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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020
PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA
Quarentena, o bem que ela nos faz1
Quarentine, the good it does to us
Carlos Pinto Corrêa
I Círculo Psicanalítico da Bahia
II Campo Psicanalítico
RESUMO
A quarentena é uma invenção legal. De início seria um tempo livre favorecendo o usufruto para pensar sem compromisso. Na verdade, nova forma de pensar cujos propósitos não são suficientemente claros. Retiradas as metas assertivas, a quarentena é uma condenação à revisão de erros pelos quais a humanidade tem que se responsabilizar. O autor lembra que a proposta parece um surto inimaginável e até seu impacto não real. É surpreendente, exigindo que a população tente avaliações inventadas. Existe ainda a necessidade de vivê-la sem desespero enlouquecedor ou apatia, enfrentar um coletivo duro e ameaçador, antecipando a solidariedade que será exigida.
Palavras-chave: Quarentena, Entendimento, Tempo, Experiência de vida, Mudança social.
ABSTRACT
Quarantine is a legal invention. At first it would be free time favoring the enjoyment of thinking with no compromise. In fact, a new way of thinking whose purposes are not clear enough. With the assertive goals removed, quarantine is a condemnation to review the errors humanity must take responsibility for. The author recalls that the proposal seems like an unimaginable outbreak and even its non-real impact is surprising, requiring people to try invented evaluations. There is also a need to live it without maddening despair or apathy, to face a tough and threatening community, anticipating the solidarity that will be demanded.
Keywords: Quarantine, Understanding, Time, Life experience, Social change.
Fui chamado a escrever sobre a quarentena, tema borbulhante que, segundo se acredita, deve mudar o mundo. O que há de ser de todos nós? Pronto para fantasiar, pensei sobre os novos tempos desconhecidos, vendo pessoas animadas falando dos novos tempos como se produzissem um conto. Não se pode esperar uma história cativante, mas duramente aceitar tornar-se personagem de uma história equivocada e sem futuro.
De minha parte, com a quarentena votada e autorizada pelo poder público, ganhei um curioso intervalo, que nunca imaginei existir. Uma invenção legal. Como todo mundo, fui convocado a ficar em casa, sem trabalhar no consultório, proibido de contatos de fora, aulas, sair às ruas, visitar ou ser visitado. Surgiu um perigo iminente que precisava ser evitado a qualquer custo. Teria, então, dias somente para mim, comigo mesmo, talvez ler ou escrever, quem sabe? Um tempo livre em que não seria obrigado a preencher com qualquer tipo de compromisso; ao contrário, uma oportunidade divina para usufruir, sem saber de que ou em nome de quem.
Ocorreu-me estar intimado a pensar, simplesmente pensar, deixar que as ideias fluíssem sem compromisso, sem buscar uma conclusão inopinada, desnecessária, mas vejo-me inclinado para um roteiro de crítica literária, entendendo-se minha atração pela revisão do que foi lido e escrito por mim. Quando sentimos que o mundo todo vai mal, como acontece em nossa quarentena, podemos buscar conforto em autores e obras que nos consolam. Mas lembrando o que disse Azevedo (2020, p. 13): "Embora se alimente da vida prática, a literatura não é sua refém".
O objeto literário produz seus próprios sentidos tantas vezes alterados na vida social, que é capaz de agir criando fronteiras, derrubando muros, reinventando as pessoas, transformando territórios. A produção literária sempre foi decisiva como criadora de costumes, inovadora de revisões éticas e proposições ideológicas que chegam a estabelecer utopias defendidas no exercício da sociologia, incluídas no índex dos pecados graves ou na presunção da santidade e ainda elemento crítico da evolução suprema para a humanidade. Vamos à pergunta crucial de Antônio Cândido (1965, p. 05) com uma das questões fundadoras da teoria literária: "Qual seria a relação entre a literatura e sociedade?"
Comumente, a opinião pública e a canonização garantem à obra literária o direito de ser considerada humana, com interpretação e relevância no discurso social. Não é na cena edificante e na perfeição literária que se encontra o sublime da obra literária. "É do erro e não da santidade que sai nossa essência humana", como defendeu Alice Walker (2020).
