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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021
AUTOR CONVIDADO
A psicanálise: impacto da realidade social
Psychoanalysis: the impact of social reality
Juan Flores
Tradução: Bernardo Maranhão
I Universidade Adolfo Ibáñez
II Sociedad Chilena de Psicoanalisis
III Federación Latinoamericana de Asociaciones de Psicoterapia Psicoanalítica y Psicoanálisis
RESUMO
O questionamento da "objetividade" supõe presumir que toda teoria é abordada a partir de um lugar e que isso supõe aceitar a existência de um "viés". Por isso, é preciso admitir que o panorama observável depende do ponto de vista do observador, e renunciar então às pretensões de totalidade de "universalidade" do observado. A assunção dessa perspectiva pode levar a reconhecer a implicação do lugar a partir do qual se trabalha e se pensa. No entanto, essa tomada de partido supõe uma ótica que leve em conta o atravessamento inevitável do conflito social e a contradição histórica em toda empreitada de conhecimento. A única "objetividade" esperável seria aquela que não esconde seus valores, mas assume consciente e explicitamente os pressupostos que a sustentam.
Palavras-chave: Psicanálise, Objetividade, Ideologia, Contratransferência, Conflito social.
ABSTRACT
The questioning of "objectivity" presupposes that all theory is approached from a place and that this presupposes accepting the existence of a "bias". Therefore, it is necessary to admit that the observable panorama depends on the observer's point of view, and then to renounce the pretensions of totality of "universality" of the observed. The assumption of this perspective can lead to recognizing the implication of the place from which one works and thinks. However, this taking a party assumes a perspective that takes into account the inevitable crossing of social conflict and the historical contradiction in every endeavor of knowledge. The only "objectivity" to be expected would be one that does not hide its values, but consciously and explicitly assumes the presuppositions that support it.
Keywords: Psychoanalysis, Objectivity, Ideology, Countertransference, Social Conflict.
O pesquisador, o analista
Crítico da psicanálise e de seu método, Karl Popper, sustenta que
[...] a objetividade se encontra intimamente ligada ao aspecto social do método científico, ao fato de que a ciência e a objetividade científica não resultam (nem podem resultar) dos esforços de um homem de ciência individual por ser 'objetivo', mas da cooperação de muitos homens de ciência. (POPPER citado por BARANGER, 2004, p. 172).
Esse critério, que separa a objetividade das pretensões de "imparcialidade" (aspiração que implicaria desumanizar o observador ou concebê-lo como "dessocializado") para aproximá-la de uma sorte de resultado estatístico surgido da integração de muitos pontos de vista diferentes (e tão mais aproximado quanto mais se acerque a amostra ao que é pedido pelo enunciado dos "grandes números"), abre as portas para o debate da atribuição de "objetividade" à sociedade e à história.
Sob essa ótica já não se busca manter afastada a subjetividade do pesquisador pretensão ilusória e inútil mas incorporar outras subjetividades equivalentes. Sociedade e história constroem, assim, uma "objetividade" que deve incluir os conflitos e questiona uma pretensa "imparcialidade" por uma "parcialidade múltipla" que daria conta exata das relações de força em cada momento.
Sobre o tema da objetividade, coloca-se para a psicanálise um problema relevante: não pode contentar-se com uma mera repetição dos slogans genéricos que se aplicam em outras ciências, por "duras" que sejam e por mais que ostentem prestígio. A necessidade de circunscrever o objeto, afastando tanto quanto possível as perturbações que as "projeções individuais" produzem, de saber como objetivar a relação com o objeto de modo tal que o discurso sobre o objeto não seja uma simples projeção de uma relação inconsciente com o objeto. (BOURDIEU citado por BARANGER, 2004, p. 181).
Essa tarefa exige uma análise profunda das relações e implicações entre sujeito (pesquisador, analista) e objeto (fenômeno, paciente), e de ambos com o marco de referências imediato da observação (teoria, enquadre, etc.) e, ainda mais além, com o contexto histórico-social, determinante último das condições de existência e desenvolvimento de cada um desses elementos.
Em outras palavras, requer um trabalho detalhado sobre a transferência e a contratransferência, capaz de penetrar na complexidade de implicações recíprocas e filtrar as interferências, que não são "impurezas" mas o próprio material que a análise permite para gerar o processo de conhecimento.
Nesse sentido, assinala Bachelard citado por Baranger (2004, p. 177) que,
[...] se o conhecimento consiste na implantação de relações entre o sujeito e o objeto e se a objetividade é uma conquista sobre a subjetividade original, toda ciência em estado nascente e todo espírito em vias de formação encontrarão obstáculos em sua marcha para a objetividade.
É necessário matizar o significado essencial e talvez o caráter de "conquista" atribuído à objetividade, já que ela só pode ser um horizonte possível na medida em que saibamos quais são os obstáculos que dificultam o caminho para o conhecimento, no qual habitam o mais significativo das relações entre sujeito e objeto, e já que, portanto, não se trata de evitá-los e sim de fazê-los falar, de estar atentos ao que os levou a adotar essas formas, de averiguar por que se organizaram dessa e não de outra maneira.
Desde o início, todo conhecimento está atravessado ("contaminado") pelo próprio observador, com tudo o que este inclui em termos de implicações sociais, políticas e culturais.
Para Bachelard citado por Baranger (2004, p. 177),
[...] a primeira objetividade, o contrato espontâneo e imediato que o espírito estabelece com o objeto, numa palavra, o conhecimento sensível, é uma aproximação carregada de projeções individuais. O papel da psicanálise é nos fazer tomar consciência desse fato.
