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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

A palavra e seus poderes em Freud

 

Note on words and their power in Freud’s work

 

 

Daniel Delouya*

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Um tratamento psíquico, da alma, afirma Freud em 1890, só é possível por meio das palavras, e desde que se devolva a elas o seu feitiço originário. A ação de palavras, seu poder e suas relações com a matéria, a produção e o tratamento da alma estão no cerne das preocupações de Freud desde 1890 até 1939.Neste trabalho retomamos em forma de notas alguns desses eixos.

Palavras-chave: Alucinação. Imagens de movimento. Representação-coisa. Representação de palavra.


ABSTRACT

A mental treatment of soul is only feasible, according to Freud (1890), through words, on the condition that they should be endowed with their original sorcery power. The action of words, their power and their relation to the soul’s matter, production and treatment are main concerns of Freud’s work since 1890 till 1939. In this work we take some notes along some of these axes.

Keywords: Hallucination. Images of movement. Thing-representation.Wordrepresentation.


 

 

Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas urinam na perna...

Manoel de Barros (1996),

 

“Você vai lá só para isso, só para falar?! Fale comigo, e faço isso (brincando) por um terço do preço de seu analista.” Comentário, surpresa e risos de leigos que ainda ressoam nos ambientes sociais de nosso tempo. “O leigo teria, certamente, dificuldades em entender como é possível eliminar distúrbios da mente e do corpo ‘tão-somente’ pelas palavras do médico” (Freud, 1890/2002). “Quer que eu acredite em mágica?”, pergunta, atônito, o leigo de Freud. O leigo adivinhou, afirma Freud, pois as palavras de nosso cotidiano “não são outra coisa senão um feitiço que perdeu a sua eficácia”. Um “tratamento psíquico, tratamento da alma” (título desse artigo de 1890) consiste, justamente, em afetar a alma por meio de palavras, desde que a elas se devolva o seu poder originário de feitiço.

Nenhum de nós, pacientes e analistas experientes, escapa da surpresa desse poder mágico das palavras ao serem proferidas seja por nós, seja pelo outro.Um efeito que logo se esvai por detrás da consciência empírica do senso comum da vida da vigília. Episódios como “Falei coisas que jamais pensei em dizer” ou “O que você falou me tocou de tal modo” têm um efeito, por vezes, drástico e determinante para manter a análise em curso, ou outra relação qualquer. A mesma surpresa reemerge, do lado da analista, quando se dá conta do efeito de uma palavra que emitiu. Ação mágica das palavras que é facilmente detectável em crianças quando contestam com veemência – “Mas a minha mãe falou!” –, ou no adolescente – “Ela falou e com isso quebrou minhas pernas” –, sem esquecer que uma palavra do amante, ou do chefe, pode tanto transformar nosso estado de mente como levar alguns a loucura e outros ao suicídio.

Todo o esforço da nova ciência, segundo Freud, consiste em devolver às palavras o seu poder mágico. E esse poder, continua ele, se origina na psique, na alma. Não significa, necessariamente, que a alma é feita de palavras ou se estrutura como linguagem, como alguns diriam mais tarde, mas que talvez exista algo na alma que confira esse poder central às palavras. Cem anos mais tarde,André Green (1983) reforçou essa missão freudiana, com outras palavras, ao dizer que “cabe à análise tirar a palavra de seu luto”, desenlutá-la.

No referido artigo de Freud, o caminho que ele toma é o de mostrar o efeito hipnótico veiculado pela palavra. Porém, essa inferência é apressada e não o tranqüiliza, pois, de um lado, a eficácia da palavra, tal como a desenhamos acima, é atrelada a certa situação de transação intersubjetiva. Seria, então, o estado hipnótico o responsável por conferir a elas seu poder mágico e sugestivo? “Seria ótimo se assim fosse, mas a realidade é outra”, lamenta Freud. Os pacientes resistem, por conta de elementos singulares, ainda obscuros para ele. Por outro lado, a situação dessimétrica, entre o hipnotizador e o hipnotizado, acena a Freud a analogia preciosa desse efeito com o estado amoroso e passional, com a relação corriqueira entre médico e paciente, do líder com a multidão, e essas com a relação mãe-bebê durante a qual a primeira dispensa cuidados imprescindíveis ao último1.

