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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.44 Belo Horizonte dez. 2015

 

 

Flexitempo e psicanálise em tempos virtuais

 

Flexitime and Psychoanalysis in Virtual Time

 

 

Magda Maria ColaoI; Janes T. Fraga SiqueiraII

I Universidade de Caxias do Sul
II Universidade de Santa Cruz do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A vida é urgente no século XXI. As avançadas tecnologias da comunicação são uma realidade contundente. Freud tem paixão pela verdade e fé inabalável na razão. O homem pode se tornar aquilo o que é em sua verdade, em sua potencialidade. O homem tanto pode conhecer sua realidade externa, o mundo atual, quanto compreender sua realidade interna com intuito de vir a ser completamente humano. Na consciência o simbólico é expresso como linguagem, brotando da necessidade, da exigência do intercâmbio com outros homens. A psicanálise é um percurso que se debruça no tempo, que expõe bem as mudanças trazidas na modernidade. A tomada de consciência é uma possibilidade nova, que se repete em cada ato humano e ciência. Na contramão do tempo tudo ficou mais flexível: flexitempo e acting out. Como está o tempo das pessoas?

Palavras-chave: Repetir, Recordar, Elaborar, Flexitempo, Consciência, Acting out.


ABSTRACT

Life is urgent. The advanced technologies of communication are an overwhelming reality. Freud has passion for the truth an unwavering faith on reasoning. People can become what they are in their effectiveness, in their potential. They can both know their external reality, today’s world, and understand their inner reality with the purpose of becoming completely human. In the consciousness, what is symbolic expresses itself as language, coming from the necessity and the demanding of exchange with other people. Psychoanalysis is a journey that looks over the time, which shows very well the changes brought from modernity. Becoming conscious is a new possibility, repeated in each human act or science. In the wrong direction of the time, everything became more flexible: flexitime and acting out. How is people’s time?

Keywords: Repeat, Remind, Elaborate, Flexitime, Consciousness, Acting out.


 

 

A psicanálise surgiu no início do século XX com o cientista Sigmund Freud. Temos, assim, uma teoria e uma prática para tratar o sujeito psíquico.

Galvão (1967, p.250) lembra:

[...] quando Freud substituiu a hipnose pela associação livre de ideias, foi se criando um corpo de conhecimentos, uma doutrina sobre o comportamento humano.

O pai da psicanálise tem fé na subjetividade humana, e o homem pode se tornar aquilo que é em sua verdade interior, em sua potencialidade. Desde seus primórdios a psicanálise desenvolveu, tomou corpo, ultrapassou fronteiras científicas e geográficas dando passo ao que hoje vem acolhendo, compreendendo, estruturando e refletindo mesmo de forma incipiente essa nova realidade virtual.

Castells (2003) indica: A galáxia da internet - é o tecido de nossas vidas. Outra linguagem a nosso dispor. Queiramos ou não, a tecnologia da informação pode ser comparada tanto a uma rede

[...] elétrica quanto ao motor elétrico, em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por todo o domínio da atividade humana (CASTELLS, 2003, p. 7).

Logo, a psicanálise está atenta ao novo aborde que emana da cibercultura, dos desafios da sociedade em rede, a nova prática humana da realidade virtual. A volatilidade do mercado de capitais via redes virtuais toca e promove o homem em fração de segundos tanto à melhoria das condições de seu sujeito psíquico quanto a rapidamente ruir, pela sua incapacidade de tolerar frustração, lidar com seus fracassos ou desenvolver acting out, encoberto por racionalizações ou como mecanismos de defesas ou uma manifestação de atuação de forma menos destrutiva ou não.

Bicudo (1967) registra que, quanto maior o fortalecimento da capacidade do ego de tolerar angústia, melhor será o processo do desenvolvimento do seu psiquismo e tanto mais aptos e competentes serão

[...] os mecanismos psíquicos de defesa. Por sua vez, a capacidade de o ego tolerar angústia depende da intensidade de frustração sobre ele impingida (BICUDO, 1967, p. 168).

Assim, a psicanálise carrega em sua estrutura a mais intensa força emocional de Freud, sua paixão pela verdade e sua fé inabalável na razão, a qual era, retoma Fromm (1965, p. 8):

[...] a única faculdade humana capaz de auxiliar a resolver o problema da existência ou, no mínimo, a mitigar o sofrimento inerente à vida humana.

As descobertas de Freud são parte de movimento libertador e sempre atento a sua época. Mas agora, na realidade interativa, a psicanálise metodologicamente continua enfrentando o mundo vigorosamente.

