados pelos 22 senadores, defensores da República, esse seria o último, o vigésimo terceiro. Segundo a crônica, no dia 15 de março do ano 44 a.C., César, ao ver Brutus, pronuncia as seguintes palavras: "kai ov tékvov", que significam “Você também, meu filho?”.

Marcus Junius Brutus Caepio era um senador romano, jurista e filósofo, filho de Servília, amante de Júlio César. Seria ele filho biológico de César?9 De qualquer maneira, César o tratava como um filho. Mas Brutus se opõe a César quando este se declara imperador. Ele se opõe não apenas à tirania do imperador em nome da República, mas também à tirania de um pai cujo nome era forclos. O nome Brutus, em latim, quer dizer pesado, bruto, inanimado. O oposto do que, simbolicamente, César representava: um homem refinado, luminoso, magnífico, com todo o poder que detinha, e, além de tudo, generoso para com seu filho Brutus. Podemos dizer que César é bellus (belo), e que seu filho é brutus (bruto, mau). Mas o nome do magnífico imperador romano nos sugere também um sentido de corte,10 de nomos, de lei. César tem o poder de dividir, de medir, de avaliar, de partilhar o poder, a riqueza, as honras. Brutus se opõe a esse pai superpoderoso, que tem um nome capaz de cortar como uma faca, um Nome-do-Pai demasiado poderoso para um filho. César é o ícone do poder, a imagem de um homem superpoderoso.

Se, para o povo romano, César é um semideus, símbolo de um pai celeste, para Brutus, o nome César não cumpre sua função de Nome-do-Pai simbólico, mas de pai imaginário, que o ameaça de uma castração real. O Nome-do-Pai, César, é, nesse sentido, demasiado forte: ele massacra o filho, tirando dele o espaço de uma existência metafórica, que é também o espaço da República.

Para Brutus, César é um Nome-do-Pai que se impõe demasiadamente, que é demasiado cheio, um Nome-do-Pai imaginário, que garante uma lei que não pode ser simbólica, mas superegoica, construída sobre o Eu, sobre a imagem de um Eu totalitário. A única coisa que pode querer Brutus é apagar essa imagem de um tirano que quer levar a termo a República e fazer do povo romano, assim como ele fez de Servília, a mãe de Brutus, seus serviçais.

Mas qual é, então, o Nome-do-Pai que, por ser simbólico, garante ao filho a possibilidade de se tornar filho falante? Lacan nos dá uma resposta quando ele diz que “[...] é possível prescindir do Nome-do-Pai na condição de saber servir-se dele” (LACAN, [1975-1976] 2005, p. 145). Poderíamos, então, reformular nossa pergunta da seguinte maneira: como se servir do Nome-do-Pai? Como prescindir dele?

Servir-se do Nome-do-Pai pode significar saber utilizar sua principal função: tornar-se simbólico e servir, assim, de ponto de basta. Essa função do Nome-do-Pai só pode agir quando reúne três nominações (do nome, do nome, do nome): o pai real, o pai imaginário e o pai simbólico. Isso quer dizer que o simbólico só pode agir quando está ligado ao real e ao imaginário por um nó borromeano. Podemos prescindir do Nome-do-Pai real, do Nome-do-Pai imaginário e do Nome-do-Pai simbólico se tomados um a um, mas não podemos prescindir do Nome do Nome do Nome-do-Pai ligado pelo nó borromeano.

Saber servir-se do Nome-do-Pai significa saber colocar, nesse lugar do nome (onoma), uma ordem simbólica que possa fazer lei (nomos). O lugar do Nome-do-Pai é o lugar primeiro onde cada sujeito, cada um à sua maneira, agencia seu significante primeiro. É preciso saber servir-se desse lugar primeiro do Nome-do-Pai. Esse lugar UM nos faz ouvir a lei (nomos) primeira. Esse papel primeiro do Nome-do-Pai é o ponto de basta do sujeito, a partir do qual, ele pode tecer os significantes em um tecido de associações livres.

Definiria esse tecido como metafórico, pois é uma textura simbólica, que permite a associação livre a partir de um lugar primeiro, de um lugar UM: o Nome-do-Pai. A cadeia de associações livres só é possível graças à metáfora; uma primeira imagem é associada a uma segunda imagem, de maneira analógica. Passamos de uma imagem a outra através da mediação de algo comum, e é nessa passagem de associação a associação que a textura do sujeito pode ser construída.

