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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021
PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA
A ilusão de um futuro e o mal-estar na afecção
The Illusion of a Future and the Malaise in the Illness
Marli Piva Monteiro
I Círculo Psicanalítico da Bahia
II International Federation of Psychoanalitic Societies
III Academia Brasileira de Médicos Escritores
RESUMO
O surgimento de um vírus de alto potencial virulento causou uma pandemia, e seus efeitos devastadores sobre a humanidade estão sendo vivenciados por todos nós. Ameaçados e impactados como se sentiram, os homens encontraram uma única solução possível para toda a sua fragilidade e angústia existencial: o mecanismo da negação.
Palavras-chave: Pandemia, Vírus, Fragilidade, Medo da morte, Luto.
ABSTRACT
The emergence of a highly virulent virus has caused a pandemic, and its devastating effects on humanity are being experienced by all of us. Threatened and impacted as they felt, men found a single possible solution to all their fragility and existential anguish: the mechanism of denial.
Keywords: Pandemic, Virus, Fragility, Helplessness, Fear of death, Mourning.
Desde os primeiros momentos em que ouvi as notícias sobre a covid-19, uma inquietação logo me colheu: uma doença que exigia a solidão e estimulava o desamor?
Jamais me ocorreu que um vírus tivesse esse imensurável poder de interferir no amor.
Como psicanalista, logo pensei: o que será da psicanálise? Como vai ser possível viver quando se dispensa o afeto mais profundo e mais essencial ao ser humano?
A psicanálise ocorre num ato de amor o amor transferencial e não poderia ser de outra maneira, se é um ato de amor que inaugura o sujeito quando introduz o desejo no seu primeiro encontro com um peito e a criança já foi fundada num ato de amor.
A identificação é nada mais, nada menos que um ato de amor.
É com cuidados amorosos que a mãe vai nomeando o mundo para o filho. Haveria o Édipo sem amor?
No entanto, estamos vivendo há mais de um ano nessa convivência com um vírus que rechaça o amor. E esse rechaço, por um lado, preconiza o afastamento, a evitação de gestos e cumprimentos, beijos, abraços; por outro lado, sugere murros, cotoveladas e pontapés!
Foram os idosos as primeiras e as maiores vítimas. Num momento em que as perdas se sobrepõem aos parcos ganhos, restringiram-lhes os encontros afetivos com os netos, tirando-lhes toda a possibilidade de estímulo que essa relação pode produzir. Ambos estão num momento da vida em que dispõem de tempo um para o outro e sentem que essas trocas são benéficas e indiscutíveis para eles.
Além disso, cortaram dos idosos as idas aos ambientes de socialização, com a proibição para ir aos locais de práticas de atividades físicas ou encontros sociais. O que lhes restou? Alguns ficaram inteiramente sós.
Um segundo tempo para mim foi marcado pela conversa com um amigo psicanalista, que me disse uma frase incrível que resume tudo isso: Estamos vivendo um período sem futuro.
O que será que significa um tempo sem futuro? O futuro é a nossa perspectiva de algo bom, a origem da nossa esperança. Não é à toa que as festas de réveillon são tão apreciadas. Ninguém pensa que o próximo ano será igual ao anterior e comemora-se uma infinidade de coisas boas que uma noite apenas é capaz de trazer.
A esperança e a expectativa de um futuro promissor foram profundamente abaladas. Confinados que fomos, sem vislumbrar um futuro, ficamos frente a frente com a morte.
Em Reflexões para os tempos de guerra e morte, Freud, ([1915] 1975, p. 311) afirma:
A própria ciência perdeu sua imparcialidade desapaixonada; seus servidores, profundamente amargurados, procuram nela as armas que contribuem para a luta contra o inimigo.
No mesmo ensaio, prossegue dizendo que
[...] nosso sentimento desproporcionalmente forte, não temos o direito de compará-los com males de outros tempos que não experimentamos. (FREUD, [1915] 1975, p. 311).