Uma obscuridade, ou melhor, uma tensão se instaura quanto à origem do poder das palavras, entre a abertura dada pelo estado hipnótico e as singularidades do sujeito. A resistência deste e sua suscetibilidade às palavras logo ocuparão um lugar de destaque na técnica freudiana. Mas estamos ainda em 1890, quatro anos após a volta de Paris, e um ano após a visita feita a Bernheim em Nancy, onde Freud assiste à alucinação negativa do hipnotizado que coloca em relevo a resistência e os elementos singulares na sujeição às palavras do médico. Entretanto, estamos, também, em plena preparação de uma monografia sobre A concepção das afasias (1891/1987), relacionada com o posto que Freud ocupa desde sua volta de Paris no hospital de crianças com paralisias cerebrais.Nesse livro, ele utiliza material de pacientes afásicos de vários pesquisadores, como Broca, Wernike, Lichtheim, Bastian e, sobretudo, de Grashey, demolindo suas hipóteses sobre a localização anatômica das funções de linguagem e as vias de transação fisiológica entre esses centros, para resgatar uma natureza “unicamente psicológica” das palavras, sem descartar a existência de uma matriz biológica que a sustente. Contudo, as afasias descritas na literatura permitem-lhe dissecar a palavra nas imagens interligadas que a compõem e suas vias de conexão com as representações da coisa. Sabemos do poder dessa arquitetura para a metapsicologia freudiana e para seu entendimento das psicoses, mais de vinte anos depois, porém vale salientar, já neste momento histórico, a descoberta psicológica de haver “imagens” nas palavras, pois a imagem ressoa fortemente em qualquer magia, poder e efeito mágico. Nesse período, Freud está mergulhado no tratamento do sofrimento psíquico, e sua paciente Von Emmy, da qual ele cuida junto com Breuer desde 1887, é convocada à cena do livro de 1891, o que reforça a crença de muitos de que a construção do modelo nessa monografia é nutrida pela clínica dos “doentes dos nervos”.

Retornaremos a esse modelo mais tarde. Adiantamos que as palavras são dotadas, na trajetória freudiana, de uma espécie de aliança de natureza hipnótica, mágica e, por fim, alucinatória. Aqui, é preciso voltar à clínica. Muito cedo, em 1895, Freud nos fornece uma hipótese fascinante sobre a origem da linguagem, tomando partido do ataque histérico, concebido como figura da linguagem de um afeto (dificuldade de “engolir alguma coisa” = insulto; dor como se “apunhalado no coração” = menosprezo). Isso o levou a pensar numa fonte comum tanto à linguagem como ao afeto, cujo protótipo seria o ataque histérico: se o estado afetivo é gerado pela enervação motora e sua descarga, os sentimentos são a “percepção” (interna) e a figuração dessa enervação, ação e descarga no largo escopo das qualidades de prazer e desprazer. Apoiado em Darwin, o molde de tal inervação é a via reflexa – uma reação, a semelhança do ataque histérico, e a inscrição dessa experiência na pré-história da espécie, porque serviu à “preservação”. Munir-se da “expressão das emoções” (Darwin) foi o modo de defender-se de um perigo. De que modo? Justamente pela comoção do outro, pela “identificação” deste com a dor e a angústia do bebê perante o assalto dos estímulos objetais, sensoriais e pulsionais. Enervação, portanto, que é tributária de uma expressão corporal que comunica (emoção & linguagem), convocando o outro próximo e auxiliar (Nebenmensche). A “percepção” (linguagem & consciência) de afetos seria a apropriação dessa ação específica proporcionada pelo adulto. Vemos, então, por que Freud estipula no final do caso Elizabeth (1895/1974) uma origem comum à linguagem e aos afetos e por que encontra no estado de nascimento o protótipo da situação de perigo (desamparo) e da convocação do adulto como reiteração e modelo da história da espécie, em que a dor e a angústia dessa situação são as sementes das quais brotarão as emoções (1917, 1926).2

Fornecemos, de forma concisa, no último parágrafo, alguns elementos auxiliares, advindos de textos posteriores de Freud, para sua impressionante hipótese sobre a origem da linguagem, aventada a partir do seu trabalho inicial com a histeria. Seria importante debruçarmos sobre esses elementos, para avaliarmos o alcance da hipótese acerca da origem comum à linguagem e aos afetos.