A rigor, é necessário assinalar que tampouco a própria psicanálise está isenta dessa "contaminação": no máximo, tem consciência disso e pode assim se manter atenta a seus efeitos, eludindo as armadilhas que o manifesta semeia no caminho do conhecimento.
De fato, para Bourdieu citado por Baranger (2004, p. 167),
[...] quanto mais 'realista' for a descrição da prática científica, menos acessível será a consecução da objetividade.
A chamada "interferência do observador na observação" já é um tópico nas ciências, e não só nas "sociais". E sequer as ciências "duras", aparentemente blindadas em seu método, ignoram hoje que a observação contém o dispositivo e o instrumento, mas também o próprio observador, sua localização no mundo, e que as teorias em que ele se apoia alteram a cena e perturbam o objeto de estudo.
Nas "ciências humanas" e na psicanálise isso assume inclusive um papel de destaque essa comprovação é ainda mais óbvia.
Bourdieu citado por Baranger (2004, p. 181) declara que
[...] o sociólogo [em nosso caso diríamos "o psicanalista"] deve esclarecer o que sua prática deve à sua posição social, com relação ao que vê e não vê, o que faz e o que não faz [...]
Seu "ser social" (usando uma terminologia marxiana) é, com efeito, o que determina sua capacidade de ver e atuar, engendra os instrumentos e conhecimentos de que se vale, alimenta os propósitos que o alentam, define os critérios de verdade que guiam seus passos e fixa os valores e normas com os quais avaliará os resultados obtidos.
Essa exigência implica a maneira particular de relacionar-se com o objeto de conhecimento que é característica da psicanálise, maneira que se apoia justamente, pela via da análise da transferência e da contratransferência, no papel assumidos pelos vínculos sujeito-objeto e analista-paciente, na produção de conhecimento e na transformação da realidade subjetiva.
Quanto à implicação do contexto histórico-social na produção do conhecimento, quer provenha das condições "objetivas" da investigação, quer das que nesta se implicam por intermédio dos agentes, é constitutiva de toda prática social e extensiva a qualquer produto ou conhecimento, além de representar, em última instância, nada mais, nada menos, que o meio pelo qual estes resultam incluídos na história. Mantém-se de pé o fato de que "ao controle objetivo só se chega pela via do controle social" ( BACHELARD citado por BARANGER, 2004, p. 71).
Esse controle (que não tem por que coincidir necessariamente com a espécie de "média estatística" que propunha Popper) é o que passa ao objeto de investigação pelo filtro social.
Tudo isso não impede constatar com Bourdieu citado por Baranger (2004, p. 174) que
[...] a ciência funciona, em grande medida, porque se consegue fazer crer que funciona como se diz que funciona.
A "objetividade" proclamada termina por ceder passagem em favor da crença. Isso nos devolve ao campo da subjetividade, da ideologia e do inconsciente.
A ideologia: dependência ou liberação?
O primeiro dos obstáculos que se erguem tradicionalmente em face da "objetividade" científica, o primeiro agente "contaminante" para toda teoria é o da ideologia, na medida em que sua existência representa aceitar o viés, admitir que o panorama observável depende do ponto de vista do observador e renunciar, então, às pretensões de totalidade e "universalidade" do observado. A assunção dessa perspectiva pode dar lugar ao reconhecimento da necessidade "objetiva" de assumir o lugar a partir do qual se trabalha e se pensa. De todo modo, essa tomada de partido supõe uma ótica que leve em conta o atravessamento inevitável do conflito social e a contradição histórica em toda empreitada de conhecimento. A única "objetividade" esperável seria aquela que não esconde seus valores, mas assume consciente e explicitamente os pressupostos que a sustentam.
A sociedade, a partir de uma hegemonia gerada, tenta dissimular sua ideologia detrás de uma aparente prescindência que se apoia na naturalização ilusória das relações sociais existentes para ocultar suas origens e seus propósitos, propondo como modelo uma ciência com om conhecimento "não contaminado" pela realidade histórico-social, na qual tudo o que se refere aos conflitos e tensões que atuam nessa realidade fica reprimido. Isso não significa evidentemente que esses conflitos desaparecem ou deixam de atuar; na verdade, pesam, carregam, marcam toda prática e todo pensamento. A diferença consiste nas possibilidades oferecidas por sabê-lo, tornar explícita a posição que ante tais conflitos e assumir as consequências que derivam disso, tanto no nível social quanto no da produção do conhecimento. A "prescindência" como em tudo não é neutra como se pretende, e sim mera submissão à ideologia dominante, aceitação acrítica das condições existentes.
Nesse sentido, Loureau (2001) assinala que toda epistemologia, toda ética nas ciências da matéria, da vida, do homem estão, agora ainda mais, cobertas pelo guarda-chuvas do comércio mundial ao modo de "grande novela". No fim das contas, é a ideologia dominante, hegemônica, em nossa atualidade, a do mercado, a que se impõe no laboratório ou na academia e nas novas cenografias do comércio eletrônico. Os paradigmas ou os projetos políticos, os programas de pesquisa ou de ação a favor disto e contra aquilo, estão ajustados ao mesmo referente, ao mesmo interpretante último: a democracia já não é um fim a alcançar, a liberdade não é mais uma causa vital; são as condições de instalação e manutenção de uma livre circulação do capital, da mercadoria. (LOUREAU, 2001).
Basicamente descrito, é esse o marco contextual dentro do qual se inscreve toda prática, todo conhecimento. Marco conflitivo, opaco, em que as causas e os mecanismos responsáveis pelo conflito histórico e pelo sofrimento social se encontram reprimidos e se manifestam sob as diversas formas de "mal-estar social", as quais podem chegar até à explosão coletiva, por um lado, e ao trauma psíquico, por outro. (DEJOURS, 2006).