O Nome-do-Pai não pode ser transmitido metonimicamente, pois a metonímia nos remete ao nome próprio, por exemplo, o nome César, que pode ser dado, transmitido ao filho por meio de uma nominação, sem nenhum peso simbólico.

Diante de Brutus, encontram-se três nomes do pai: o primeiro é César, e minha hipótese é de que ele seja o pai real,11 dado ignorado por Brutus (assim como Édipo ignorava que Laio era seu pai); o segundo nome é Marco Brutus.12 Como marido de Servília, ele seria o pai simbólico, aquele que dá o seu nome (Brutus) a seu filho; o terceiro é Catão,13 tio de Brutus, aquele que é responsável pela sua educação republicana e seria o pai imaginário.

Três pais, três nomes do pai que não se articulam em um nó borromeano, mas estão reunidos de maneira confusa no espírito de Brutus. A força do Nome-do-Pai não passa automaticamente ao filho pela simples transferência de nome (onoma). Nessa transferência metonímica, pode acontecer que a função simbólica (a lei simbólica) do Nome-do-Pai não esteja presente. Eu diria que essa transferência metonímica passa por uma lei autoritária e superegoica, ou seja, a transferência de nome (onoma) é feita por um decreto sem que interfiram o desejo e sua lei, que está ligada à criação.

A função de um pai passa pela transmissão de um nome que é criador de uma ordem, de uma lei, de um nomos. O Nome-do-Pai transita em direção ao filho através da metáfora, ou seja, através da criação, através da liberdade que tem o filho de assumir, ou não, seu nome e sua história, liberdade de criar-se e de criar uma relação singular com o pai.

Para que o Nome-do-Pai funcione como ponto de basta, é preciso que ele seja integrado pelo filho como nome e como uma “lei suficientemente boa”, uma lei capaz de fazer laço, de fazer associação entre significantes e significantes e entre significantes e significados. Esses laços analógicos não são preestabelecidos. A relação entre pai e filho se refere não somente ao real, à necessidade mas também ao simbólico, que age no real criando um espaço do possível, que nada mais é do que o espaço de criação. Um filho é uma criação se ele consegue se determinar, se recriar simbolicamente a partir do Nome-do-Pai. Ele se torna sujeito livre se, a partir da sua origem, pode se construir e recomeçar a existir.

 

A questão da origem e do começo

Voltemos ao mito de Édipo. O impasse de Édipo se deve ao fato de ele não ter conhecido sua determinação paterna, aquele que era a sua origem. Essa falta de conhecimento o leva a confundir mãe e mulher, filha e irmã, filho e marido. E esse erro se dá como consequência de uma ruptura genealógica causada pela tentativa de infanticídio da parte de seu pai Laio.

Assim como Édipo, Brutus não foi capaz de prescindir do Nome-do-Pai nem de se servir dele. Eu frisei, um pouco antes, que o Nome-do-Pai representa a origem, o começo.

De fato, a questão do começo se coloca em toda análise. Eu observo muitas vezes a dificuldade que sentem alguns analisandos de começar, de empreender. Com efeito, começar uma nova atividade, dar um novo começo a nossa vida, por exemplo, só é possível se somos capazes de pôr fim a algo de maneira brusca, de parar um movimento que está sendo feito e conduzir a nova iniciativa a uma nova direção.

Só para dar uma ideia de como o começo é importante, não é bobagem dizer que a primeira palavra do texto fundador da civilização ocidental, a Bíblia, é Berechit, em hebreu, que significa começo, início. No entanto, na Bíblia, esse começo é um começo a partir do nada. Para a psicanálise, o começo é sempre a partir de algo. Começar a partir de algo significa que, para criar, é preciso primeiro aceitar separar-se desse algo. Começar se torna um transformar fundado sobre uma renúncia, ou seja, sobre uma falta que estamos dispostos a assumir. Se relacionarmos a questão do nome com a criação, que é ao mesmo tempo uma transformação, ela toma um novo sentido.

