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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

DEBATE

 

Biotecnologia*

 

 

Ao assumir a editoria da Revista ide/psicanálise e cultura, a partir do número 41/Erotismo, em 2005, inauguramos um espaço de interlocução a posteriori do lançamento de cada número, entre seus autores e leitores. Aqueles que já tiveram a oportunidade de participar conosco destas discussões têm idéia de como são profícuas para retomar e aprofundar, ao vivo, o tema tratado em cada número da revista, sob a óptica candente de cada autor. Agora, este espaço já se tornou o “nosso tradicional Debate”, com posterior publicação no número seguinte da revista, na seção Debate. Tais encontros buscam, como proposta, uma dinâmica livre, informal, de troca horizontal.

Este texto se refere, portanto, ao Debate em torno da ide 43/Biotecnologia, em que são enfatizados os aspectos metodológicos, epistemológicos e éticos inerentes a cada um dos seguintes diferentes campos do conhecimento: psicanálise, neurociência e biotecnologia.

ide: Em sintonia com a tradição da ide de manter o diálogo ininterrupto entre psicanálise e outros campos de conhecimento, partimos para a escolha do tema Biotecnologia, para o número 43, guiados não por uma idéia, mas sim por um sentimento de estranheza. O sentimento de estranheza que se fez presente ao nos defrontarmos com os avanços das novas tecnologias que atravessaram as paredes permeáveis que são de nossos consultórios. Como assinala Marcio Giovannetti, em seu artigo “Inquietações na clínica psicanalítica”, publicado na ide 43/Biotecnologia: “O psicanalista contemporâneo só sobrevive se está em sintonia com a perplexidade e com a inquietação estruturantes de nosso tempo” (p. 41). Repetimos, estruturantes. Portanto, a inquietação provocada por esse estranhamento, por paradoxal que possa parecer, é, sem sombra de dúvida, um dos núcleos organizadores do nosso fazer psicanalítico.

O sentimento de estranheza, esquadrinhado pela maestria de Freud, em seu texto “O estranho”, guia de nossas considerações sobre esse tema, pode abrir caminhos para inúmeras reflexões. Mas, se esse estranho abandona sua condição primeira de inquietação e assume a categoria de sentimento aterrador, é a perplexidade que toma conta de nós. Benilton Bezerra em seu artigo, também publicado na ide 43/Biotecnologia, “O impacto das biotecnologias: Um ponto de vista”, nos diz que cabe a nós transformar a perplexidade em reflexão compartilhada para que possamos, como psicanalistas, construir representações para essas novas situações.

Partindo então do sentimento de estranheza que se ofereceu como disparador para nossas reflexões e de seu contraponto, o sentimento de familiaridade, selecionei um pequeno trecho dos primeiros parágrafos de dois livros, recém- publicados, de literatura ficcional. Essa escolha tem seus motivos: em primeiro lugar, são escritores do nosso tempo, e, como tal, com o imaginário em homeostase com a cultura, oferecem tantas vezes a transcrição de experiências que também conhecemos, mas temos dificuldade de relatar. A nossa intenção é mostrar como duas expressões tão diferentes, ambas do nosso tempo, podem acionar a inquietação própria do sentimento de estranheza, ou a tranqüilidade da sensação de reconhecimento e familiaridade.

O primeiro trecho é do livro Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro:

Me chamo Kathy, tenho trinta e um anos, e sou cuidadora há mais de onze anos. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito meses até o final do ano.O que dará quase exatos doze anos de serviços. Sei que o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que receberam ordens para parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo menos um que ficou catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar.Mas não resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez tão impressionante que quase nenhum chegou a ser classificado como “agitado”nem mesmo antes da quarta doação.Muito bem, tal vez eu esteja me vangloriando um pouco agora admito. É que significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo essa parte dos doadores continuarem “calmos”. Desenvolvi uma espécie de instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar, e quando tão-somente encolher o ombro e dizer-lhes que não se entreguem ao desânimo (2005, p. 9).