Quanto a isso, Zizek (2003, p. 67) sustenta que
[...] o que se 'reprime' não é uma origem obscura da Lei, mas o faro mesmo de que não há que aceitar a Lei como verdade, mas unicamente como necessária.
Assim, o que se naturaliza das relações sociais seria sobretudo seu aspecto mutável, convertendo a Lei em "essência", reprimindo a história como marco geral e não somente como genealogia específica. A psicanálise, como teoria e prática, não pode se manter indiferente, não ser impactada ante os efeitos das implicações que a realidade produz sobre o sujeito, tanto no que diz respeito ao analista como sujeito, mas também (e sobretudo) como terapeuta , quanto no que concerne ao paciente, o qual de alguma maneira manifesta-o em seus sintomas. De fato, o "princípio de realidade", ao qual a psicanálise atribui um papel de primeira importância na economia psíquica, conta-se entre seus postulados teóricos fundamentais. Desse modo, tudo, a "realidade", o que esta representa e implica, é objeto de debate, dentro e fora da psicanálise.
Zizek (2003, p. 76), citando Lacan, afirma que
[...] a 'realidade' é uma construção da fantasia que nos permite mascarar o Real de nosso desejo.
De fato, na fantasia, o mundo histórico-social se desmaterializa, e só aparece nas marcas que deixou no inconsciente do sujeito.
Contudo,
[...] a partir de uma perspectiva materialista (histórica), o real (tomado agora em um sentido amplo, embora sempre distinto da 'realidade'), continua existindo além e aquém de sua percepção ou de sua constituição pelo discurso. (GRÜNER, 2002, p. 102).
Robert Castel assinala que "o núcleo prosaico" que organiza a existência humana, "o corpo (biologia), as necessidades (economia), a violência social (política)", existe sempre ainda que se nos apresente sob a forma de um discurso, e atua a partir de sua ineludível materialidade.
É nesse sentido que Caruso (1966, p. 209) indica que
[...] os fatores sociais, econômicos, políticos e ideológicos não podem se reduzir simplesmente a fatores psicológicos. Um "tratamento psicológico" de uma ideologia social seria uma ilusão perigosa, seria um totalitarismo disfarçado.
Circunscrever o real à realidade psíquica e ao desejo inconsciente só pode nos impedir o caminho de seu conhecimento e desembocar na repressão de uma parte fundamental do que nos constitui.
Por isso, Zizek (2003, p. 61) afirma que
[...] o nível fundamental da ideologia [...] não é o de uma ilusão que mascare o estado real das coisas, mas o de uma fantasia (inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social.
Ao fazer isso, o autor reafirma a noção de que não é a ideologia, e muito menos se concebida como ilusão ou fantasia inconsciente, o que estrutura nossa realidade social, e sim o inverso.
Em todo caso, é a maneira como essa realidade social se inscreve em nosso corpo (isto é, em nossa mente) no modo como se organiza sua forma subjetiva o que põe em jogo os mecanismos inconscientes e se estrutura em forma de ideologia, de fantasia, de discurso.
Reduzir a ideologia a uma pura fantasia inconsciente, a uma "relação imaginária" com as condições reais de existência, priva-nos novamente ao reprimi-lo de tudo o que o conceito carrega em termos de expressão consciente, de "eleição de um bando" como expressão de uma vontade livre, de reconhecimento do que isso significa na definição do lugar que cada um ocupa no campo da luta social (e ideológica, no sentido clássico) como condição essencial parra não cair em equívocos universalistas que mascaram posições e atitudes concretas tendentes a preservar ao retirar-lhes sua historicidade as condições sociais e ideológicas existentes. A ideologia é um elemento fundamental na relação do homem com o mundo e com seus semelhantes, subjaz, de maneira aberta ou velada, a qualquer ato humano e constitui parte essencial de toda teoria.
Psicanálise e ideologia
A psicanálise não é um instrumento específico de análise da ideologia, mas esta faz parte do objeto daquela e exige, portanto, sua atenção. Nesse sentido, a psicanálise deve enfrentar o obstáculo de sua própria implicação.
Isso é assinalado pelos Baranger quando afirmam que
[...] a psicanálise é uma ideologia no sentido estrito e no sentido amplo da palavra. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104).
A psicanálise consiste, por um lado, em um conjunto sistematizado de representações e, por outro, representa uma visão determinada sobre o mundo, uma perspectiva de ação, um conjunto de valores que podem reger a conduta. Explicitar essa perspectiva, esses valores, permite construir um discurso no qual o mundo não está alheio: a psicanálise e o psicanalista se verão confrontados com a necessidade de tomar posição, de "eleger seu bando" em face das questões que afetam seu objeto de conhecimento.
Dito de outro modo, "há uma ética psicanalítica" a ser assumida e declarada (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104). Essa "incorporação da psicanálise" no mundo e sua assunção como produto histórico fazem com que Castel (1980, p. 15) denuncie
[...] o lugar privilegiado que a psicanálise ocupa hoje entre as ideologias dominantes e as instituições de controle social.)
Com isso, Castel faz eco de uma polêmica cuja mera existência poderia também servir de testemunho acerca da preocupação (do "mal-estar) que existe em seu próprio seio (a instituição psicanalítica) e da atenção que esses problemas suscitam entre os psicanalistas. De fato, a chamada "vocação revolucionária" da psicanálise, tão invocada em alguns setores, não obrigatoriamente leva ao reconhecimento de sua implicação na esfera dos conflitos sócio-históricos no plano da revolução social ou, ao menos, no da participação ativa nos conflitos que atravessam a sociedade e pode muito bem ficar limitada, em suma, à esfera da análise do inconsciente individual.