Como já vimos, onoma é uma palavra grega praticamente homofônica a nomos. Onoma parece ser um nome composto por nomos e algo em posição e em função de prefixo “on”. Se prestarmos atenção à homofonia na palavra grega onoma, ouviremos então “on” e “nomos”, o que significaria “o ser da lei”.14 Esse ser “on” é o que precede a nominação e permite estabelecer fronteira, permite a separação, a lei. É um começo que faz referência ao real.

Quando nomeamos uma criança, quando ela ouve seu nome, para se tornar sujeito é preciso que ela diga sim a esse nome. Com esse sim, ela começa. Ela afirma sua própria origem e a origem do significante “on”, “ser”, que precede a nomeação e faz ponto de basta, o que possibilita uma ligação ao real.

O nome tem uma relação com a Coisa, e poderíamos dizer que existe uma natureza da Coisa que o nome contém. Dizer é um ato e, quando digo isso – “dizer é um ato”–, estou falando do simbólico, pois quando falamos e essa palavra não faz ato, não é da ordem do simbólico, é só blá-blá-blá. Nomear é uma ação que implica a Coisa, que tem certa relação com o real, um fundamento (Ousia).

Lacan nos diz que, para Ferdinand de Saussure, as palavras são pura convenção, mas “sem acreditar realmente nisso”, pois, no fundo, ele pensa que as palavras têm um referente natural. Na verdade, Saussure passará um longo tempo de sua vida estudando os anagramas. E por que os anagramas? Porque uma palavra nos leva a outra palavra, um significante nos leva a outro significante através de um tipo de ligação natural que é a sonoridade, a vibração sonora. Isso é a matéria. A passagem de uma palavra a outra não se faz por acaso. Vemos isso na análise, ouvimos todos os dias.

O que é matéria é a sonoridade: passamos de uma palavra a outra graças a essa materialidade sonora. Essa passagem não é fruto do puro acaso. No entanto, a associação pode ser feita entre dois significados semelhantes que produzem duas imagens semelhantes, e, nesse caso, passamos de um significado a outro através da contiguidade de figura. Mas isso não impede que o corpo da língua aja, não impede que ela passe por um processo de associação entre significantes.

Dessa maneira, o sonho também passa pelo significante, que pode ser constituído de sons ou imagens. Então, nos nomeamos somente porque fomos nomeados: sempre existe um antes. Esse “antes”, esse começo é o real da palavra, sua força, sua ação.

Platão (1998) nos dá alguns exemplos do que eu estou dizendo em Crátilo. Nesse diálogo, ele nos fala do educador, do didascalicus. O educador é uma figura importante para nós no que diz respeito à transmissão do saber, à transmissão da psicanálise. Platão compara o educador com o marceneiro; assim como o marceneiro tem uma técnica para a construção de objetos, o educador também utiliza uma técnica para nomear.

Com os seus instrumentos, o marceneiro transforma a madeira, cria um novo objeto a partir da matéria “primeira” – a madeira –, que está na origem da transformação. Um armário, por exemplo, é uma transformação de uma madeira originária, mas que será sempre madeira. A mágica do marceneiro está em transformar, criar, conservando a matéria-prima que faz função de origem, que permite uma separação e um novo começo.

O educador, enquanto ser falante, se assemelha ao marceneiro; inventa palavras, torna-se legislador, cria nomes que, pronunciados, possuem uma força. No início de seu trabalho, Lacan fala de uma palavra plena e de uma palavra vazia. A palavra plena possui essa força; quando ela é pronunciada, é capaz de transformar a realidade. Assim como a ação do marceneiro na madeira, a palavra plena do ser falante transforma a matéria-prima significante, sua origem, em produto/palavra “finita”. Quando nomeia, ele o faz plenamente, e esse nome, quando pronunciado, é capaz de operar uma transformação psíquica que permite o surgimento de algo. Um nome pode ser capaz de agir, na condição de que cada substantivo seja ligado ao verbo.

Em Crátilo, encontramos vários exemplos que poderiam ilustrar o que estou dizendo aqui, mas escolhi apenas dois entre eles e gostaria de desenvolvê-los. Vamos ao primeiro: Sócrates explica que os deuses são chamados de theoi, e que está correto chamá-los assim. Por quê? Porque a palavra theonta significa “correr” e, originariamente, os deuses eram o sol, a terra, a lua, os astros que correm no céu.