No mesmo ano de 1895, Freud redige O projeto de uma psicologia, no qual se encontra a chave desses elementos: o “grito” do bebê expressa a dor e a angústia oriundas das urgências vitais diante da ausência que enfrenta com o nascimento. Esse grito convoca o adulto que, pela identificação e a compaixão, despertadas nele por uma via regressiva às suas próprias dores de origem, se apressa em amparar a criança e atender a suas necessidades.Nesse encontro, o adulto não a acolhe apenas, dando-lhe colo, continência, contorno, mas responde com movimentos e falas que ordenam o espernear do bebê. Os movimentos e falas o dotam de imagens de movimentos, sementes figurativas da representação, proporcionando prazer, e acabam por situá-lo, aos poucos, no espaço e tempo dos outros. Tratase de uma função reflexiva, de “imitação” (Freud) no adulto, fomentada, em vias regressivas, pelos serviços prestados outrora por seu próprio objeto primário.

É preciso aqui considerar a dimensão econômica em jogo: os estímulos internos pulsionais, e os externos, do ambiente e dos objetos que o habitam, buscam uma descarga, o que se nota pelas moções centrífugas do choro e do espernear. Por outro lado, existe um segundo princípio no bebê, operando em sentido oposto a este da descarga, e que é centrípeto, de retração [de ‘fuga’, segundo Freud, (1895/1995)] – que seria atribuído, 25 anos mais tarde, à tendência da pulsão de morte –, que freia, amortiza, e resiste a essa ameaça agonizante de dissolução em um espaço infinito. A combinatória da ação das duas tendências resulta no estado de desamparo. Com o aparecimento do adulto, o contorno que ele proporciona e as ações e movimentos de sua fala e seu corpo, de modo reflexivo, parecem tomar partido da tendência centrípeta no bebê, e conduzem nele, “por imitação”, o desenho de imagens de movimentos, da mesma forma que o suporte sólido de uma página possibilita, pela sua resistência, o desenhar de uma figura. A soma e a complexidade da instauração de tais imagens no bebê, em meio à satisfação de suas urgências vitais, constituem as experiências de satisfação. Esses obtêm registro mnêmico e, ao se expandirem, pela experiência, compõem a rede de referências internas, auto-erótica e afetiva da vida do sujeito.

Interessa-nos destacar as imagens de movimento da fala da mãe em relação ao grito do bebê que com isso provêem figuras e sentidos à dor de seus anseios. As imagens acústicas que chegam a ele, provindas da mãe no intervalo entre seus corpos – criado pelo hiato doloroso da falta ante os anseios pulsionais do corpo –, alteram seu choro conforme o ritmo da imagem da voz da mãe, o qual se associa às imagens de movimento do corpo dela em meio à satisfação de suas urgências. Tal como o grito é vinculado à agonia do corpo do bebê, as imagens acústicas oriundas da voz da mãe, que compreende e nomeia as suas dores, se associam às imagens de movimento do corpo dela, trazendo alívio à criança. A palavra é associada ao corpo, a seus movimentos, desde o grito e o espernear. A imagem acústica é associada às representações sensórias do objeto, mas ambos se associam com a imagem motora da palavra, apropriada, pelo bebê, na imitação, ao emitir sons que fazem eco aos da mãe, assim como seus movimentos desordenados, ao se submeterem às impressões sensoriais dos movimentos da mãe, tendem a se apropriar deles, “por imitação”, convertendo- se em imagens próprias de movimento.

A figura abaixo, retirada do livro de 1891 (Freud, 1891/1987), nos permite enxergar as vias de transição entre imagens de palavras e representações-coisa nesse plano inter e intra-subjetivo que acabamos de descrever.