A psicanálise pode se reconhecer revolucionária, de todo modo, e sem dúvida, na medida em que derruba o "essencialismo do Sujeito moderno" a que se referia Grüner (2002), mas de uma "revolução" que deixa mais ou menos intactas as estruturas sociais, que não questiona e talvez sequer nem roce a repressão inclusive aquela que se leva a cabo no inconsciente naquilo que ela tem de instrumento de controle social. De fato, a corrente mais tradicional da psicanálise a qual envolve grande parte do movimento psicanalítico internacional fecha seus olhos para essas temáticas e escamoteia a discussão conceitual sobre esses tópicos. A negação dessas vicissitudes não muda o fato de que a psicanálise, pelo simples fato de ser um produto sócio-histórico, está atravessada ideologicamente e circunscrita pelo mundo extra-analítico. Os dispositivos cuidadosamente instalados pelo enquadre, por exemplo, procuram construir um marco que (ao menos idealmente) deveria permitir à análise concentrar seu trabalho no inconsciente do analisando, mas ainda assim não se pode ignorar o fato de que a
[...] relação analisando-analista é, entre outras coisas, uma relação ideológica, e a regra de abstinência é contraditória com a essência mesma da relação interpretativa. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 105).
Com efeito: onde reina a abstenção, não há análise. Não existe, tampouco, interpretação que seja "neutra", desideologizada, ainda que alguns psicanalistas se empenhem em sustentar um critério de "prescindência", como se isso pudesse "colocar entre parênteses" (tal é a fórmula empregada) o real extra-analítico. Sem sequer entrar na análise das situações mais óbvias, podem ocorrer
[...] situações transferenciais e contratransferenciais muito complexas no caso de existir incompatibilidade ideológica entre analista e analisando. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 106).
De fato, mesmo em condições de relativa "paz" social, a análise pode enfrentar (por ignorar ou reprimir aquilo que o contexto histórico impõe a todo sujeito e a todo vínculo social) um fracasso (uma impossibilidade) ou converter-se diretamente em uma prática iatrogênica, expondo o analista ou o paciente (ou ambos ao mesmo tempo) a riscos importantes.
A psicanálise, a política e o social
Em realidade, desde Freud mesmo, a psicanálise tem reivindicado a dimensão social do sujeito, como fica claro em seu postulado de que a psicologia individual é simultaneamente social ( Freud , [1921] 1994). Ainda mais, longe de se ensimesmar no abismo da mente humana, Freud se sentiu obrigado a estender suas indagações para além do psiquismo e do inconsciente individual para dar conta do "mal-estar na cultura", assomar à "psicologia das massas", abordar as "ilusões" religiosas, dar a palavra aos mitos, interrogar a arte e a literatura de seu próprio tempo e de épocas passadas. Tampouco foi indiferente à política, ao menos em suas manifestações mais gerais ou mais extremas, e, apesar de seu ceticismo a respeito da possibilidade de eliminar o sofrimento humano pela via da mudança social (a qual não deixava de considerar positiva), dedicou profundas reflexões ao tema da guerra. Nelas, fica clara sua atitude cética ante a natureza da alma humana, de maneira que
[...] seu progressismo sem ilusões não deveria sonhar com a erradicação das pulsões de crueldade e de poder, tanto as que dependem do cotidiano quanto as que desgraçadamente abundam na história. (MAJOR; TALLAGRAND, 2007, p. 196).
Tampouco desdenhou elaborar (com a colaboração de William Bullit) um estudo biográfico sobre o presidente estadunidense Thomas Woodrow Wilson ("pai" da Liga das Nações, cuja figura despertava nele uma forte antipatia), trabalho no qual eludiu as tentações de uma psicobiografia para expor
[...] a continuidade entre os sonhos messiânicos de um homem chegado ao poder e a fantasia de desejo de um povo. (MAJOR; TALLAGRAND, 2007, p. 192).
Assinala Perrés (1998, p. 5) que Freud, em especial,
[...] e também seus primeiros discípulos, confrontaram criticamente a sociedade, a cultura, para fazer sobre ela uma leitura psicanalítica, a partir do estudo dos efeitos do inconsciente. A preocupação com a relação indivíduo-sociedade (exigência impostas pela cultura à vida pulsional, submetimento às normas da vida em sociedade, etc.) existiu sempre no jovem Freud, e pode ser encontrada em seus intercâmbios epistolares.
Esse interesse sempre crítico de Freud pela "coisa social", que o levava a tentar abordar as implicações do inconsciente na sociedade, esteve sempre presente no movimento psicanalítico, inclusive depois da institucionalização deste e da legitimação das correntes que buscavam (com êxito, em muitos casos) desviar seu rumo em direção a um canal de "adaptação" social. Apesar disso, o espírito original, o sopro vital renovador (e certamente contestatório) insuflado por Freud nunca deixou de se fazer sentir.
Como explica Rozitchner (2003, p. 19),
Freud [...] mostrará que dentro do campo chamado 'subjetivo' persistem, como categorias descritivas de sua compreensão e de seu funcionamento, as categorias presentes na ordem repressiva social.
Essa persistência remete a uma circulação. Entre sujeito e sociedade se enodam laços e se estabelecem vasos comunicantes, correias de transmissão, canais pelos quais circula a ordem social tal como esta se inscreve nos sujeitos. Os modos de circulação dessa ordem se apoiam e se modelam no primeiro núcleo de inclusão social a que o homem se incorpora: a família. É a família o instrumento fundamental de transmissão do vínculo social.
Ora, para Freud,
[...] o vínculo social, longe de ser explicável pela existência de uma única 'grande família', isomorfa ou similar à célula familiar propriamente dita, se manteria como uma cadeia interminável de 'vínculos libidinais' que vão se especificando ao se distanciarem da célula familiar, conservando com esta uma relação constante. (LOUREAU, 2001, p. 157).