O segundo trecho é do livro Amor para sempre, de Ian McEwan:

Quarenta minutos mais tarde eu estava esquadrinhando as telas em busca de informação sobre os desembarques. Se alguém algum dia quiser ter provas da tese de Darwin de que as diversas expressões das emoções dos seres humanos são universais, estão inscritas geneticamente, creio que alguns minutos juntos no portão de embarque do terminal quatro de Heathrow são suficientes. Vi a mesma alegria e o mesmo sorriso incontrolável no rosto de uma bela nigeriana, de uma avó escocesa de lábios apertados, e de um empresário japonês pálido e correto, quando vieram empurrando os carrinhos e bagagens reconheceram um vulto no meio da multidão. Ouvi várias vezes o mesmo som de suspiro com uma nota decrescente quase sempre acompanhado de um nome, ao mesmo tempo em que duas pessoas se avançavam para se abraçar (1999, p. 10).

Esses dois trechos retirados de histórias ficcionais têm a intenção de trazer para este momento algo do tema de estranheza e familiaridade que ambas as histórias imprimem nos leitores. No primeiro trecho, a narradora se apresenta por um fato – sua idade – e por uma função – cuidadora. Ela apresenta também, por meio de uma função, os outros personagens que a acompanharão no decorrer da história. Nós leitores ficamos às voltas com a dificuldade de imaginar quem é essa pessoa, dificuldade de criar em nossa imaginação uma imagem dessa pessoa que se denomina cuidadora. A partir do modo como ela se apresenta, somos lançados numa inquietação ao pressentirmos que entramos em terreno desconhecido. Retomo Benilton Bezerra ao indicar, no mesmo artigo publicado na ide 43/Biotecnologia, que uma das novas experiências que o avanço da biotecnologia oferece é “pela emergência de um regime de construção identitária fundada em predicados e funções biológicas” (p. 52).

Acreditamos que a presença desses personagens que nos colocam no estranhamento imediato se deve àquilo de que o escritor lançou mão para sua construção: esta identidade por um dado predicado com o qual temos, certamente, dificuldade para nos reconhecer.

A segunda história, conhecemos bem: entramos de imediato naquele aeroporto movimentado em que reconhecemos as pessoas que lá estão e num átimo somos uma delas, envolvidos com o burburinho, o movimento, as chegadas e partidas. Retomamos o conforto do reconhecimento, da humanidade dos personagens pelos quais podemos sentir os mais diversos sentimentos: simpatia, amor, constrangimento, raiva, tolerância, dúvida, repulsa, tudo aquilo que nos tem sido tão familiar.

Carlos Vogt: Talvez possa ser enfatizada a questão relativa ao texto de ficção, à literatura, ao que eles trazem como contraponto a essa dinâmica de uma ciência, a biologia, que vem evoluindo cada vez mais, usando um trocadilho, a partir da publicação do livro Origem das espécies, do Darwin, na metade do século XIX, dos refinamentos de quantificação que foi sofrendo com o desenvolvimento da bioinformática, da genômica, da proteômica, da descoberta do DNA, por Watson e Crick, a dupla hélice etc. Há um movimento curioso porque, de um lado, temos vários evolucionistas ferrenhos, mas que se recusam a estender o evolucionismo, a seleção, a qualquer outro domínio que não seja o do biológico. Eles são defensores do evolucionismo biológico e de suas diferentes variantes, mas se recusam, corretamente a meu ver, a metaforizar o conceito para a política, para a sociologia, e também para os domínios do conhecimento que se ocupam da mente. Esse é um tema interessante porque uma das grandes tensões culturais, epistemológicas, que vivemos é a tensão entre natureza e cultura. Temos os embates do ponto de vista dos avanços e dos recuos dos campos, à medida que o conhecimento nos leva a empurrar a cultura para territórios mais restritos e, outras vezes, o próprio processo cultural ao tentar recobrar o domínio das explicações.

Esse embate tem muito a ver com a psicanálise e com as neurociências hoje, e tem no centro da discussão a questão da busca da materialidade de fenômenos que eram objeto de um tratamento rigoroso, mas cuja motivação literária era bastante grande. Eu falo, em particular, da consciência, ou seja, há, atualmente, anúncios reiterados de que a ciência, a biologia e as neurociências estão num processo avançado de identificação dos genes da consciência e a identificação cada vez maior da mente com o cérebro, no sentido de tratar a mente como um objeto identificado inteiramente com o cérebro de modo a termos localizações espaciais, materialidades identificáveis.