Sendo assim, todos os deuses correm, então, nada mais correto do que chamá-los theoi. O sol corre, ele não para, assim como o ‘dis-curso’ atravessa o céu do logos e visa se transformar em t(h)eoria. Isso parece nada, mas o fato de nomear e ir à origem da palavra – poderíamos dizer também ir ao verbo da palavra – isso nos coloca em relação com o real da língua. Theoi, os deuses, a divindade, para os gregos, era identificada com o movimento.

Um segundo exemplo é a palavra “herói”, que é homófona à palavra “Eros”. Será que existe uma relação entre as duas palavras? De fato, os heróis são semideuses, pois um de seus genitores é mortal. Como é possível que um pai mortal possa se deitar e ter um filho com uma deusa? Basta que uma deusa se apaixone por um homem mortal. Então o amor, Eros, torna possível o nascimento de um herói. Heróis e Eros são então muito ligados, como vocês podem ver.

O que esses exemplos nos mostram é que, no jogo do ‘dis-curso’ que colocamos em movimento na psicanálise através do inconsciente, uma simples letra tem um lugar importante, pois pode deslocar o sentido. As letras são significantes que representam o real da linguagem. A psicanálise, através do discurso, vai ao encontro desse real, ligando-o ao imaginário e ao simbólico. Nesse sentido, ela pode contribuir, e muito, com várias disciplinas, ligando-as a registros que muitas vezes escapam ao saber oficial.

O nome, que é composto de letras, constitui a ponte, a passagem, que leva à lei simbólica. Creio que a psicanálise tem algo a dizer sobre a lei e a cidade. Assim como o nome, a lei também não é mera convenção, está ligada ao real da letra, mas também ao real do espírito, que visa a justiça. Acredito que seria interessante fazer uma relação entre lei e direitos humanos, que são os princípios gerais que a lei tenta aplicar à contingência. Não podemos separar a lei do direito, mas a questão não é tão simples assim, pois o direito ocupa o lugar de real, de materialidade da lei.

Vou tentar articular, nas próximas conferências, as noções de lei e direito. Mas hoje gostaria de voltar à questão do saber da psicanálise que, de certa maneira, está ligada a dois saberes diferentes. Um primeiro saber, transmitido na universidade, é o saber da ciência. Normalmente acredita-se que todos nós o recebemos, o assimilamos e o incorporamos. Mas esse saber, nós o esquecemos tão rápido quanto o aprendemos. Isso levanta algumas questões: como transmitir o saber e como recebê-lo?

O outro saber que coloco no centro da atenção de vocês, é o saber do inconsciente, que coloca em movimento o discurso, religando-o ao real. O primeiro saber – o da ciência, da teoria – se afasta do real, é um saber abstrato, enquanto o saber do inconsciente é definido por Lacan de uma maneira muito estranha: ele o chama de “eu não quero saber de nada disso” (LACAN, 1982), que é diferente do “eu não quero saber nada” do estudante da universidade. Quase sempre, os estudantes têm razão quando “não quererem saber nada”, pois na universidade o que recebem são petiscos, migalhas de saber. É então normal se mostrarem desgostosos.

Mas o “eu não quero saber de nada disso” é outra coisa, pois é um “eu não quero saber nada de um saber já constituído, que não pode ter uma relação com o real, que não o coloca em questão”. O saber que interessa a Lacan é o saber do inconsciente, que surge através de um mecanismo, uma técnica, uma prática do discurso que Freud chama de “Einfallen”, que quer dizer associações livres. Todo discurso, todo saber é isso: o agenciamento livre de significantes que, no entanto, obedecem a uma lógica (logos) inconsciente. Para aceder a esse discurso, é importante se colocar nessa posição: “não quero saber de nada disso”, o que significa se distanciar de um saber predefinido que bloqueia, que impede todo discurso que abre o inconsciente para aceder à sua lógica, a seu pensamento. Uma pessoa procura um psicanalista quando esse agenciamento não se faz e o discurso não pode então se desfazer.