Desse modo, fica evidente que esse vínculo não corresponde a uma homologia de formas, produto de uma "essência" única imanente (o que permitiria afirmar o vínculo como um fato "natural" e a-histórico), e sim depende das condições de tempo e lugar que lhe são próprias. Nesse sentido,
[...] o que está estruturado libidinalmente não é a "sociedade" como vasta organização dos possíveis, e sim cada elo constitutivo do vínculo social. (LOUREAU, 2001, p. 157).
Não é pertinente, então, buscar uma "libido social", e sim determinar os canais pelos quais a libido circula entre os distintos sujeitos, as mediações e os atravessamentos que a marcam e as modalidades que ela vai assumindo, a fim de entender as maneiras como tudo isso vai deixando suas marcas, dando forma particular ao vínculo social.
Rozitchner (2003, p. 19) afirma que
[...] em Freud se trataria de explicar a estrutura subjetiva como uma organização racional do corpo pulsional por império da forma social.
Ora, essa forma social, organizadora da estrutura subjetiva, obviamente não pode ser ignorada na análise. Para que possa ter lugar e para que esse lugar não seja ocupado por um simulacro,
[...] faz-se necessário articular os pontos de continuidade e de ruptura entre o conflito psíquico e o conflito social, os umbrais onde se marcam a entrada e a retração do político, onde se neutralizam as relações do sujeito com a lei e as relações da lei com a legitimidade do desejo. (MAJOR, 1984, p. 6).
Nesse sentido, se o que está reprimido na sociedade e no indivíduo (e pela sociedade no indivíduo) é que não é preciso aceitar a Lei como verdade, senão unicamente como necessária e, para que a análise seja digna desse nome, essa questão não pode ser omitida, não pode ser ignorada (ZIZEK, 2003).
De fato,
[...] para chegar a esse ponto a psicanálise deve romper com a ilusão de estar dissociada do jurídico. (MAJOR, 1984, p. 6).
Com efeito, essas ilusões, se mantidas, podem ofuscar o psicanalista, nublar sua visão, obnubilá-lo. A Lei sempre se faz presente na cena analítica, haja o que houver e pense o que pensar qualquer dos membros do par analítico. Está presente na maneira como se fez carne no psicanalista e no paciente, na forma como está implicada na teoria e na técnica psicanalíticas. Esquecer esse dado implica fechar os olhos para nada menos que o instrumento de repressão por excelência.
Nesse sentido, tem sido assinalado que
[...] a responsabilidade individual frente ao Supereu pode ser inteiramente 'falsa'[...] o supereu é uma 'instância' socialmente talhada. (CARUSO, 1966, p. 31).
Esse "entalhe social" não pode ser ignorado na análise, sob pena de converter o supereu em um produto autônomo, em uma "essência" eterna da "alma" humana, inalterável e imóvel. No ato analítico, como vemos, entrecruzam-se as implicações. Os "pontos de continuidade e de ruptura" entre o conflito psíquico e o conflito social, as implicações políticas e sociais de analista e paciente, atravessam tanto a transferência como a contratransferência, com a dificuldade adicional indicada por Waisbrot (seguindo Aulaigner):
[...] o discurso social cumpre uma função identificadora, que é a essência do 'contrato narcisista' postulado por Aulagnier como o fenômeno mais difícil de analisar, na medida em que implica ambos os membros da cena analítica. (WAISBROT, 2002, p. 100).
A necessidade simultânea de manter-se atento (proximidade) e de tomar perspectiva (distância) das condicionantes sócio-históricas implicadas no ato analítico, eludindo as propostas (os engodos) identificatórias que surgem tanto do meio social e histórico como do próprio paciente (e também do analista), para concentrar-se no desejo inconsciente daquele sem cair em um reducionismo negador daquilo que o mundo material põe no caminho da análise, obriga o analista a reforçar suas precauções, e o mandamento de manter na escuta analítica uma "atenção flutuante", necessária para dar lugar a um diálogo que não caia na prédica, pode se mostrar insuficiente para tanto.
Dos "deveres sociais e políticos" da psicanálise
Se a psicanálise está implicada em sua relação com a realidade e o mundo, é lógico que se requeiram dela atitudes coerentes com isso, ou seja, que lhe sejam reconhecidos certos "deveres". Haverá aqueles que, a partir de sua própria visão ideológica pedem da psicanálise (e do psicanalista) um compromisso ativo com as lutas sociais de liberação. Haverá outros que, a partir do outro extremo, atribuirão à psicanálise funções adaptativas, isto é, orientadas para o controle social e a submissão de dissidências. Ainda que ambas as alternativas sejam ideológica e praticamente possíveis (e, de fato, ambas encontram seus defensores), não são em absoluto equivalentes do ponto de vista da psicanálise. Converter a psicanálise em um instrumento de promoção das posições sociais e políticas do analista sejam elas quais forem representa um avassalamento da intimidade do sujeito, imperdoável eticamente e incompatível com os postulados essenciais que tornam possível a psicanálise. Mas a negação do social e do político ou sua inclusão na análise marcam também um divisor de águas.
As incompatibilidades ideológicas entre analista e paciente podem, sem dúvida, complicar a análise da relação transferencial e, inclusive, impossibilitar a tarefa analítica, na medida em que o terapeuta perca a possibilidade de manejar seu próprio desejo inconsciente de modificar o paciente em uma determinada direção ou não queira "fazer-se cúmplice" do que seu paciente representa, ou, inversamente, quando o paciente não se sinta em condições de falar e associar livremente diante de seu analista. De todo modo, é pouco frequente chegar a semelhantes extremos. Tanto paciente quanto analisando costumam fazer uma seleção prévia e, em geral, as diferenças que poderiam surgir não chegam a ser tão conflitivas. Ainda assim, a negação da dimensão coletiva do sujeito não é neutra.