O campo do conhecimento que mais tem avançado é a biologia. Uns anos atrás, a ciência que recebia maior volume de investimentos para pesquisa era a física. Hoje, a biologia e suas diferentes áreas, juntamente com as ciências da saúde, ultrapassaram essa posição que prevaleceu por muito tempo, no Brasil e no mundo.

Esses são alguns elementos que podem contribuir para uma discussão que passa pela questão-chave da história da sociobiologia. Por mais execrada que tenha sido e possa ser – e ela tem ambições superdimensionadas –, a biologia tem uma longa tradição de estudos em etologia, e com ícones, como Lorenz e outros, que buscam fazer a transferência de estudos do comportamento animal para o comportamento humano, e, ao mesmo tempo, da análise propriamente biológica para a análise psicológica, sociológica. É uma fascinação que criou uma forte tradição.

Tudo isso para dizer que um velho tema nosso conhecido, o do determinismo, ressurge sob forma mais sofisticada, ou seja, quais são os elementos determinantes do nosso destino, se falarmos em tragédia grega, ou da nossa destinação no mundo, se pensarmos de modo mais romântico. Mais dramático, menos trágico. E daí, a busca da materialidade, esse processo de identificação da mente com o cérebro, o avanço dos estudos em neurociência dão uma volta interessante. É como se o Freud desse uma pirueta e retomasse a sua neurótica, a que ele se dedicou antes de lançar os fundamentos da psicanálise.

Alan V.Meyer: Na discussão promovida por esta revista sobre “Aceleração tecnológica e quebra de representações”, da qual participei junto com o Cláudio Rossi, Marcelo Leite e Laymert Garcia dos Santos, este último especializado em sociologia da biotecnologia, a aceleração vertiginosa das transformações tecnológicas surgiu como um dos temas fundamentais. O século XX corresponde a uma contração de tempo que faz com que cem anos se transformem em dezesseis, e projetivamente esse crescimento é exponencial. Os dados que o Laymert apresentou são realmente espantosos e o levam a perguntar-se sobre a possibilidade da humanidade digerir essas imensas transformações. Essa questão é constante e tende a ter uma conotação catastrófica, ao concluir que a assimilação é simplesmente impossível.

Tratei dessa questão num artigo intitulado “O acidente”, publicado no Jornal de Psicanálise 36 (66/67), de 2003, baseado numa exposição extraordinária organizada por Paul Virilio, na Fondation Cartier pour l’art contemporaine, intitulada Ce qui arrive, que prefigura um “Museu do Acidente”. É uma dimensão do acidente diretamente ligada à temática da velocidade, que foi objeto de uma exposição anterior feita pelo mesmo autor. Os exemplos são muitos e cada um pode fazer a sua lista. Basta lembrarmos da velocidade da comunicação pela internet e seus “acidentes”, hoje tão banal, mas simplesmente inimaginável na minha juventude. Entretanto, mesmo com transformações tão impressionantes, temos conseguido lidar com tudo isso de modo bastante razoável, o que mostra que temos uma plasticidade e uma capacidade de adaptação bastante ampla. A questão mais séria, no meu entender, está na possibilidade de esquecermos nosso próprio fundamento, de nos esquecer de nosso esquecimento. Aí até a psicanálise ficaria impotente.

O texto da Cintia “Quem é você” é muito interessante. Ao tratar da questão da fertilização in vitro, nos informa que atualmente já nasceram mais de um milhão de crianças por esse método; depois, ela passa a considerar as conseqüências desse método na vida anímica do sujeito. Conta o caso de um garoto que queria saber quem era seu pai. Para tanto, ele lança mão de um site na internet no qual se caracteriza como “um garoto concebido com a ajuda de um doador anônimo do esperma”. Ou seja, o pai é apenas um coadjuvante. Ele só dá uma ajudinha. Não é mais uma necessidade. Trata de uma questão psicanalítica importante ao se perguntar pela imagem paterna desse menino e de como ele vai resolver a questão da origem. Esse é o fulcro do problema.