O saber preconizado por Lacan coloca em movimento o inconsciente e o pensamento ao mesmo tempo e produz um discurso que, acredito, permite o encontro da palavra com o real, da lei com o direito, do universal com a diversidade. Tentemos escutar bem o sentido das palavras universal e diversidade. Escutemos os significantes Uni e Div. Uni significa UM, Div significa partilha, divisão, dois. Então, o que isso significa? Significa que nossa maneira de estar no discurso só é possível se o UM é ligado ao DOIS (Div). Parece banal, não? Sim, parece banal, mas… para chegar até aqui… Vou abrir, por apenas alguns instantes, uma janela: Édipo.

Édipo tem um pai que o precede, que é primum, que está na casa 1. Édipo, podemos dizer, está na casa 2. O problema surge quando, em um determinado momento, Édipo se coloca no lugar do 1. Não é possível que ele, como filho do seu pai e de sua mãe, se coloque no lugar do pai, na casa 1. Quando isso acontece, o curso de seu discurso para, sua palavra terá um problema, será uma palavra cega, ou melhor, muda. Seu discurso o levará a fazer com que sua filha seja, ao mesmo tempo, sua irmã, que sua mãe Jocasta seja, ao mesmo tempo, sua mulher e sua mãe. Esse “ao mesmo tempo” significa que o princípio da exclusão, da separação, não funciona. Algo, da ordem do tempo, é bloqueado. Nós não podemos estar ao mesmo tempo em Varsóvia e em Lublin.

Essa relação estranha entre universal e diversidade nos faz pensar, entre outras coisas, na ordem de gerações, que é uma ordem natural. De fato, nunca um filho criou o seu pai, jamais. É impossível. Essa ordem natural é bem representada pela ordem numérica, que exprime uma relação de posições diferentes. A ordem quantitativa, numérica, diz respeito à ordem dos números, que se refere ao real. A matemática opera com o real. Mas existe também a questão da ordem simbólica, que é a ordem do alfabeto, ordem qualitativa, que se opõe à quantitativa e se articula com esta.

Na cura analítica, quando ela funciona bem, ocorre a passagem de uma a outra. Mas a questão que se coloca aqui é: como passar do quantitativo ao qualitativo? E essa é uma questão muito atual em nossa sociedade, pois tentamos medir tudo. Não sei aqui no Brasil, mas na França tentamos avaliar tudo de maneira quantitativa. Não somente na universidade, mas também na creche, nas empresas. Mas, com a qualidade, ninguém se importa. Podemos viver no conforto, na quantidade de bens voluptuosos, mas destituídos de nossa vida, de nosso desejo singular, de nosso alfabeto.

Por isso, acredito que é muito importante hoje nos questionarmos sobre a qualidade. É uma questão política que diz respeito a nossa maneira de viver, à organização de nossa sociedade. A psicanálise pode dar uma resposta às questões políticas, mostrar que há uma relação entre quantidade e qualidade, mesmo se essas duas dimensões não podem ser traduzidas com exatidão uma na outra. Quantidade e qualidade podem se relacionar, mas não existe entre elas uma relação de proporção. O simbólico toca o real, mas não pode traduzi-lo inteiramente. Haverá sempre um resto que escapará à avaliação dos números, e talvez essa seja a parte mais importante. Eu penso no trabalho intelectual, que quase sempre não tem o seu justo valor reconhecido e, por isso mesmo, não recebe – falo em termos de salário – seu justo valor. Penso nos inventores, naqueles que criam: sem os artistas, o mundo entraria em colapso. Eu acrescentaria a essa lista os humanistas e os psicanalistas; sem eles, o mundo submergiria.

Digo isso porque um mundo que reconhece apenas a quantidade, reduz os seres humanos a números, a entidades abstratas, vazias. O corpo é reduzido a suas funções mecânicas, esvaziado de seu material psíquico. Os homens são reduzidos a escravos, numa realidade em que a qualidade está a serviço da quantidade. De minha parte, tenho colocado no centro da minha pesquisa duas funções simbólicas: o número e a letra e sua incomensurabilidade. Eles não têm uma medida comum, mas podem se relacionar um com o outro.15

Voltemos à questão do número. Falei do mito de Édipo utilizando os números 1 e 2, mas, em nossa história, existe outro Édipo. Ele se chama Paulo de Tarso. Paulo se diz apóstolo de Cristo; no entanto, é surdo à palavra do pai, não o ouve. Para ele, a lei dada por Deus a Moisés (lei simbólica resumida nos dez mandamentos) não age mais, é constituída de palavras (que são compostas de letras) que não têm mais força, não têm mais valor.