O momento em que lembrei com perplexidade contingencial, é também sugestivo para um entendimento sociológico. Chegamos à anomia (ausência de valores) ou à disnomia (confusão de valores) e ainda à supressão de elementos essenciais da vida ordinária pelas transformações recentes que viraram o mundo com a atual quarentena. Novas formas de pensar, cujos propósitos ainda não estão suficientemente claros mesmo com a pretensão de escapar das meras repetições.
Por outro lado, estamos descobrindo que as certezas contidas nas repetições bíblicas e históricas estão esgotadas, sugerindo que muitas mudanças se iniciam pelo anseio de transformações ainda sem propósitos.
Não temos mais metas assertivas. Nosso novo ponto de partida é a consciência do erro. A quarentena não é somente uma condenação à revisão de erros pelos quais a humanidade tenta se responsabilizar. Ela inclui outra questão, que é a interrupção da série histórica, onde todos estavam situados. O corte sugere dúvidas angustiantes sobre até quando iremos, quais os efeitos da suspensão da economia e da carreira como vinham sendo trilhados e os resultados até então buscados pelas pessoas.
A proposta da quarentena produz um surto inimaginável com seu impacto não real e surpreendente. Todos vivemos o suspense nesta experiência inusitada, que exige da população avaliações inventadas.
No segundo dia de vigência desta quarentena, acordei sobressaltado com a questão que a humanidade estava ameaçada de perder o seu futuro. Isso me inquietou terrivelmente.
Como imaginar, agora, a inexistência desse tempo verbal, que fixa o porvir, até então essencial para a compreensão das possibilidades de vida e os caminhos a seguir?
Não estou tratando da morte com seu luto habitual, mas do término de tudo que vinha sendo construído. Qual o novo rumo?
Sem futuro, o que pensar, conquistar ou vencer?
Como reacionário e oportunista, apenas grito que o futuro precisa continuar existindo, que é uma espécie de garantia para voltarmos à indispensável conjugação verbal.
Santo Agostinho implicou-se na reflexão temporal, lembrando que o passado não existe. Foi. O presente é fugaz. Uma ameaça que logo se perde entre o acontecido e as suposições e fantasias, não podendo ser apanhado em sua concretude. O futuro, promessa ou quimera, sugere a tentativa de segurar o que, não existindo antes, logo será também passado, escapando do fugidio atual (presente). Seria a descoberta do ser sem tempo?
Para não ficar perdido no tempo, restou-me compartilhar no campo da perdição, ou aprofundar nas possibilidades da invenção literária, como se tivesse direito de reinventar nossa própria vida. Não é por aí que encontramos novas chances como o pensar literário nos dá?
Na vigência desta quarentena, pude terminar meu livro Caminhos em versos , poesias envergonhadas e engavetadas que, sem escândalo, podem ser publicadas em modesto compartilhamento. Retomei também um romance interrompido, no qual Ruy, o personagem principal, atua em contraponto com os colegas acadêmicos usando de originalidade para o enfrentamento do seu dia a dia.
Seria o momento da busca de nova forma de viver, privilegiando o pensar o livre pensar, como proposta de vida?
Seria o momento de criticar o apreço ao mundo do capitalismo triunfante?
Ou precisamos de uma discussão desordenada e sem protocolos, investindo, segundo Godard (2018), em uma desconstrução da representação do mundo?
E a integração do pensamento à narração, deve estar mais próxima do pensamento do que do relato?
O "bem" que a quarentena sugere esbarra na nossa vulnerabilidade, não só das propostas de soluções hipotéticas, como ainda se perde ante a urgência de um tempo que se esgota como ameaça em qualquer conflito sem solução.
Na verdade, os conflitos correspondem a uma supressão de controle do sujeito inaugurado por uma inércia, vetor de angústia, que também precisa ser resolvida. A psicanálise nos ensina que as questões traumáticas pendentes podem gerar saídas pela negação ou pela postergação, favorecendo o desenvolvimento do conflito, graças aos componentes patógenos agravados na formação de sintomas, comumente mais comprometedores que o próprio mal de origem.