Por outro lado, no que diz respeito a muitas inovações biotecnológicas, como o furor crítico em torno da clonagem, está fora do âmbito da clínica. O médico italiano Antinori afirmou ter clonado um ser humano, só que nunca mostrou essa criança e, mesmo se ela existisse, seguramente não chegou no consultório de nenhum psicanalista.

Eu li a conversa “Psicanálise, biociência e subjetividade”, que se deu entre o Menezes e o Sidarta Ribeiro, grande cientista, diretor de um instituto internacional de pesquisa em neurociências em Natal, formado por um grupo de peso e com verbas excepcionais para o nosso padrão. Na discussão entre eles, o Menezes cita o neurocientista Gerald Edelman. A complexidade humana para esse cientista é tão grande que passa a constituir um limite para a neurociência, e obriga a uma mudança de paradigma. E essa mudança vai ser preenchida justamente pela psicanálise.

Luis Carlos Menezes: Não é uma questão de complexidade, e sim da natureza do objeto de estudo das ciências que fundam a tecnologia e a psicanálise. Gerald Edelman – neurobiólogo, prêmio Nobel de Medicina em 1972, diretor do Neurosciencies Institute em Nova York – mostra que podemos estudar as bases da consciência, mas que qualquer vivência ou estado de consciência é único, fugaz, irreversível e não passível de uma abordagem pelo método das ciências positivas, como é o caso das neurociências.

Ele considera várias alternativas, começando pela introspecção, passando por Montaigne, Rousseau, Santo Agostinho, mas verifica que, na introspecção, o sujeito fica só no nível da consciência, não vai para outras dimensões da experiência. Outra alternativa seria uma prática em que uma pessoa falasse à outra sobre o que está passando em sua consciência, a cada momento. O problema, diz Edelman, é que a presença do outro interfere fortemente – não se dirá a mesma coisa a duas pessoas diferentes, ou a uma pessoa, num estado de espírito diferente em relação a ela.

Não podemos deixar de perceber que essa prática é a que se propõe a psicanálise, em que se visa apreender alguma verdade, convidando o “paciente” a “dizer o que lhe vier à cabeça”. É o dispositivo montado por Freud desde os anos 1890 ao construir a psicanálise para o tratamento da neurose: nela vivemos sempre às voltas com o problema do que nessa fala “solta”, na presença discreta do analista, adquire peso de verdade para aquele que ali fala. Uma verdade que terá sempre um caráter radicalmente subjetivo, e em que o empenho em detectar, diminuindo ou utilizando os efeitos interativos, nos remete ao complexo, porém constantemente abordado pelos psicanalistas, problema da contratransferência. Esse é o campo da psicanálise. Todo o dispositivo conceitual e a prática da psicanálise foram criados para explorar “esse território” com base nos “estados fugidios de consciência”, tendo constantemente presente que o tempo todo eles são modulados pela transferência e pela contratransferência. A psicanálise construiu modelos ficcionais, que foram evoluindo e com as quais operamos – a metapsicologia, para dar conta dessa abordagem delicada e complexa.

Ora, a abordagem “positiva” do funcionamento dos neurônios, terreno em que evoluem as neurociências, vem de uma tradição metodológica distinta da que Freud foi obrigado a adotar para poder operar com o objeto e o objetivo da prática que inventou. Freud estava impregnado pela mesma tradição, mas foi forçado a romper com ela por exigência da natureza do que estava em jogo no empreendimento em que foi sendo pego.Acho que Edelman entendeu que há um limite intransponível para as neurociências por mais que avancem, e que elas têm muitíssimo terreno a percorrer, pois são ciências incipientes, ao afirmar que nunca poderão dar conta de um estado de consciência determinado, dado que este é fugaz e irreversível. É neste exato ponto que a psicanálise trabalha, tendo tido, para isso, que produzir subversões epistemológicas profundas.

A miragem que eu vejo no Sidarta como também no Mark Solms, é que eu tenho a impressão de que eles têm a expectativa de alcançar uma convergência epistemológica progressiva entre a psicanálise e a abordagem neurocientífica. Perguntei sobre isso ao Solms, quando esteve em nossa Sociedade, e ele respondeu que sim, que tinha algo de positivista no sonho dele. Na ocasião, tive a impressão de que os demais presentes na sala também partilhavam dessa expectativa.