Entretanto, Paulo não é surdo à palavra do filho. Ele apaga a palavra do pai, o número 1, e se apega à palavra do filho, que é o número 2. Mas o problema é que, sem a palavra do pai, nós não podemos ouvir a palavra do filho, a tal ponto – e vocês podem depois conferir – que, se lermos os Evangelhos sem ler os cinco primeiros livros da Bíblia, não estaremos aptos a compreender o sentido do texto; nem o sentido literal, nem o sentido alegórico.

Tomei o exemplo de Paulo para lhes falar que o filho é importante, eu não estou aqui negando o filho, mas ele só assume um peso, uma força, se estiver na boa casa simbólica. A palavra simbólico vem de symballein. Sym significa junto, é o laço, é realmente o laço; e ballein significa laçar; então, teremos laçar junto. Desse modo, a palavra do filho só faz sentido se for simbólica e ligada à palavra do pai. A palavra simbólica remete também à associação livre, à possibilidade de fazer laço.

Sem me deter muito, gostaria de lembrar que logos também faz laço. O logos é o discurso, a palavra. Esse logos, legein, só funciona se existe essa possibilidade de conexão. Sem o 1, o 2 perde o sentido, perde sua força e não pode mais agir. O trabalho da associação livre torna-se defeituoso, falta-lhe algo que é a partida, o ponto de basta, o começo.

Volto, então, à questão do começo. Como começar e recomeçar na vida? Como, depois ou durante uma análise, encontrar força e vontade para começar? Como reencontrar o desejo de fazer, de criar? A vontade de ir ao cinema, por exemplo? Como procurar amigos ou um novo amor depois de ter vivido uma decepção, uma falência ou um divórcio? Como reencontrar o interesse pelo mundo? Como encontrar a vontade de estudar ainda e mais ainda? Como disse antes, para mim, a questão do começo não pode ser desvinculada da questão da criação.

O fato de que o filho seja obrigado a fazer referência ao pai, visto que ele é sua consequência, significa que ele é determinado e, desse modo, prisioneiro de uma ordem que o impede de agir. Como, então, deve fazer para encontrar a liberdade necessária para conseguir empreender, para conseguir começar e recomeçar?

O fato de ser o número 2 não significa que é preciso negar o número 1, ou seja, não é necessário que o pai seja foracluído para que haja a possibilidade de encontrar um espaço e um tempo singular para começar, visto que o espaço de ação de quem se encontra em uma posição primeira não é o mesmo daquele que está na segunda posição. Dito de outra maneira, o espaço psíquico do filho deve se emancipar do espaço psíquico do pai.

Mas de que maneira? Como pensar a consequência entre o 1 e o 2 sem que uma dependência paralisante seja mantida? Como um filho pode encontrar a liberdade de ação necessária para poder começar se ele é determinado pelo pai, que está na origem de sua história? Como recomeçar sem negar o pai, sem ocupar o lugar do pai, a casa 1? De fato, a questão não é destruir a função do pai, do 1, e é isso que faz da questão do começo uma questão complexa, que está ligada a duas realidades, ou possibilidades.

Para tentar explicar essa complexidade, gostaria de apresentar duas palavras latinas que poderão talvez nos dar as chaves para essa compreensão. Duas palavras que, para mim, constituem uma só: bellus e bellum.

 

Bellus e Bellum

uando estava no ensino médio, indaguei à minha professora de latim “se essas duas palavras, tão próximas, tão semelhantes, não teriam uma relação entre elas”. Para mim, parecia evidente que se tratava de uma mesma palavra. “Não” – ela me respondeu – “não existe nenhuma relação entre bellus e bellum. Nenhuma relação”. Mas essa pergunta continuou martelando em minha cabeça durante muitos anos. De fato, bellus significa belo, e bellum significa guerra. Então, ela tinha razão, nenhuma relação entre elas, vocês não acham? Mas sua resposta não me convenceu. E se formos à raiz dessas duas palavras, vamos observar que existe, sim, uma relação entre as duas. Na palavra bellum, encontramos guerra, conflito entre dois exércitos ou entre duas facções. Temos, então, um exército em face do outro, o que podemos considerar como sendo da ordem do dois. E isso é tão verdade que, no latim antigo, a palavra usada para dizer bellum é duellum. E duellum significa dois, a diferença é que o duellum é entre duas pessoas, duas pessoas que se desafiaram entre si, e bellum indica o conflito entre dois exércitos.