As transformações da modernidade associadas à globalização são importantes desencadeadoras de novas contingências, desafios que exigem novas soluções. A experiência a que estamos submetidos com a quarentena, fixa um estado máximo de sujeição do homem a limites até então impossíveis de ser pensados. O Comando Sanitário balizou a locomoção, a interação social, a comunicação da população, a restrição a viagens e deslocamentos geográficos, a censura das reuniões sociais, inclusive comemorações, a liberdade de ir e vir, de usufruir da rua, sugerindo que estamos todos presos e condenados por um crime sem perdão.
A nós, psicanalistas, incomodou saber os aspectos patogênicos das novas exigências e como as pessoas teriam seu humor alterado a partir da nova lei. Em pouco tempo, nossa clínica já mostra sinais do agravamento das condições psicológicas pela nova forma de viver. A reação das pessoas assim limitadas segue entre a raiva e o desespero.
Sem pesquisas, já observamos uma casuística, que, partindo de formas iniciais de aceitação, cresce em torno do não entendimento do que nos é ainda incompreensível e perturbador, agravado pela falação política, às vezes dramática, que leva as pessoas menos estáveis ao desespero. Mudanças das pessoas que, mais uma vez, estarão diante da própria fragilidade ao ocupar a posição de agente de transformação do outro. Freud lembrou que o homem ajuda a construir o seu destino. Eu diria que sua função, como construtor, é muito relativa.
A Covid-19 não é um fenômeno psíquico ou subjetivo, mas está no domínio de um fato social que exerce uma coerção inegável sobre os indivíduos. Não pode também ser sintetizada como um acontecimento médico já que tem se mostrado um provocador de mudanças na identidade social.
Como lembra Castro (2002), as alterações das mudanças de identidade social são ao mesmo tempo instrumento de transformação das relações sociais, isto é, nos permite fazer uma distinção entre os processos fisiológicos e os processos sociológicos; transformações do corpo, das relações sociais e dos estatutos que as considera uma coisa só.
Esse autor lembra que
As mudanças corporais não podem ser tomadas apenas como signos das mudanças de identidade social, mas como seus correlatos necessários, e mesmo mais: elas são ao mesmo tempo a causa e o instrumento de transformação das relações sociais. Isso significa que não é possível fazer uma distinção entre processos fisiológicos e processos sociológicos; transformações do corpo, das relações sociais e dos estatutos que as condensam são uma coisa só. Assim, a natureza humana é literalmente fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os sentidos possíveis da palavra, pela sociedade (CASTRO, 2002, p. 72).
A experiência que estamos vivendo nos permite lembrar que o social não se deposita sobre o corpo como um suporte inerte, mas o constitui. Isso abala marcações aceitas e praticadas na psicanálise sobre a relação do sujeito com o corpo. De outro modo, a doença ou a ameaça da doença epidêmica sugere uma metamorfose, desordem, regressão e transgressão, não como consequências, mas como um fenômeno inusitado e surpreendente que leva as pessoas a uma necessidade extrema de restaurar ou proteger a própria vida.
Referências
AZEVEDO, L. M. Mínimos múltiplos e incomuns. Posfácio. In: WALKER, A. A terceira vida de Granger Copeland. Porto Alegre: Clube de livros TAG - Experiências Literárias, 2020. [ Links ]
CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. [ Links ]
CASTRO, E. V. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. [ Links ]
GODARD, J.-L. O demônio das onze horas. São Paulo: Publifolha, 2018. (Coleção Folha Grandes Diretores do Cinema. [ Links ])
WALKER, A. A terceira vida de Granger Copeland. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: cpintoc@uol.com.br
Recebido em: 30/05/2020
Aprovado em: 10/06/2020
SOBRE O AUTOR
Carlos Pinto Corrêa
Psicanalista.
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Membro honorário do Campo Psicanalítico.
1 Um pouco da perplexidade contingencial que sugere a dúvida inicial sobre a eficiência do isolamento como medida única para preservação da saúde coletiva. Texto apresentado originalmente na Oficina de Criação Literária e Psicanálise do Campo Psicanalítico Salvador, em 08 maio 2020 e, com posterior revisão, apresentado em live no Círculo Psicanalítico da Bahia em 01 jul. 2020.