A tarefa de Freud como pioneiro para "abrir o caminho" nessa direção nunca foi abandonada pela psicanálise. A presença do coletivo a cada passo da análise era muito óbvia, e era necessário um esforço consciente e contínuo de negação para apartá-lo.
Ainda no mais íntimo da consulta,
[...] dos problemas que cotidianamente nos apresentam nossos doentes, vamos entrando, insensivelmente, quer o queiramos, quer não, nos da família, da comunidade, do país e do mundo em que estamos imersos. (BERMANN, 1964, p. 241-242).
É certo que em grande parte das instituições psicanalíticas tornou-se hegemônica a tendência de não considerar esses elementos atuando na relação terapêutica, limitando as intervenções "sociais" da psicanálise quase exclusivamente às improvisações midiáticas de alguns de seus membros, sem aprofundar seriamente a investigação nem fazer nenhum intento de redirigir a escuta para o "discurso social".
Como relata Emilio Rodrigué (1996), o intento de dar um maior sentido social à psicanálise serviu para socializá-la (isso era e continua sendo importante). Mas socializar não quer dizer entender o social. Aí, segundo Rodrigué, estava o erro, o social continuava basicamente impenetrável à psicanálise. Mas ao menos se trouxera o social à superfície, voltava-se a fazê-lo visível.
Alguns adotaram uma posição de franco ceticismo com respeito à possibilidade de avançar na tarefa. Castel, que não faz uma oposição cerrada e sistemática à psicanálise, e sim delineia com seriedade e respeito uma série de objeções, tanto no nível da teoria quanto no da prática, sustenta, em particular, que "como tal, a psicanálise oculta sempre os problemas sociopolíticos" (CASTEL, 1980, p. 11).
A fórmula é taxativa: para Castel, a ocultação não é ocasional nem depende de uma aplicação defeituosa da teoria: ocorre "sempre". De maneira que, na medida em que resulta impossível (a partir da psicanálise) perceber com suficiente nitidez os problemas sociopolíticos, só cabe deduzir que
[...] os defensores de uma revolução pela psicanálise têm realmente uma concepção idealista da revolução, da história e da sociedade. (CASTEL, 1980, p. 95).
A "revolução pela psicanálise" tem sido, com efeito, uma aspiração (e mesmo uma inspiração) para muitos psicanalistas que sentiram a necessidade de comprometer-se com as lutas e os conflitos sociais e históricos que atravessavam suas vidas. Aspiração utópica, sem dúvida (onipotente, talvez), mas que colocou em destaque a necessidade de novos desenvolvimentos teóricos, de explorar, com o instrumento conceitual desenvolvido pela psicanálise, regiões novas, tanto no interior do inconsciente quanto fora dele.
Não é que a psicanálise tenha sido completamente estéril do ponto de vista social, apesar das limitações mostradas por Castel quanto aos seus reais efeitos sobre as relações sociais, os modos de vida concretos e as práticas da vida cotidiana dos sujeitos.
Para Gregorio Baremblitt (citado por Bermann, 1964, p. 241-242),
[...] aqueles atributos definidores do homem, aqueles que fazem dele o que é, adquirem-se no processo de socialização, portanto o terapeuta encarregado de curar o homem enfermo cura a parte da sociedade que está incluída na essência do próprio homem.
Cura parcial, limitada, pontual, mas "terapia social" enfim, ainda que seja em escala "micro".
Nessas condições, decerto, alcançar algum efeito na proporção da sociedade se apresenta como um trabalho de formiga, inacabável, interminável, talvez irrealizável. E (ademais e sobretudo) limitado pela falta de sistematização das condições necessárias da escuta, de elaboração dos conceitos capazes de dar conta do observado nessa escuta e de sua estruturação em um corpo teórico organizado. Ora, sem avançar nessas tarefas é difícil ampliar a visada da psicanálise e desenvolver o alcance de seus conhecimentos e efeitos sociais. É difícil ver para além da "luz indireta" que a sociedade projeta sobre o inconsciente, iluminar a realidade social e política de frente, em lugar de percebê-la apenas "através de seu reverso".
De todo modo (e mesmo para Castel, cujas críticas não lhe impedem reconhecer na psicanálise um valioso e renovador instrumento terapêutica de investigação do inconsciente), a psicanálise
[...] é capaz, de certa maneira e em certas circunstâncias bem precisas, de liberar o indivíduo de certas restrições sociais (pela via dos novos investimentos que expressariam mais a lógica de seu desejo do que o peso dos determinismos políticos e sociais). (CASTEL, 1980, p. 95).
Assim, pelo menos se alcançariam certos resultados (da ordem a que se referia Baremblitt) no nível das relações entre o indivíduo e a sociedade, um relativo "deslocamento dos limites" entre eles, um remanejamento em benefício de uma maior liberdade do sujeito.
Na realidade, a "vinculação" social da psicanálise conta hoje com instrumentos mais diversificados. Por um lado, pelo desenvolvimento de uma série de práticas terapêuticas (terapias de grupo, de casal, de família, psicodrama etc.) nas quais se aplica a teoria psicanalítica, mas que levam a posicionamentos técnicos distintos, e, por outro, pela participação (escassa) de psicanalistas em instituições assistenciais públicas ou privadas que apresentam condições distintas e apontam para um público muito mais diversificado que aquele que tem acesso ao consultório privado.