Nesses momentos, dois fatores se superpõem: a desilusão e a atitude frente à morte. Quem não está diretamente nos combates sente-se atordoado e impotente, capaz de aceitar qualquer coisa que indique uma saída, pelo menos para aplacar seus temores. (FREUD, [1915] 1975, p. 311).
A sensação de fragilidade e impotência se agiganta de forma imensurável e surge inexorável a aterrorizante ameaça da morte.
Não havendo garantias de segurança, a sensação de desamparo domina e, na tentativa de sobrevivência, recorre-se aos mecanismos de defesa, inclusive a negação.
Impossível negar que não seja exatamente esse o quadro que Freud esboçou em suas premonições.
A morte, que vivemos negando, já que se inicia com o nosso nascimento, e é nossa única certeza, é escamoteada com os nossos planos para o futuro. Ninguém se empenharia em um empreendimento qualquer, ou faria uma dívida de vários anos, se não julgasse que estaria vivo até lá. Isso nos garante um relativo alívio da angústia existencial. A maior e mais definitiva que vivemos.
Restamos trancados em casa como na peça de Sartre (1977) Entre quatro paredes, tendo que nos haver com nossos próprios medos e acabando por constatar que o inferno não são os outros. Nossos são os demônios.
Questionamos se, quando a porta se abrir, teremos condição para sair.
Veio-me uma vontade enorme de escrever, de produzir textos. A morte tem seu papel no estímulo às artes, à poesia, à música.
As crianças perderam a escola, o convívio com professores e colegas. Foram isoladas com a justificativa de que, sendo portadoras sãs, seriam altamente fonte de contaminação para os adultos. Argumento que até então não se podia refutar. O vírus é novidade; a doença, uma incógnita. Quase nada se sabe de fato sobre ela. Há muito mais dúvidas do que certezas.
Cada um passa a ser um inimigo provável, capaz de infectar o outro. O bicho-papão se atualizou no coronavírus. Não se sabe de onde ele vem, porém se insinua que é de qualquer lugar.
Como reagirão as crianças que viveram esses percalços? A partir de agora será mais difícil estabelecer vínculos? O que se pode ver hoje é a ansiedade. São as fobias e a depressão se manifestando nos pequeninos. Às vezes exigindo o uso de medicação. As doenças psicossomáticas proliferando. E quem sabe como se refletirá tudo isso no processo de aprendizagem.
É inegável que a relação da criança com a mãe, inclusive antes da fala, é por intermédio dos sentidos. São os toques, a temperatura corporal, o olhar que estabelecem essa comunicação. A mãe se revela a tradutora dessa linguagem psicossomática da criança e a ela responde adequadamente.
Essas características vão sendo esquecidas à medida que a palavra passa a ocupar o lugar principal da comunicação e só serão acionadas novamente em caso de alguma deficiência.
Nada mais fértil, então, que esse terreno para a expressão de um sintoma.
Como vai ser possível controlar o uso indiscriminado do celular e do computador pelas crianças as quais fomos obrigados a introduzir no mundo da informática diariamente?
Em seu ensaio Reflexões para os tempos de guerra e morte Freud ([1915] 1975) afirma que, para o Inconsciente, somos todos imortais, pois o Inconsciente não tem registro da morte. No entanto, embora seja essa a certeza mais absoluta que temos, é ela o motivo da nossa maior angústia, a angústia existencial.
Se todos sabemos que vamos morrer, as circunstâncias, o tempo, a hora são incógnitas que nos atormentam até mesmo nos momentos finais, quando não sabemos exatamente o que acontece para deixarmos de ser, e o que nos aguarda a partir daí. Se é que algo nos aguarda ou o nada nos espera. Nosso sofrimento se estende ainda aos nossos entes mais queridos os quais deixaremos de ver para sempre.
As várias culturas têm atitudes diferentes frente à morte através dos séculos e até o presente. Por exemplo, para os mexicanos, o dia 02 de novembro, Dia de Finados, é o dia de festa maior para todo o país. Cultuam-se os mortos com festas, comidas e trajes típicos, danças e música. E creem que não há melhor maneira de homenageá-los.