 

 

É preciso frisar que, da mesma maneira que a interpretação do espernear e da braveza no rosto do bebê se forma no adulto a partir do grito, as representações-coisa, na origem das quais se encontram as imagens de movimentos do bebê, só são acessadas pela via central às imagens da palavra (a linha dupla na Figura 1 que liga a imagem acústica da palavra à associação visual do objeto). A linguagem ordena as associações infindáveis da coisa. Infindáveis porque construídas pela experiência. A coisa em si não é conhecida. O esquema abaixo, construído a partir das afasias, ilustra isso.

 

 

A não-construção de imagens de movimento no bebê por falta da disponibilidade psíquico-corporal do objeto [que constitui a coisa, para o bebê (Freud, 1895/1995)] levaria, forçosamente, a uma construção de linguagem sobre um vazio, tornando-a concreta, como ocorre no autismo e na psicose. Neste contexto, da patologia, é preciso salientar que a carência da presença do objeto deixa o bebê à mercê de um estado catastrófico porque a fuga (inerente à moção centrípeta) da dor – gerada pela ausência ante a urgência de descarga (moção centrífuga) dos estímulos internos e externos que buscam a satisfação –, deixa o ambiente hostil, de modo que, segundo Freud, “o grito do bebê se torna a própria característica da coisa” (terceira parte do Projeto...), uma espécie de identificação projetiva. A dor é primária em relação às qualidades de prazer, uma vez que é a dor do anseio pulsional, oriundo do corpo, que desperta fuga. E é esse jogo de aproximação e recuo, característico da experiência da dor dos órgãos, que se sintoniza com o jogo de presença e ausência da mãe, instaurando o “contato” (Freud, 1923/1991b) de implantação de imagens de movimentos de si, como descrito acima. Contato que, de um lado, transforma a dor em angústia-sinal ante o perigo (aproximação e fuga) e, de outro, em prazer pela realização em imagens e satisfação junto ao objeto.3 O eu, diria Freud em 1895 e 1923, é uma organização de traços mnêmicos de representações-palavra e representações-coisa, acumuladas nas experiências sucessivas com os objetos. E essa organização é feita segundo os dois eixos entrelaçados: de defesa (angústia-sinal) e de desejo de realização.

A noção de imagem de movimento, amplamente utilizada no Projeto..., é precursora descritiva da representação (Vorstellung). Ela se baseia na articulação entre os elementos sensoriais do encontro dos corpos, porém é uma “criação inusitada” de elementos psíquicos, pois se incita pelo “movimento”, próprio da tendência de descarga dos estímulos internos e externos, mas que só se torna “figura, imagem” pela contenção processual inerente à tendência de retração, que se realiza mediante a função “reflexiva” do objeto. É esse seu trabalho que permite, como frisamos inúmeras vezes, o “registro” dos trajetos complexos da satisfação no sujeito para seu futuro uso, assim como nele providencia “notícias de si”, de seu corpo, o apropriando de uma percepção interna, da qual toma consciência pela associação primordial, desde o grito e o espernear, entre as imagens da palavra e as representações- coisa.

No terceiro capítulo do Totem e tabu (1913/1986a), Freud postula um estado mágico de percepção no qual o homem primitivo projetava seus movimentos no mundo, instaurando o único sistema de pensamento, o animista. No entanto, com a vinculação às palavras pelo outro, adquiriu- se a percepção interna das próprias imagens de movimento. Ferenczi, no mesmo ano, segue Freud no artigo sobre o desenvolvimento do conceito da realidade, em que encontra, no bebê, a passagem do estado animista para o do efeito mágico de palavras que prepara o caminho para a percepção das realidades externa e interna.