Vogt: Você está falando em miragem, e os neurocientistas, como já fizeram os físicos, falam em Graal no sentido mesmo da busca, da procura do desvendamento do mistério da vida. Há uma ambição metafísica misturada com uma ambição propriamente científica que, é claro, tem uma limitação dada pela própria materialidade, pelos aspectos materiais do fenômeno. O fenômeno da consciência, penso eu, não se reduz à materialidade eletrofisioeletrônica do circuito neural. Isso é outro assunto, mas há essa ambição. Eu me lembro do anúncio da finalização do genoma humano, quando Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, fez uma grande mise-en-scène na mídia internacional, dizendo algo parecido com o seguinte: “Neste momento estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida”. A inspiração, além do exagero do arrebatamento, era dada certamente pelas letrinhas do genoma. Cientificamente, estamos longe de termos dominado mesmo a linguagem dos genes; temos, no máximo, um alfabeto cujas regras de combinação conhecemos pouco; não há ainda uma sintaxe, nem sequer um vocabulário e conseqüentemente uma semântica – que ainda estamos longe de alcançar. Isso não significa que não possamos alcançar esse estágio de organização gramatical do genoma humano, já que a ciência caminha e as conquistas, nesse campo, são cada vez mais rápidas e consistentes. Não é esse o problema.

O problema é a ambição metafísica.Aqui vale retomar a distinção de Bacon entre conhecimento puro e conhecimento orgulhoso, cara ao século XVIII, e de tradição desde o Renascimento. Com Pascal, essa distinção aparece formulada como alcance do conhecimento. O limite do conhecimento é dado pelo conhecimento dos limites de cada abordagem. Isso é muito importante para não começarmos a extrapolar o conhecimento possível com indagações a que a ciência não pode responder. A ciência não tem capacidade para responder a questões de natureza metafísica. Mesmo que se considere que elas não têm importância, elas têm porque continuam presentes e não serão respondidas dessa forma. O século XVIII foi pródigo em tratar dessa questão, com Voltaire, na fábula de Cândido, sobre a história de cultivar o nosso jardim, de olhar para os nossos pés, e também na literatura inglesa, com Jonathan Swift, nas famosas Viagens de Gulliver, em que os laputanos ficavam perdidos, olhando as estrelas, e esqueciam de olhar o que estava acontecendo a seus pés. A parábola de cultivar o jardim tem muito a ver com essa dimensão e com o alcance da nossa capacidade. Traduzindo, em outras palavras, a fala do Menezes, precisamos indagar qual é, do ponto de vista epistemológico, a capacidade da ciência, no momento em que ela atua para identificar, trabalhar, trazer resultados que ela não pode extrapolar.Mas os cientistas gostam muito da história de brincar de Deus. É uma história antiga que sempre reaparece. Por vezes, a ciência é mais amena, dizendo que, na verdade, a ambição é estender, alongar a vida, trazendo para cena o mito da longevidade. Estamos vivendo um momento interessante, desse ponto de vista, mas também um embate muito grande entre aquilo que a ciência acha que pode e o que ela, de fato, pode. Penso que isso está muito ligado às questões metodológicas e às ambições teóricas de cada ciência.

Menezes: Pode ser até bom brigar com Deus, mas o problema surge quando a pessoa começa a se colocar no lugar de Deus ou a colocar a “ciência” nesse lugar.

A propósito, na minha participação na conversa “Psicanálise, biociência e subjetividade”, publicada na ide 43/Biotecnologia, chamei a atenção para um estado geral de expectativa crédula por parte das pessoas em relação aos achados científicos de cada dia. Há uma predisposição em crer, de forma ingênua, num poder quase pueril e imediato da ciência com seus achados cotidianos. Todos os dias, lemos nos jornais, nas revistas, os resultados de pesquisas em que cientistas num ou noutro lugar teriam encontrado o gene da homossexualidade, uma proteína decisiva no mecanismo do câncer, efeitos benéficos ou maléficos de um alimento ou hábito de vida. Há um frisson espetacular, uma forte expectativa de que a ciência está encontrando num ritmo regular a causa explicativa para os fenômenos, como se, por exemplo, ao descobrir o suposto gene da homossexualidade, mais uma coisa estivesse esclarecida, a razão avançando em seu labor explicativo e reassegurador. É uma segurança que talvez substitua a segurança dada pela crença religiosa. É uma disposição à credulidade que torna o mundo bastante aconchegante. Ao custo, como nas crenças religiosas, de uma formidável simplificação das coisas, inclusive da própria ciência. Como não pensar que há uma trama de enorme complexidade entre certas características genéticas e o caminho até alguém chegar a uma orientação de desejo homossexual, para ficar em nosso exemplo?