De acordo com Philippe Ariès (1981), a morte já foi um fato social que suscitava anúncios e notícias públicas, mas a sociedade expulsou anúncios e comemorações, bem como os carros mortuários, desfilando pelas ruas da cidade em cortejos fúnebres. A sociedade não fazia interrupções quando alguém morria.
Outra coisa que despareceu foram os lutos, quando as viúvas usavam véus negros, cobrindo os rostos, as filhas se vestiam de preto, e os filhos portavam o fumo, um pedaço de pano preto nas mangas das camisas e paletós.
Nesses tempos, os rituais de morte eram caseiros. Os moribundos costumavam prever aproximadamente o dia da morte e dela falavam com os parentes mais próximos e amigos, que eram até chamados para participar das prévias, com a expressão dos desejos de morte quanto às exéquias, as decisões inclusive de operações econômicas e heranças. Faziam-se promessas, assumiam-se compromissos, buscava-se solução de rixas antigas.
reparava-se o momento da partida com a presença dos filhos, irmãos e parentes mais próximos. Combinavam-se também o número de missas e o período em que seriam realizadas.
A morte hospitalizada, especialmente na UTI, mudou completamente esse panorama. Morre-se só, na maioria das vezes.
A morte já não avisa a hora e, principalmente, os que vão morrer não a anunciam. A morte repentina passou a não merecer o mesmo respeito. Alguns, no entanto, ainda consideram que pode haver uma melhora, perto da hora de partir, que se configura como a visita da morte. O sujeito que ia morrer, deitado em decúbito dorsal, se comprazia em rever sua vida, seus bens, seus entes amados, para as despedidas e as últimas determinações.
Já o moribundo do século XVII expressava menos sensibilidade e demonstrava, no sofrimento e na morte, resignação e resistência. Jamais algum condenado manifesta apego à vida, na hora da morte, mas declara sua repugnância à morte.
Mesmo no cancioneiro popular, a música O que é o que é, de Gonzaguinha (s.d.), nos lembra que Ninguém quer a morte, só saúde e sorte.
Como não há registro da morte no Id, para o Inconsciente, somos todos imortais. No entanto, a angústia maior e inevitável que nos persegue é o medo de morrer. E esse medo está entre o Ego e o Superego. É o Ego que luta para viver e ser amado pelo Superego.
A necessidade de negar a morte se evidencia nos nossos comportamentos na vida diária.
Se o medo da morte estivesse constantemente consciente, seríamos incapazes de agir normalmente. Portanto, em tempos normais agimos sem realmente jamais acreditar em nossa própria morte. (BECKER, 1976, p. 35).
Nos momentos de catástrofes, dois fatores se superpõem: a desilusão e a atitude frente à morte. A desilusão faz o indivíduo duvidar que essa situação terminará, que o conflito desaparecerá e paz voltará a reinar. Por outro lado, a atitude frente à morte é de impotência, fragilidade e ameaça de aniquilamento.
Não há garantias de que os valores morais, resultantes de todo um trabalho coercitivo da civilização vão preponderar, agredir e matar. Passam a ser atitudes toleráveis e estimuladas sob as justificativas de defesa. (FREUD, ([1923] 1975).
Vendo-se só e desamparado, o homem não tem outra alternativa senão regredir e utilizar um dos mecanismos mais primitivos de defesa: a negação.
É impossível, como psicanalistas, que não tenhamos nos dado conta disso. Sabemos que nem todos estão conscientes de que sua conduta aparentemente desafiadora esconde seu terror de encarar a fragilidade e a morte. As generalizações são sempre perigosas, mas nem por isso podemos esconder certos fatos.
No momento atual, temos visto uma verdadeira racionalização dessas atitudes sob a aparência de solidariedade e fraternidade de alguns. No entanto, algumas inegáveis ações de extorsão, apropriação indébita de auxílios aos mais carentes e incontáveis atos de corrupção deixam bastante claro o quanto poderão durar a solidariedade e a ajuda.