Fromm (1965, p. 129) alega que a defensiva da psicanálise é

[...] um movimento flanqueante, animado de velocidade e ímpeto de penetração. Encara a vida como quebra-cabeça intelectual [...] procura valores e significados mais profundos.

Freud tinha capacidade para ação com detrimento entusiasta, vigor e energia de que dispunha e capacidade insaciável para averiguar, experimentar

[...] em todos campos e relações. Amiúde briga por minúcias de somemos relevância e discute com os que não aceitam suas ideias e sua ajuda (FROMM, 1965, p. 129).

Fromm (1965, p. 130) interpreta as capacidades de Freud ao dizer que suas energias e ambições se acham

[...] sempre em choque. A inimizade e a raiva perturbam-no mais do que à pessoa comum, malgrado seu autodomínio seja superior ao da média.

Ressalta ainda Fromm (1965, p. 130) que Freud

[...] possui capacidade de concentrar-se prontamente e conhecer a fundo assuntos múltiplos. Isso, em suas melhores manifestações, aproxima-o do homem universal de Goethe.

Freud e Marx juntamente com Einstein foram os arquitetos da era moderna. Segundo Fromm (1965a, p. 16), eles estavam imbuídos da convicção de uma ordem fundamental da realidade, atitude básica que vê

[...] na natureza – de que o homem é parte – não apenas segredos a serem descobertos, mas um padrão e um sentido a serem explorados.

O homem, independentemente de Freud, acrescenta Fromm (1965a, p. 69),

[...] é o que se emancipou da dependência de sua mãe; o homem independente de Marx emancipou-se da dependência da natureza.

Para Freud, no tratamento psicanalítico, o sujeito necessita passar pelas etapas psíquicas de: recordar, repetir e elaborar. Em relação à dependência da natureza, o sujeito precisa de ação histórica transformadora. Isso é trabalho humano. Não há emancipação que se sustente à custa do esquecimento do passado (recalque).

Por mais humilde que seja cada tentativa de emancipação esta será salva do esquecimento, ou seja, reconhecida, honrada e rememorada (LÖWY apud KHEL, 2009, p. 86).

Freud em Recordar, repetir e elaborar sugere indagar o paciente para falar o que lhe vem à mente mesmo que tenha diante dele “[...] uma vida cheia de acontecimentos e uma longa história de doença” (FREUD, [1914] 1969, p. 196).

Esta é a regra principal da psicanálise: falar o que pensa/sente. Freud explica: em geral esperamos como psicanalistas que o paciente despeje muitas informações. Mas pode acontecer que ele não tenha nada a dizer. Agora, o que nos vem à mente quando nos damos conta de que estamos inseridos na cibercultura? Essa realidade midiática virtual nos sugere que o sujeito se expressa. Nessa forma de expressão é possível perceber o recordar, além do repetir e acting out. A mídia é o instrumento, e o flexitempo propicia a constante comunicação entre as pessoas em uma forma de gozo. O tratamento psicanalítico é pautado pelas veredas do repetir, recordar e elaborar.

Nasio (2014, p. 32) indaga: Repito, logo sou. Qual é a finalidade da repetição? A repetição essencialmente é uma tendência irredutível

[...] que não tem outro fim a não ser permanecer sempre uma força que avança e nos arrasta para nos tornarmos mais nós mesmos (NASIO, 2014, p. 32, grifo do autor).

Fromm (1965) no lema “ousar saber”, pontua que está impresso em toda a personalidade e obra de Freud. Os sentimentos e emoções estariam como irracionais, inferiores ao pensamento. A coragem para confiar na razão exige incorrer-se no risco de isolamento ou solidão, e essa ameaça é para muitos mais

[...] difícil de suportar do que dirigida contra a vida [...]. A verdade e a razão opõem-se ao bom senso e à opinião pública (FROMM, 1965, p. 15).

Conforme Fromm (1965, p. 8), a razão para o pai da psicanálise é o único instrumento – a arma – de que o homem dispõe para dar sentido à vida, prescindir das ilusões, buscar a verdade, o bom senso, e a racionalização. “[...] Nessa confiança no poder da razão, Freud foi um filho da era do iluminismo.”

A repetição tem a finalidade de produzir efeitos sobre nós. Nasio (2014) valida que preservar nossa unidade de indivíduo em nossa totalidade bem como desenvolver ao máximo nossas potencialidades é consolidar o sentimento de que somos o mesmo sujeito ontem e hoje. Assim, a repetição

[...] produz um triplo efeito benéfico: a autopreservação, o desenvolvimento pessoal e a consolidação de nossa identidade. Repetir nos estrutura, tranquiliza e faz bem (NASIO, 2014, p. 32, grifo do autor).