Nessas instituições, o psicanalista se vê obrigado (nem sempre de bom grado) e em um contexto frequentemente desfavorável, é certo, com efeitos potencialmente benéficos quanto à flexibilização do dispositivo de escuta a levar adiante a tarefa terapêutica por fora das regras de enquadre convencionais, ainda que mantenha a abordagem da situação a partir da teoria psicanalítica. Em todos esses âmbitos, o psicanalista tem a ocasião de entrar em contato com realidades distintas, de ampliar sua escuta, de investigar para além do dispositivo clássico de enquadre. Nessa tarefa, o psicanalista com vocação social se vê confrontado com os adversários que a psicanálise foi acumulando em sua história.
Juan Carlos Volnovich (2003) assinala o triplo embate dos psicanalistas vinculados aos programas sociais: com o Estado e os aparatos de poder societal políticos, econômicos e subjetivos; com a própria corporação psicanalítica; finalmente, com a inscrição da psicanálise no imaginário social como um tratamento para uma elite de pessoas inteligentes, isto é, burguesas.
Nesse contexto, os psicanalistas, em seu devir político-social percebem claramente a mudança que sofrem em sua implicação: são psicanalistas e militantes de uma causa. (VOLNOVICH, 2003).
Se a implicação social da psicanálise se revela ao mesmo tempo necessária e problemática, a atuação política tampouco lhe tem sido alheia, ainda que sempre se tenha tratado mais propriamente de atender à política interna, aos conflitos que tinham lugar dentro das instituições ou às disputas entre elas.
A presença da psicanálise na política cidadã tem sido sempre manejada a partir das instituições e tem sido caracterizada por seu caráter episódico e (no mais das vezes, inclusive com Freud) e por estar carregada de oportunismo. Em contrapartida, no campo teórico, a discussão política da psicanálise (e dentro dela) tem sido contínua. A partir de alguns setores se reclamou da psicanálise uma participação ativa (em consonância com sua "vocação revolucionária") nos conflitos sociais ou pelo contrário, acusou-se a psicanálise de cumprir uma função essencial na reprodução do sistema de dominação.
A "disputa pelo sentido" foi, de fato, particularmente visível na psicanálise, e seu enfrentamento ou aliança (a partir da teoria e da prática) com as políticas orientadas para a "liberação" do homem ou para produzir uma revolução social tem sido objeto de conflitos e polêmicas, em particular com o marxismo.
Aprender a realidade
A psicanálise encontra um problema quando quer abordar a realidade extrapsíquica, já que, como assinala Castel (1980, p. 201),
[...] não dispõe em si mesma de categorias para apreender o poder, o social o político etc. em sua objetividade não psíquica.
Isso resultaria, assim, "inanalisável". Na realidade e Freud sempre se encarregou de destacar isto
[...] a psicanálise não é a psicoterapia, sequer a psicoterapia psicanalítica. (CASTEL, 1980, p. 40).
É sempre quis ser antes de mais nada uma teoria do funcionamento da psique e um instrumento de investigação.
As funções terapêuticas (unidas e consubstanciais ao método analítico, a ponto de haverem terminado por ocupar o centro da cena e deslocado os outros aspectos) resultavam ser, se não acessórias ou secundárias, mais propriamente uma derivação, uma consequência de sua aplicação. A análise não apontava diretamente para uma meta terapêutica, e nem podia fazê-lo, na medida em que não havia um lugar definido ao qual se encaminhar: a meta terapêutica se encontrava no caminho. De fato, a "cura" não consiste na volta a um estado original alterado por obra da neurose, mas na construção de um novo equilíbrio psíquico.
Como teoria como instrumento de conhecimento do inconsciente a psicanálise aporta algumas particularidades e inovações radicais. No que diz respeito às tentativas realizadas no sentido de utilizá-la para "apreender o poder, o social, o político em sua objetividade não psíquica" ela teve, no entanto, que enfrentar os obstáculos que sua própria estrutura orientada para o interior mais íntimo do sujeito levantava.
De fato, para Castel (1980, p. 41),
[...] as dificuldades com as quais a psicanálise tropeçou para sair do marco que a originou, o do tratamento da neurose, e especialmente, sobretudo em Freud, o das neuroses chamadas de transferência, são na realidade dificuldades postas pelo deslocamento desse dispositivo.
Particularmente, porque esse dispositivo se baseava, para a observação do inconsciente, justamente em "colocar entre parênteses" os aspectos não psíquicos da realidade.
Mas a capacidade da psicanálise para compreender os fatos sociais se encontraria também travada além de pelo dispositivo analítico por certos aspectos de sua teoria, aspectos que Castel (1980, p. 217) destaca ao assinalar que
[...] uma doutrina que percebe a exterioridade sob a forma do 'princípio de realidade', ou seja, segundo a dialética do investimento, da retirada de investimento, do contrainvestimento etc. (renúncia, derivação, deslocamento...), não pode proporcionar nunca um enfoque direto sobre o que é propriamente social no social. Somente lança sobre ele uma luz derivada, a partir dos interesses libidinais dos indivíduos, unicamente.
Saltar da libido individual para a sociedade, como vimos, implica seguir uma longa e complexa cadeia de enodamentos subjetivos e, ainda assim, nos levaria, segundo Castel (1980), a perceber apenas uma imagem refratada (um reflexo), de algum modo incompleta e em muitos aspectos enganosa: "nunca", enfatiza Castel (1980), poderá aprender todo o social. Uma luz que só ilumina, um discurso que só fala dos aspectos da realidade exterior vinculados ao desejo inconsciente não podem dar uma imagem acabada do mundo material, da "exterioridade" social e política.