Plinio Montagna: De fato, quando se passa a dirigir a atenção à mente, aos processos mentais, é outro o objeto de estudo e é necessária uma mudança importante de metodologia, a rigor do salto da neurociência para a psicanálise, conforme apontou o Menezes. A neurociência não tem instrumentos, e creio que jamais terá, para estudar o fenômeno mental, assim como a psicanálise não pode dar conta do funcionamento neuronal propriamente dito. Por outro lado, as fronteiras entre as diversas áreas do conhecimento têm se tornado cada vez mais permeáveis e as delimitações, mais porosas. Não se trata de uma volta à indiferenciação. As identidades básicas permanecem individuais e específicas, mas surgem novas interseções híbridas que criam campos próprios. Podemos pensar, dentro das especificidades, quais são as possibilidades de um psicanalista usufruir, de modo positivo, das informações da neurociência e vice-versa. Por exemplo, o Mark Solms tem um trabalho interessante sobre a psicose de Kórsakov em que ele toma os pacientes do ponto de vista analítico e mostra como as interpretações podem de certo maneira modificar o campo de consciência e a memória, formando, por vezes, um acervo de uma sessão para outra em pessoas que, aparentemente, não teriam condição de ter algum tipo de registro de memória pelo estado cerebral. Há evidências indubitáveis da interferência dos estados mentais sobre os estados físicos. Ao estudar alguns estados de mente como o pânico, encontramos evidências de que determinadas expressões são de ordem subcortical, hipotalâmicas, ou seja, não há acesso ao córtex cerebral em algumas situações de pânico, depois do desencadeamento do ataque. Então, naquele momento, não adianta procurar representação porque existe um substrato biológico demonstrando que a representabilidade, naquele ponto, é inexeqüível.

Outro ponto que ressalto é a linguagem.A linguagem científica é a linguagem do corpo biológico. A linguagem da objetividade, a maior possível, é a melhor linguagem para a ciência. Quando entramos no campo da subjetividade, da linguagem que se refere a ela, e, mais ainda, quando entramos na esfera da psicanálise, a metáfora entra em jogo. E, por sua vez, a linguagem psicanalítica só começa a existir enquanto linguagem na medida em que se tem acesso à metaforização do corpo ou do discurso.A própria expressão discursiva da experiência emocional se dá através da metaforização.

ide: A idéia que me passa é de uma situação clínica, em que um paciente de quase sessenta anos me procura para análise. Era uma pessoa muito tímida que nunca havia namorado. Depois de iniciar a análise, ele conhece uma mulher e começam a se encontrar. O mal dos males, ele tem um câncer de próstata e, antes de fazer a cirurgia de retirada da próstata, resolve recolher líquido seminal num banco de esperma. Com o tempo, ele começa a falar do interesse em poder ter um filho, a partir do sêmen guardado. O interessante é que ele vai contando uma situação de desejo amoroso, de segurar o bebê na mão, mas a moça com quem está namorando prefere não ter nenhum contato físico com ele e usar, simplesmente, o sêmen que está no banco. Ela não quer nenhum contato físico, quer só o filho. Ele começa a se questionar sobre as condições nas quais esse filho vai ser gerado. Então, temos uma situação que corre na linha do desejo afetivo, como na citação do Amor para sempre, apresentada na abertura deste debate, e outra que vai em direção à citação do Não me abandones jamais, em que há um clima absolutamente formal de construção de um ser humano, com uma função que não é a do contato, não é a da criação de uma alteridade. Eu lembrei dessa vinheta clínica em função do que o Menezes falou sobre a conversa dele com o Sidarta, que me parece ter acontecido em dois níveis. Um nível é esse que o Menezes especificou, e o outro, é uma história diferente. Assim, não é possível ter um encontro, ou seja, é uma conversa na qual nunca haverá um cruzamento. E eu acho bom que não haja, que se mantenham essas diferenças.