Por meio dos movimentos de repetir, recordar e elaborar, fases inter-relacionadas, o paciente, com ajuda do analista, entra em contato com o que estava oculto, habitado nas sombras de sua mente. O processo analítico se dá respeitando o tempo e o curso do tratamento. Tocar o impossível, “[...] tentativa de alcançar [...] o não dito, que nos habita e nos intriga sempre”, ilustra Sztajnberg (2014, p. 15). Esse processo lembra um abraço.

Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. Alento tenso, que pode virar despedida. Abraço é confissão. Abraço não pode ser rápido senão é empurrão. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho. Abraço é para atravessar o nosso corpo (CARPINEJAR, 2011).

Psique e mundo se encontram e nascem um com o outro, um para o outro. A angústia surge quando a libido é retirada de uma fantasia. E para Freud, um neurótico pode adoecer pelas vias da frustração, exigência da realidade e inibição do desenvolvimento, afirma Souza (1995).

A repetição é processo típico da expressão psíquica inconsciente, leva a reiterar sistematicamente certas experiências, pensamentos, ideias ou representações com uma regularidade variável e uma fixidez real (MIJOLLA, 2005, p. 1605, v. 2).

Segundo Nasio (2014, p. 9, grifo nosso) o inconsciente é a repetição. É uma estrutura organizada

[...] como uma linguagem, prefiro aqui considerá-lo como uma pulsão, uma força propulsora. O inconsciente é a força soberana que nos impele a escolher (NASIO, 2014, p. 9).

Nasio (2014) distingue duas categorias psicanalíticas: a repetição sadia e a repetição patológica. Neste momento manifestamos nossa preferência por pensar que o flexitempo da nova ordem, o tempo linear e a realidade virtual se relacionam à repetição patológica e podem sugerir um acting out. Em compensação, o inconsciente é a força que nos leva a reproduzir compulsivamente os mesmos: fracassos; traumas; comportamentos doentios e também repetição é uma repetição patológica, e o inconsciente, uma pulsão de thánatos.

Todavia seja o inconsciente uma pulsão de vida ou de morte, seja a causa de nossas condutas repetitivas saudáveis ou patológicas,

[...] a única coisa certa é que ele, o inconsciente, rege a aparição e a reaparição dos acontecimentos marcantes que constroem nossa existência (NASIO, 2014, p. 10).

Nasio (2014, p. 25, grifo do autor) chama atenção para a “repetição do Mesmo”: a lei do Mesmo e do Diferente. O mesmo nunca se repete idêntico a si mesmo. Repetição numa acepção ampla constitui um movimento universal, uma pulsação que rege a ordem

[...] biológica, psíquica, social e até mesmo cósmica. Há milhares de anos a Terra repete invariavelmente a mesma órbita elíptica ao redor do Sol (NASIO, 2014, p. 25).

A repetição para Nasio (2014) é a repetição do mesmo fenômeno que reaparece, mas nunca idêntico a si mesmo, sempre um pouco modificado a cada vez que ressurge. Cada vez que a Terra gira ao redor do sol, gera uma mudança infinitesimal. A Terra é,

[...] a cada órbita, sempre a mesma, porém nunca absolutamente idêntica, uma vez que o desgaste do tempo a impede de se manter intacta (NASIO, 2014, p. 25).

Mas ratifica Nasio (2014) para afirmar que algo se repete no tempo, não basta observar que ela permanece a mesma, embora modificada. Urge

[...] constatar que ela se ausente entre duas presenças. Constatação que justifica a segunda lei, a lei da alternância da presença e da ausência (NASIO, 2014, p. 26, grifo do autor).

A terceira lei, essencial ao movimento repetitivo, Nasio (2014, p. 26, grifo do autor) trata como:

[...] intervenção de um observador que enumera a repetição. Esta é uma evidência muitas vezes esquecida: sem observador, não existe repetição!

Ou seja, na realidade é o resultado de um procedimento mentalizado, pensa Nasio (2014). A existência da repetição exige um agente humano (eu, tu, ele, nós vós, eles). É necessário antes uma consciência que identifique um acontecimento,

[...] da vida e conte o número de vezes em que ele sobe à superfície. Que transforme em significantes. Não existe significante sem repetição, alega Nasio (2014, p. 27).