De fato, a psicanálise não é uma teoria das relações sociais e não teria por que dizer "tudo" sobre essas relações (apreendê-las) como alguns pretendem (tanto nas chamadas "esquerdas" quanto nas "direitas" lhe reclamar. Por outro lado, está claro que sua especificidade quanto ao psíquico serviu de couraça para aqueles que consideram o sofrimento íntimo de um paciente como alheio às determinações materiais dentro das quais se dão as condições de desdobramento da subjetividade e minimizam o fato de que essa subjetividade é constituída a partir da inserção social do sujeito, em permanente relação dialética com sua história individual e sua contextualização social
Dessa maneira,
[...] a distinção absoluta entre uma ordem do inconsciente e uma ordem das relações de produção e de dominação (ainda que logo se "articule" um aspecto ao outro) estabelece um cordão sanitário em torno da ortodoxia psicanalítica. (CASTEL, 1980, p. 33).
Essa ortodoxia pode se instalar confortavelmente na ordem do inconsciente e confiar que o dispositivo analítico montado absorverá todos os embates que poderiam se dar a partir de fora. Essa oposição, que constrói a cena psicanalítico dando passagem ao espaço do inconsciente com base no desalojamento do espaço social (desalojamento que só pode ser passageiro e ilusório) representa, assim, ao mesmo tempo, um requisito para a manifestação do inconsciente e uma barreira para a expressão do social.
A implicação do "núcleo prosaico" na análise deve então ser rastreada ou a partir das marcas que o inconsciente produz ou com base na abertura do dispositivo e na elaboração de uma teoria e uma técnica específicas.
Seja como for, o psicanalista como instrumento terapêutico não pode abrir mão da dimensão social e política do sujeito. Deixá-la de lado ou apartá-la significaria diminuir o sujeito, podá-lo, aceitar que seria possível (e desejável) desenraizá-lo, privá-lo do substrato de que se alimenta e vive: a subjetividade.
Isso é, no mínimo, uma manipulação indireta que seguramente desembocará em um distanciamento progressivo e paulatino de todo compromisso político e na irrupção soterrada mas permanente da resignação e do conformismo: trata-se, em outras palavras, de um empobrecimento do sujeito.
Ora, a relação terapêutica que se estabelece na psicanálise contém elementos muito particulares. Nessa relação, tem lugar um trabalho conjunto entre os dois membros do par analítico, no qual a participação do paciente é chave. Mas na relação analítica, de fato, não só está envolvido o inconsciente do analisando.
Os Baranger assinalam que
[...] o que estrutura o campo bipessoal da situação analítica é essencialmente uma fantasia inconsciente. Mas seria equivocado entende-lo como uma fantasia inconsciente só do analisando. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 140).
O analista também se encontra envolvido na cena analítica, e no mesmo nível que seu paciente: só o seu conhecimento da teoria e o seu domínio da técnica poderiam lhe permitir (pela via da análise da transferência e da contratransferência) separar o joio do trigo e reconhecer as modalidades de circulação e emergência do desejo inconsciente nessa cena.
A própria interpretação, o ato de interpretar, sua forma e seu conteúdo, que trabalha sobre a transferência cuidando de filtrar tudo o que possa aparecer como interferência do meio exterior e inclusive toma precauções para que a relação contratransferencial não domine a cena, está contaminada.
De fato,
[...] o interpretar por mais neutro que seja em sua forma, implica a participação dos setores ideológicos (muito carregados efetivamente) do analista. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104).
A implicação do social e do político resulta, assim, inseparável da cena analítica, por eles povoada a partir das posições subjetivas dos participantes e a partir da maneira como essas posições estão incluídas (implicadas) na psicanálise. Isso se dá dessa maneira em função de que
[...] a ideologia 'científica' do analista (os princípios e conceitos psicológicos que utiliza na interpretação) não é independente de suas outras concepções ideológicas. (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104).
A ideologia subjacente do analista se encarrega de dirigir a cena, lançando nela suas próprias concepções. A própria teoria psicanalítica é protagonista nesse processo, na medida que que é o ponto referência principal, mais direto, mais imediato, de sua prática. Como é óbvio, "a teoria psicanalítica pode moldar os juízos de um analista" (Renik, 2002), mas, na medida em que percam de vista sua origem, seus laços de dependência, esses juízos se 'naturalizam" e funcionam como telas que ocultam as implicações do analista. Implicações que todo psicanalista leva em si e que inevitavelmente se expressam em seu trabalho clínico e permeiam a teoria de que se vale.
A tarefa não é simples e, como em toda análise, nada está dado. É preciso, em primeiro lugar, um trabalho sobre o próprio analista, que, para ampliar o dispositivo de escuta, dispositivo marcado pelos numerosos atravessamentos das instituições que constituíram o psicanalista, deve procurar, por meio de sua própria análise, dos ajustes teóricos necessários e de suas relações transferenciais, reconhecer os caminhos de sua própria implicação política e social e seus efeitos sobre a cena analítica.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: juanfloresr@yahoo.com
Recebido em: 06/04/2021
Aprovado em: 15/05/2021
SOBRE O AUTOR
Juan Flores
Psicólogo pela Universidad Católica do Chile.
Doutor en Psicología pela Universidade do Chile.
Psicanalista da Sociedade Chilena de Psicanálise (ICHPA).
Diretor do Programa de Mestrado em Psicanálise (Director del Magíster en Psicoanalisis) da Universidade Adolfo Ibáñez.
Professor do Instituto de Formação de Psicanalistas de ICHPA.
Presidente da Federación Latinoamericana de Asociaciones de Psicoterapia Psicoanalítica y Psicoanálisis (2003-2005).
Presidente da Sociedade Chilena de Psicanálise (ICHPA) (2004-2006)(2008-2010).
Preside (Secretário Geral) pela terceira vez uma das Federações Mundiais de Psicanálise: a International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS), no período de 2020-2024.