Os instintos que pareciam adormecidos se transmudam em egoísmo e crueldade à medida que essa situação perdure e cada um passe a lutar pela sua própria preservação e a dos seus. A ambivalência desses sentimentos não deixa dúvidas do que nos espera assim que, acabada a crise, formos contabilizar os prejuízos, conclui Freud ([1923] 1975).
Na situação atual, a necessidade de negar a morte é a única possibilidade para muitos que não conseguem se haver com a sua fragilidade e sua finitude.
Lembramos que, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos negavam a realidade do holocausto, inclusive alguns judeus que fugiam dos campos de extermínio. Quando relatavam suas experiências nos guetos, eram às vezes desmentidos pela insuportável sensação de admitir a verdade cruel. por mais incrível que isso possa parecer.
Ademais, não podemos esquecer que o próprio Freud negou sua doença e a morte, quando retardou a procura do tratamento para o seu câncer.
Trabalhando com pacientes renais crônicos em grupos realizados durante a hemodiálise, tivemos a experiência de observar que, quando um paciente morria, o grupo tentava negar a morte especulando sobre a ausência. Quando finalmente conseguimos trabalhar essas ausências como a morte, procuravam sempre justificar que o que tinha acontecido era o resultado de alguma transgressão ao tratamento.
Um paciente com linfoma, que acompanhamos também, após trabalhar a questão da sua morte durante toda a sessão, cogitava do vestibular que realizaria no próximo ano e acrescentava: Eu desço ao mais profundo do poço, mas depois eu preciso subir à tona para respirar.
Não é que todo medo seja o medo da morte. O medo de um objeto libidinal deságua em ansiedade.
Porém, o medo da morte tem muito a ver com o medo da castração, o medo do desamparo e da separação, que remete ao medo no momento do nascimento, a castração primeira, porque aí perdem o bebê, o útero materno e a mãe, seu concepto, por nove meses partilhando um corpo só.
Atualmente, além de sermos privados do acompanhamento de doentes em hospitais, devido à pandemia, ainda nos foi tirada a possibilidade de realização de ofícios religiosos, nos velórios. E até os sepultamentos foram interditados em casos de covid, em que a cremação é a norma.
Privam-nos de rituais que servem de auxílio à elaboração do luto. Transformam-nos em Antígonas errantes a implorar o enterro dos irmãos que pretendem insepultos. Faltando-nos a cerimônia do sepultamento, é como se a elaboração do luto fosse dificultada por uma dúvida simbólica.
Os fantasmas desses mortos a quantos não emparedam com sentimentos de hostilidade e culpa?
Referências
ARIÈS, P. O homem diante da morte. v. 1. Tradução: Luíza Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1981. [ Links ]
BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1976. [ Links ]
FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975. p. 27-71. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19). [ Links ]
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte: I - A desilusão da guerra (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975. p. 285-312. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14). [ Links ]
NASCIMENTO JÚNIOR, Luiz Gonzaga do (Gonzaguinha). O que é o que é. In: Disponível em: https://www.letras.mus.br/gonzaguinha/463845/. Acesso em: 30/05/2021. [ Links ]
SARTRE, J.-P. Entre quatro paredes. Tradução: Guilherme de Almeida. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1977. (Teatro Vivo). [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: pivamarli@gmail.com
Recebido em: 03/06/2021
Aprovado em: 25/06/2021
SOBRE A AUTORA
Marli Piva Monteiro
Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise.
Filiada à International Federation of Psychoanalitic Societies (IFPS).
Médica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Tradutora. Escritora.
Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil.
Presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB) no biênio 1990-1992.
Representante da IFPS entre 2012 e 2018.
Livros publicados:
Feminilidade: o perigo do prazer (2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974).
Mulher - profissão mulher (Petrópolis, RJ: Vozes, 1991).