Se falarmos das estruturas políticas e sociais, é necessário pensar que elas determinam um comportamento humano para sua adaptação ao trabalho. Podemos dizer, em acordo com Freud [1930], que

[...] as relações do homem com o trabalho infelizmente não o consideram, antes de qualquer outro valor, dentro de suas possibilidades de satisfação (LAZARINI, 2014, p. 65).

A grande maioria das pessoas trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis (FREUD, [1930], 1974, p. 99).

Essa afirmação nos anima a dizer que, com a exigência do comportamento humano flexível, ideia que se baseia a princípio na natureza1 propõe o tempo flexível de trabalho.

O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade é um tempo do novo poder (SENNETT, 2010, p. 69).

O flexitempo, na revolta contra a rotina, com sua aparência de nova liberdade é enganosa. O trabalhador, segundo Sennett (2010), pode não estar atrelado à rotina da fábrica, mas entretecido numa nova trama de controle. Os turnos fixos de trabalho deram lugar a um mosaico de pessoas trabalhando em horários diferentes. A recompensa do flexitempo é contraditória.

Se, por um lado, o ato de colocar o trabalhador no domínio íntimo da instituição, esse ‘prêmio’ causa profunda ansiedade entre os empregadores porque temem perder o controle sobre os trabalhadores ausentes,2 por outro lado, causa angústia e ansiedade também no trabalhador. Sentem-se culpados.

Em consequência, criou-se um monte de controles para regular os processos de trabalho concreto dos ausentes do escritório (SENNETT, 2010, p. 68).

Se o significado de flexível se baseou na observação das árvores cujos galhos, ao se dobrarem ao vento, sempre voltavam ao normal, a flexibilidade do comportamento humano no trabalho pode, então, designar a mesma capacidade de ceder e se recuperar da árvore. O comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas.

Sennett (2010, p. 53) analisa que a sociedade hoje busca meios

[...] de destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. As práticas de flexibilidade, porém, concentram-se mais nas forças que dobram as pessoas.

Sennett (2010) traz exemplos dos escritos de Diderot na fábrica de papel e dos ‘hábitos’ retratados por Giddens, que exemplificam o primeiro sentido de tempo mutante mas contínuo em contraste com a mudança flexível de hoje, que

[...] ataca a rotina burocrática, busca reinventar decisiva e irrevogavelmente as instituições, para que o presente se torne descontínuo com o passado (SENNETT, 2010, p. 55).

Ao falar da culpa dos trabalhadores, lembramos com Freud o mito do parricídio, que tornou possível a passagem de uma cultura primitiva a outra cultura. Esse mito deu origem ao sentimento de culpa o qual temos que admitir, segundo Freud ([1930] 1974) que existe antes do superego, e, portanto, antes da consciência também. E ainda, o sentimento de culpa é expressão imediata do medo da autoridade externa,

[...] um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva cuja inibição produz a inclinação para a agressão (FREUD, [1930], 1974, p. 161).

Freud analisa que as exigências impostas por um modelo de organização social como privação à satisfação pulsional só fizeram sentido quando o homem primitivo

[...] descobriu que estava em suas mãos – literalmente falando – melhorar o seu destino na terra por meio do trabalho (LAZARINI, 2014, p. 64).

Logo, nas mãos do homem está seu destino histórico e de relações com a natureza e com o outro. Mas as relações com o outro e com o tempo do outro não podem prescindir da possibilidade de melhorar a relação consigo mesmo. De saber-se humano numa sociedade que o acultura para que renuncie as suas pulsões agressivas.

Enfim, “sou aquilo que repito”, diz Nasio (2014, p. 33). O que em nós se repete? Em mim se repete aquilo que já aconteceu:

[...] meu passado, um passado que volta sem cessar no presente, [...] sob três modos de reincidência: na consciência; nos atos sadios; e nos atos patológicos (NASIO, 2014, p. 39).

O artigo de Freud ([1914] 1976) Recordar, repetir e elaborar versa sobre os embates do aparelho psíquico às voltas com traumas, justamente por não poder recordar o fenômeno que se passou, do empenho para não recordar, enquanto que a possibilidade de elaboração é representada pela inserção da história na cadeia psíquica.

[...] O desafio é o sujeito elaborar sua própria história, é a possibilidade de ligar fatos que estavam desligados e, assim, efetuar avanços para seu desenvolvimento pessoal (WEISS, 2008. p. 438).