Vamos deixar de lado a complexa diferenciação seqüencial das imagens de movimentos em afetos e pensamento para voltarmos aos poderes da palavra. Vimos que o acesso às representações-coisa de imagens de movimento de si se torna possível pela sua conexão com as imagens de movimento das palavras, proporcionadas pelo trabalho de identificação do objeto. Porém, do que são feitas as imagens de movimento, de palavras ou coisas? Qual é seu substrato? São as urgências vitais e sua pulsação que constituem sua matéria-prima, gerando dor pela ligação que têm com o corpo. A pulsão, entretanto, tende a se satisfazer pela “alucinação”, ou sua pulsação equivale à satisfação pela alucinação – modo de funcionamento primitivo da psique (Freud, 1895/1995). A alucinação é ato, carregando no interior de sua realização a potência figurativa (Darstellbarkeit). A alucinação se imanta, de início (como na citação acima de Freud), pela “hostilidade” em função da fuga da insuportável dor, ao mesmo tempo que busca satisfação. É o trabalho do objeto que permite ligar a dor para instaurar, no próprio substrato alucinatório, trajetos, derivados de imagens de movimento estabelecidas no intervalo dos corpos. No Totem e tabu (1913/1986a), Freud demonstra, ao comparar o neurótico obsessivo com o homem primitivo, o poder mágico e alucinatório das palavras. A palavra carrega consigo todo o poder de “contágio”, próprio da pulsão sexual do desejo incestuoso e do vislumbre de retaliação do pai morto da tribo, a ponto de essa proibir a enunciação do nome do morto e obrigar a mudança do nome dos sobreviventes com o mesmo nome. As palavras em seus afãs alucinatórios, oriundos da pulsão, são atos – atos moldados (mediante a dor) pelo objeto e obtendo registro para passar a constituir o universo dos pensamentos. Essa é a aquisição da cultura, como ressalta Freud em seu Moisés, de 1938.

Existe, todavia, a questão de como a palavra passou a se encarregar da função da percepção interna (ver acima). A semelhança entre o estado dormente e o morto, assim como entre o sonho e os movimentos na vida da vigília, faz pensar que o espírito do morto é oculto e pode “reaparecer” (vingar), do mesmo modo que o dormente pode acordar, agir. “Raciocínio primitivo” (Freud, 1913/1986a) que releva a ambivalência afetiva originária em relação ao pai. O assassinato, como a percepção de um desejo, assunção de um movimento próprio, foi uma concessão narcísica na história, em que o sujeito assumiu a solidão do “ato daExiste, todavia, a questão de como a palavra passou a se encarregar da função da percepção interna (ver acima). A semelhança entre o estado dormente e o morto, assim como entre o sonho e os movimentos na vida da vigília, faz pensar que o espírito do morto é oculto e pode “reaparecer” (vingar), do mesmo modo que o dormente pode acordar, agir. “Raciocínio primitivo” (Freud, 1913/1986a) que releva a ambivalência afetiva originária em relação ao pai. O assassinato, como a percepção de um desejo, assunção de um movimento próprio, foi uma concessão narcísica na história, em que o sujeito assumiu a solidão do “ato dapalavra”, do desejo ante “o silêncio” da morte do pai – momento em que a palavra veio ao mundo (Freud, 1913/1986a).4

Adentrar a cultura significa, então, situar-se no mundo de sujeitos, cuja convivência é regida pela castração, um limite possível de se atingir somente por um ato histórico, fruto do desejo de assassinato do pai primevo. O assassino, diz Freud, em 1921, é o filho caçula e preferido da mãe, encorajado a matar o pai e, assim, se tornar “o poeta”, pois traz as palavras aos homens, instituindo com elas uma nova ordem, não mais a do pai perverso e onipotente, mas a de divisão dos bens do mundo entre todos. O ato da palavra remonta, na história, ao assassinato.No início, conclui Freud, em 1913, era o ato.

Para concluir, vemos como as perplexidades iniciais de Freud, de 1890, em relação aos poderes da palavra, acabam sendo resolvidas no decorrer de sua longa trajetória. A criação de imagens de palavras e sua relação com as representações- coisa se dão junto ao outro. Trata-se da criação de uma trajetória singular ramificada que é revista diariamente com os outros, mas que pode ser examinada em uma análise, em que o poder das palavras do analista, assim como o do paciente, deve respeitar os limites e as possibilidades impostas pelas trajetórias singulares em que construíram as relações entre palavras e coisas junto a uns outros um tanto singulares. Como exemplo corriqueiro desse trabalho da análise, trago um conhecido fragmento: um paciente entra em nossa sala. O modo com que respira e o seu aspecto facial agonizante nos fazem suspeitar de uma angústia.Ao deitar, perguntamos: “Angustiado?”.Uma só palavra, que traz alívio e desperta a fala. A angústia, assim como a sua fonte de dor, é desprovida de tempo ou este é parado ou infinito. Ao fornecermos uma imagem, um sentido, o tempo volta a escoar, ligando as palavras às coisas. No artigo de 1924 (Freud, 1924/1991c) sobre o masoquismo, Freud aponta o surgimento das qualidades, das imagens, a partir da pulsação. O tempo e a consciência se devem a uma “contenção” que permite um dar forma, como se ligando em imagem os picos das ondas da pulsão. Um sentido na imagem que traz à tona o tempo, as “notícias de si” (Freud, 1895/1995).