Como vimos, bellum deriva de duellum, e essas duas palavras nos remetem ao número dois. A guerra, bellum, be-llum, bis-ellum e duellum, dois-ellum,16 são então da ordem do dois. Mas, qual seria a relação entre bellum e bellus? A mim parece evidente que na palavra bellus, tenhamos bis-ellum (illum), ou seja, uma divisão do sujeito que lhe permite se colocar em face do outro, em face do objeto. A beleza é algo que se olha. O olhar coloca em cena essa divisão que, na verdade, é uma distância (necessária) do objeto. É essa distância que permite ao sujeito ver e perceber a realidade. Eu diria que estamos não somente no campo da percepção visual, mas de todo tipo de percepção.

Voltemos, então, a essas duas modalidades, que são gêmeas e que lembram, estranhamente, algo de muito importante para a psicanálise: de um lado, o pai e o filho e, do outro, a divisão do sujeito. Sem divisão do sujeito não existe distância, e o sujeito não pode perceber nem se construir. Sem percepção não existe arte nem estética. Eu diria que a psicanálise é “bela”, pois traz essa divisão para o plano psíquico. Os dois termos opostos, bellus e bellum, têm, nesse caso, uma relação recíproca.

Eu compreendi isso quanto me deparei, surpreso, com um verso de um grande poeta alemão, Rainer Maria Rilke, em um de seus livros Elegias de Duíno (RILKE, 1993). Duíno é uma cidade que fica ao lado de Trieste, na Itália, onde Rilke sempre passava suas férias, à beira-mar. Um lugar formidável que aconselho todos a visitar. É estranho que o título dessas elegias nos remeta ao significante Duíno: pequeno dois. O nome dessa pequena cidade remete, então, ao número dois. É inacreditável constatar como os significantes têm o poder de criar, flanando livremente, solitários, na natureza.

A primeira elegia é: “Pois o belo apenas é o começo do terrível”. Poderíamos entender esse terrível (Schrecklichen Anfang) como algo negativo, feio, algo que faz oposição ao belo. Eu poderia fazer a paráfrase desse verso assim: o belo apenas é o começo do feio. Desse modo, a beleza está em tudo que começa e, por isso mesmo, está destinada a se degradar e a se tornar feia. Só um começo pode fazer barragem a essa degradação. O belo, a arte fazem essa barragem, essa oposição à degradação através da criação. O feio é a degradação, a destruição quando há guerra e conflito. Mas por quê? Porque não há arte, não há renovação, não há recomeço na guerra, e sim destruição. Na política, quando um partido ou mesmo um país não se renovam, eles vão em direção à sua própria destruição. Do mesmo modo, um sujeito, para continuar a existir, deve ser capaz de se renovar, de “tornar-se”.

Para terminar essa primeira conferência, eu diria que esse paralelo que se transforma em oposição, esse paralelo entre bellus e bellum, que propus hoje, nos permite uma reflexão que vou procurar desenvolver nas próximas conferências. Tanto beleza absoluta como feiura não existem. Isso porque elas são relativas. À destruição absoluta, se existisse, nós não teríamos acesso. Isso nos convida a pensar que uma visão que opõe os contrários de uma maneira maniqueísta – o bem contra o mal, o bonito contra o feio, a criação contra a destruição – é abstrata e não exprime verdadeiramente o “tornar-se” do real. O bonito que está no começo deve “tornar-se” continuamente. Se assim não for, se ele não for renovado por um novo começo, ele se degrada. Eu pergunto, então, se entre esses opostos não haveria algo no meio que seria capaz de articular esses dois limites. Na realidade, os conceitos-limite que se opõem e que estão separados, se reúnem no real, numa articulação singular que transforma os dois opostos em três, que seria o lugar do real e do “tornar-se”. A psicanálise se interessa por esse lugar três, terceiro. Sua aposta é conseguir colocar em movimento esses opostos que perderam seu movimento, é tentar articular o começo com o fim. Freud nos propõe articular Eros e Thanatos. Minha proposição é articular bellus e bellum.