O essencial no recordar é ter a oportunidade de dar outra narrativa à recordação, que não é uma noção de origem psicanalítica, mas que adquire em psicanálise o significado de representação consciente do passado, ou seja, suspeita de ser em parte ilusória porque, segundo Mijolla (2005), disfarça a memória inconsciente, mas possui, não obstante, o valor de uma evidência para o Eu que procura se fortalecer com ela. A noção de representação específica vista nos primeiros trabalhos de Freud consagrados à

[...] teoria das neuroses (1894, 1895, 1896), a reminiscência patogênica da sedução traumática; ela será estendida em seguida à noção de lembrança de infância (MIJOLLA, 2005, p. 1577. v. 2).

Segundo Nasio (2014, p. 99) os modos de retorno ao passado são “[...] o retorno consciente, ou rememoração, o retorno agido em atos sadios e o retorno agido em atos patológicos”.

Para Freud, a pura verdade é que voltamos sempre aos nossos primeiros amores. O estado amoroso é apenas uma reedição de traços antigos (FREUD, [1914] 1969, p. 108). A resistência vai contra o recordar.

Freud [1914] esclarece que o paciente repete em vez de recordar e sob as condições da resistência, e questiona o que de fato repete ou atua (actus out). Repete tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade

[...] manifesta – suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também todos os seus sintomas, no decurso de seu tratamento (FREUD, [1914] 1969, p. 198).

O caminho é superar as resistências. A repetição produz um efeito: o sujeito do inconsciente. A repetição patológica é compulsiva; a repetição sadia não é compulsiva (NASIO, 2014, p. 76).

A elaboração é um processo lento e trabalhoso, que tem por objetivo a inserção desse novo conhecimento ou de uma determinada experiência vivida na trama histórico-existencial da pessoa. É um processo sempre transformador, um aspecto decisivo de qualquer tratamento. A mente tenta elaborar uma experiência: através da consciência, da reencenação, da experiência de meios culturais (livros, teatro, cinema, televisão, etc.).

Acting out é a passagem ao ato. O repetir sem saber, sem pensar. Uma vicissitude especial da patologia do pensamento que está ligado a uma forma de se manejar

[...] com a realidade, que recorre à ação em vez de pensar [...], surge de uma tentativa regressiva de converter o pensamento em ato. (ETCHEGOYEN, 1989, p. 428).

Uma substituição à lembrança de, algo que se faz em vez de. Um ato não simbolizável pelo sujeito, que perturba a obtenção de insight e não cria sentido. Uma demanda de simbolização dirigida a (um) outro serve para “evitar” a angústia ou defensa contra a ansiedade.

Em Roudinesco (1998, p. 5) acting out é a maneira

[...] como o sujeito passa inconscientemente ao ato, fora ou dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança recalcada.

Acting out, salienta Roudinesco (1998, p. 5):

[...] Designa o mecanismo pelo qual um sujeito põe em prática pulsões, fantasias e desejos. Aliás, convém relacionar essa noção com a de ab-reação.

Esse mecanismo, conecta Roudinesco (1998), tem relação à rememoração, à repetição e à elaboração. O sujeito “traduz em atos” aquilo que esqueceu.

Borgogno (2004, p. 17) afirma que

Freud estava tão à frente que muitas de suas próprias formulações, de seus ideais, de suas teorias estavam, por inúmeros aspectos, distantes dele mesmo e nem sempre e não totalmente conscientes.3

Seu rumo à observação psicanalítica, na direção de um ideal de conhecimento, exigiu-lhe um longo trajeto interior, e isso requer tempo, investimento. Freud tinha um ideal de conhecimento.

Conta Borgogno (2004) que Freud sempre enfrentou as contradições tanto contrastado com, como solicitado por e

[...] acompanhado de outros estímulos, modelos e teorias mais apropriados a seu tempo e à imagem de ciência e de conhecimento mais aceita na sua época (BORGOGNO, 2004, p. 18).

A psicanálise tem facilidade para se difundir e se movimentar num contexto novo, como a realidade virtual de hoje que está inserida na ‘gênese de um novo mundo’. Por exemplo, o grande desenvolvimento tecnológico, científico, biológico não acompanha pari passu o desenvolvimento social.

Em Castells (2012) a era da informação é vista como desencadeamento de uma capacidade produtiva jamais vista, mediante o poder da mente: penso, logo produzo. Com isto, teríamos tempo

[...] disponível para fazer experiências com a espiritualidade e oportunidade de harmonização com a natureza sem sacrificar o bem estar material de nossos filhos. (CASTELLS, 2012, p. 437).