Falar e/ou escutar é “quase” tudo: é dar um livre curso ao poder alucinatório das palavras para encontrarem no corpo, mediante a dor, e com o outro, os próprios limites, as próprias formas, de sua realização.

 

Referências

Ferenczi S. (1992). O desenvolvimento do sentido da realidade e seus estágios In: S. Ferenczi, Obras completas: Psicanálise 2 (pp. 39-54). São Paulo:Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1913).        [ Links ]

Freud, S. (1976). Introductory lecture XXV: Anxiety (Pelican Freud Library, vol. 1, pp. 440-460). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1916).

Freud, S. (1977). A fragment of an analysis of a case of hysteria (Pelican Freud Library, vol. 8). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1905).

Freud, S. (1985). Group psychology and the analysis of the ego (Pelican Freud Library, vol. 12, pp. 91-178). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1921).

Freud, S. (1986a). Totem and taboo (Pelican Freud Library, vol. 13, pp. 43-224). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1913).

Freud, S. (1986b). Moses and monotheism (Pelican Freud Library, vol. 13, pp. 237-386). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1938).

Freud, S. (1987). Contribution à la conception des aphasies. Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1891).

Freud, S. (1991a). Beyond the pleasure principle (Pelican Freud Library, vol. 11, pp. 269-338). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1920).

Freud, S. (1991b). The ego and the id (Pelican Freud Library, vol. 11, pp. 339-408). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1923).

Freud, S. (1991c). The economic problem of masochism (Pelican Freud Library, vol. 11, pp. 409-426). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1924).

Freud, S. (1993). Inhibition, symptom and anxiety (Pelican Freud Library, vol. 10, pp. 140-470). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1926).

Freud, S. (1995). Projeto de uma psicologia (O. F. Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895).

Freud, S. (2002).Mental treatment [Soul treatment]. In S. Freud, Psychoanalytical treatment essays, 1890-1938 (pp. 59-72). Tel-Aviv: Am Oved. (Trabalho original publicado em 1890).

Freud, S. & Breuer, J. (1974). Studies on hysteria (Pelican Freud Library, vol. 3). London: Cox and Wyman. (Trabalho original publicado em 1895).

Green, A. (1983). La langage dans la psychanalyse. In A. Green, R. Diatkine, E. Jabes, M. Faim & I. Fonagy, Langage (pp. 19-250). Paris: Les Belles Lettres.

 

 

Endereço para correspondência
Daniel Delouya
Rua Capote Valente, 439/104 – Pinheiros
05409-001 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3063-0018
E-mail: delouya@terra.com.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Prof. Dr. do Programa de Pós-graduação da Universidade São Marcos.
1 Em termos modernos, a dúvida seria se é a transferência (farejada fortemente por Freud aqui) que confere esse poder às palavras, ou se esse poder pertence às próprias palavras.
2 Cf. A conferência XXV (angústia) e o livro de 1926, Inibição, sintoma e angústia.
3 Descrição que se encontra, também, no livro Eu e Isso (1923) e no Adendo C do livro de 1926.
4 Freud se refere (no terceiro e quarto capítulos do livro de 1913/1986a) a uma queda narcísica na história do homem, passando da doutrina animista (correspondente ao narcisismo primário) para a dos espíritos, personagens e conflito, que assinalam o início da religião (correspondente à entrada na cena edípica), em que “a palavra” é co-extensiva à instauração do recalcado, do assassinato, erguendo o sujeito e traçando a diferenciação entre o manifesto (percepção externa) e o latente (memória).

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