Waldo Hoffmann: Estamos falando da onipotência em reduzir as questões a um único território do saber, ou seja, ao do físico/biológico, e da negação das redes que temos para captar o real, real esse que, como diria Lacan, é da categoria do impossível. Essas redes abrangem territórios parciais e nunca atingiremos a totalidade do conhecimento. Penso numa situação bem prática, a respeito das limitações que nós já temos. Há alguns anos os antidepressivos foram vendidos como os grandes tratadores da depressão, como o tratamento final da depressão.Hoje, já temos sinais de depressões crônicas, pessoas que passaram por todos os antidepressivos e continuam a ter que lidar com a depressão. Lembro de um modelo interessante: arranjamos uma bóia, mas quando ela era ruim, o sujeito precisava continuar a bater as pernas e saía da bóia nadando melhor. Hoje, com bóias tão boas, o sujeito se assenta tanto nelas que sua capacidade de nadar nas emoções atrofia de vez e, quando ele sai da bóia, não sabe mais nadar ou ela vai murchando até que não tenha mais bóia que o segure, e sai com depressões bem pioradas.

Houve uma entrevista em que uma jornalista perguntou ao Pontalis: “Há tantos anos vocês psicanalistas têm tratado da depressão sem muita eficácia, e agora com o resultado dos novos antidepressivos, como é que vocês ficam? Falo em eficácia porque reconheço que um antidepressivo é útil em certo momento, mas esperar que ele trate totalmente, já sabemos que não é possível”. A resposta do Pontalis foi em direção ao que o Menezes já apontou a respeito da separação de territórios: “Para reconhecer os efeitos das medicações sobre o humor humano, eu nem preciso falar de antidepressivos, eu posso falar do álcool. O álcool tem um efeito reconhecido sobre o humor humano”. E ele acrescenta: “A senhora acredita mesmo que o riso de um alcoolizado põe em risco o efeito hilariante de uma boa piada?”.

Eu acho importante o fato de a ide, no próximo número, se dedicar à linguagem.

Felicia Knobloch: Eu não acredito que a ciência esteja simplificando. Uma vez eu tive uma conversa com o dr. Henri Atlan, biólogo molecular, sobre a questão da vida e ele me respondeu de forma precisa que não é praticante de uma ciência positivista e que a questão é mais complexa. Ele insiste em falar do perigo do reducionismo das metáforas genéticas e, ao ser questionado sobre a importância de esclarecer a população sobre a falácia do uso da metáfora de “programa” da genética, que simplifica as questões da vida, ele devolveu a bola para nós, dizendo: “São vocês, os psicanalistas, que têm que discutir essas questões com a população. Não somos nós, os biólogos moleculares. Isso não é problema nosso, vocês têm que brigar com a mídia que banaliza, simplifica, para se fazer engolir a pílula”. Então, temos que diferenciar o que é da ciência do que é do marketing científico. Eu guardei um artigo de 1998 de uma especialista em comunicação, na área de saúde brasileira nos Estados Unidos, que fazia o marketing da doença da depressão, durante cinco anos, como campanha antes do lançamento dos remédios antidepressivos para aquela que ficou conhecida como a era da depressão. Questões éticas estão aqui implicadas e por isso este número da ide, essa discussão com mais psicanalistas é muito oportuna porque nos fóruns de bioética a presença de psicanalistas é quase nula. Não há discussão psicanalítica na mídia, para “complexizar” a discussão dos efeitos subjetivos dos anúncios dos desenvolvimentos das biociências e produzir transformações. Os pensadores da área de humanas têm demorado a se manifestar porque ficam impactados com a biologização, com essa aparente cientificização confundida com uma volta para o positivismo. Eu não concordo que haja uma volta ao positivismo. Acho que há uma maneira de divulgar as notícias que satisfaz uma necessidade do mercado, uma necessidade econômica. É dito: “É preciso que saia na mídia dessa forma porque, se não sair assim, nós não vamos ter dinheiro para as próximas pesquisas”. Nesse sentido, a nossa responsabilidade é grande com relação à mídia. Considero que essa formatação de uma subjetividade humanizada, simplificada, de causa e efeito é decorrência de uma maciça campanha marqueteira científica, mercadológica de laboratório. Eu estou querendo trazer o Philippe Pignarre1 para o Brasil para termos mais elementos de como lidar com essas questões. Ele trabalhou quinze anos dentro da indústria farmacêutica e faz uma denúncia registrada em livros, e no Brasil temos publicado O que é o medicamento, em que ele mostra como a indústria farmacêutica funciona para criar a dependência dos medicamentos, através do marketing da doença – o que se denomina a medicalização da sociedade.