Com as investigações freudianas é surpreendente verificar que a psicanálise

[...] não deixa de ser um produto histórico, vale dizer, só formulável a partir de certas circunstâncias historicamente dadas, que marcam intrinsecamente (FIGUEIRA, 1997, p. 15).

A questão do tempo é uma categoria do materialismo dialético que em psicanálise passa por numerosas noções, como as de repetição, regressão, fixação ou ritmicidade. Freud também se exprimiu diretamente a respeito do tempo. A priori Freud sublinhou a intemporalidade do sistema inconsciente. Por outra parte, narra Mijolla (2005), Freud propõe que se veja a origem da representação do

[...] tempo na relação descontínua que o sistema Pré-consciente-Consciente mantém como mundo exterior, estando a dimensão do tempo ligada, portanto, aos atos de consciência. (MIJOLLA, 2005, p. 1853. v. 2).

Freud liga igualmente a representação do tempo e a do espaço, podendo a segunda substituir a primeira nos processos inconscientes, relata Mijolla (2005, p. 1853. v. 2)

Toda a patologia mostra como a sucessão temporal não é respeitada, o que também se vê

[...] na fantasia que reúne passado, presente e futuro numa mesma representação, e na neurose de transferência, que repousa sobre o anacronismo dos afetos (MIJOLLA, 2005, p. 1853. v. 2).

Enfim, a intemporalidade dos processos inconscientes parece estar presente desde os primeiros escritos de Freud.

[...] Numa nota acrescentada em 1907 à Psicopatologia da vida cotidiana (1901) Freud escreve: “O Inconsciente é totalmente atemporal” (MIJOLLA, 2005, p. 1853. v. 2).

Como fica a subjetividade humana com representações de tempo quase incompatíveis a uma vida saudável? A dimensão temporal ligada aos atos de consciência objetiva, exigida pelo trabalho, e a intemporalidade dos processos inconscientes que requer outro tempo, o tempo de recordar, repetir e elaborar. O que é a temporalidade psíquica?

[...] A maneira como os processos psíquicos criam a sua própria gestão do tempo em função de três possibilidades que constituem a regressão, a fixação e a antecipação (MIJOLLA, 2005, p. 1855, v. 2).

Então, o flexitempo como uma forma de alienação do homem é um acting out social. O flexitempo criado pela nova ordem e explicado por Sennett (2010) deveria ser um privilégio e uma escolha humana, de organização para o tempo de vida, e não com sentido de desumanização inferiorizante. O tempo como escolha humana e organização de vida permitiria o elaborar.

Vale decir preciso
O sea necesito
Digamos me hace falta
Tiempo sin tiempo.

MARIO BENEDETTI

 

Referências

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Endereço para correspondência

Magda Maria Colao
E-mail: magdacolao@gmail.com

Janes T. Fraga Siqueira
E-mail: janes.siqueira@hotmail.com

Recebido em: 04/09/2015
Aprovado em: 13/10/2015

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Magda Maria Colao
Doutora em educação pela UFRGS.
Psicóloga, orientadora educacional, pedagoga.
Professora adjunta da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Pesquisadora da linha de pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação - FACED/UFRGS.
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores para o Mercosul/Cone Sul e do núcelo de pesquisa Proteção Jurídica do Meio Ambiente e Saúde - UCS.
Candidata em formação psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise do CPRS.

Janes T. Fraga Siqueira
Doutora em educação pela UFRGS.
Professora adjunta da Universidade de Santa Cruz do Sul.
Mestre em educação pela UNISC. Linha de Pesquisa: educação, trabalho e emancipação e trabalho, movimentos sociais e educação - FACED/UFRGS.
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores para o Mercosul/Cone Sul.
Candidata em formação psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do CPRS.

 

 

1 Força tênsil das árvores e no desejo e necessidade da mulher, também mãe de trabalhar em horários flexíveis.
2 Trata-se dos que por alguns momentos ou parte do dia trabalham em casa, “o mais flexível dos trabalhos” segundo Sennett (2010, p. 68). Desconfiam de que os que ficam em casa abusam dessa liberdade.
3 Em O mal-estar da civilização, ao se referir à moral sexual e às pulsões, Freud ( [1930] 1974, p. 126) escreve: “Às vezes, somos levados a pensar que não se trata apenas da pressão da civilização, mas de algo da natureza da própria função que nos nega a satisfação completa e nos incita a outros caminhos. Isso pode estar errado; é difícil decidir”.

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