 

Referências

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. Le séminaire, livre XXIII: le sinthome (1975-1976). Paris: Le Seuil, 2005.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 22: R. S. I. (1974-1975). Aula de 15 abr. 1975. Inédito.         [ Links ]

LOLLO, P. Psychanalyse, inconscient, universel et diversité. In: ______. Insistance. Questions sur l’Universel et la Diversité: Psychanalyse et Politique, Paris: Eres, v. 2 n. 8, p. 71-85, 2012.         [ Links ]

PLATÃO. Cratyle. Tradução de Catherine Dalimier. Paris: Flammarion 1998.         [ Links ]

RILKE, R. M. As elegias de Duíno. Tradução e introdução de Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio e Alvim, 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: insistance@free.fr

Recebido em: 25/04/2015
Aprovado em: 11/05/2015

 

 

SOBRE O AUTOR

Paolo Lollo,
Filósofo. Psicanalista. Pesquisador Associado da Universidade Paris 13 (Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie). Secretário da associação Insistance - Art, Psychanalyse, Politique. Membro do comitê de redação da revista Insistance (França) e da coleção Libertà di psicanalise (Itália). Clinica na Unidade de Psicossomática no Serviço de Estomatologia do Hospital Pitié-Salpêtrière.

 

 

1Primeira de três conferências proferidas no seminário Direito, Psicanálise e Sexualidade: Universal e Diversidade, realizado pelo Circulo Psicanalítico da Bahia em Salvador, nos dias 12 e 13 de dezembro de 2012. Em francês o neologismo sensxualité implica o sentido (sens) na sexualidade (sexualité). Para não perder esse sentido, optamos por traduzir por “sensoalidade”. (N. T.).
2Conceito criado por Jacques Lacan em 1956, para designar o significante da função paterna.
3A palavra ousia é o particípio do verbo einai (ser). É comumente utilizada com o sentido de “propriedade”. Foi traduzida como “essência” ou “substância”. Platão lhe deu a seguinte definição: “O que cada coisa é precisamente”.
4“O nome é essencialmente o tempo do objeto” (LACAN, 1975).
5Onoma deriva do grego antigo övuμα, ónyma, que é uma variação de övoμα, ónoma, e significa “nome”.
6A palavra voμóç significa parte, porção e tem a mesma origem gramatical de véuμw, que significa dividir, partilhar, no sentido de ordem, e mais adiante de lei. O nome (em grego, ovμóç / nomós) é uma antiga subdivisão territorial.
7Simbolicamente.
8“Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, verworfen, foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito” (LACAN, [1957-1958] 1998, p. 584).
9Servília, a mãe de Brutus, meia-irmã de Catão, teria estado durante algum tempo tão próxima de César que este tinha razões suficientes para considerar Brutus como seu filho biológico.
10O nome César vem da palavra latina caesare que significa cortar. Talvez faça alusão ao nascimento de Julius, que teria vindo ao mundo por meio da cesariana.
11César sempre tratou Brutus como seu protegido, o que não impediu o filho de Servília de ficar do lado de Pompeu na guerra entre ele e César. Foi pela causa republicana que Brutus pegou as armas e lutou contra seu protetor.
12Marco Júnior Brutus (velho) morreu no ano 77 a.C. quando Brutus tinha 7 anos de idade.
13Após a morte de seu pai, Catão de Utica se tornou o mentor de Brutus. Partidário da filosofia estoica, ensinou-lhe os seus princípios e o enviou à Grécia para continuar seus estudos.
14Do grego antigo, deriva de wv (ôn, ontos) que significa “estando, o que é”, e de λóyoç (logos, logia) que significa “discurso, tratado”.
15Sobre essa questão e sobre a relação entre universal e diversidade, ver LOLLO, 2012.
16Em francês, deux-ellum ressoa como duellum. A mesma ressonância não aparece em ‘dois-ellum’ e ‘duellum’.

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