Cláudio Rossi: A Felicia contou a conversa com o biólogo que disse ser dever do psicanalista dialogar com a população. Eu acho isso questionável, mas penso ser pertinente que cientistas sérios comecem a se perguntar sobre uma “ética da divulgação”. Quando a ciência produz e fica calada, assim como os psicanalistas que também produzem e ficam calados, no que se refere à mídia de massas, ocorre uma omissão grave que deve ser discutida eticamente. Acredito que isso se deve, em parte, a uma espécie de idealização da discrição e da sobriedade. As pessoas sérias seriam sóbrias e evitariam a mídia, mas isso me parece uma omissão que abre espaço para que o comércio, a indústria e até mesmo organizações universitárias façam sensacionalismos para alcançar seus objetivos financeiros. Essa é uma distorção ética que está ocorrendo até nos setores de pesquisa que já foram muito sérios. Eu creio que precisamos começar a pôr em dúvida essa crença de que o silêncio é uma virtude dos intelectuais sérios, dos psicanalistas sérios, dos cientistas sérios.

Vogt: Há quinze anos eu me dedico, na Unicamp, a trabalhar com divulgação científica, e preocupado com o que eu considero crucial dentro de um processo em que as relações com a sociedade mais ampla, do ponto de vista dos resultados do conhecimento, são fundamentais, não no sentido de esclarecer ou de alfabetizar o leigo, como dizem os americanos, ou de suprir o déficit de conhecimento ou de compensar a ignorância, e sim no sentido de trabalhar o processo de interação constante entre a sociedade beneficiária, mas, ao mesmo tempo, crítica e financiadora das possibilidades de desenvolvimento da ciência, que requer grandes investimentos. A ciência não se faz de modo espontâneo. O conhecimento não se produz comendo a maçã que nos expulsou do Paraíso e que depois caiu na cabeça de Newton, criando a mecânica celeste, a física clássica. Envolve uma participação constante da sociedade de maneira crítica porque significa estabelecer prioridades, significa discutir a ética envolvida, dar continuidade aos projetos de pesquisa.

A relação entre cientista e sociedade precisa ser mediada pelo próprio cientista. Ela não pode ser mediada só pelo jornalista. Hoje, a tendência é de que haja cada vez mais esse esforço de metaforizar o conhecimento para tentar sensibilizar os conceitos, e desse modo, pela poesia, chegar ao público que não é especialista, mas que apreende tais questões pela vivência, por associação de imagens conceituais.A questão da linguagem é fundamental.

De modo geral, prevalece ainda a atitude arrogante, do tipo “Nós produzimos o conhecimento. Vocês, outros, são responsáveis por divulgá-lo e a responsabilidade pelo conhecimento chegar torto ou direito não é nossa. O que fazemos é direito. Somos deuses. Escrevemos certo por linhas certas”. Esse é o discurso que ainda prevalece.

Outro ponto é o positivismo.A ciência não é mais positivista, e ela não o é por razões teóricas e metodológicas, no sentido específico, e, sobretudo, depois das grandes transformações que conheceu no início do século XX, final do século XIX, com Einstein, com a física. Ela não é positivista dentro da tradição positivista. E ela não é positivista, também, do ponto de vista das ambições, nem no sentido amplo nem no sentido estrito, do positivismo comtiano.Mas ela é pós-positivista. Ela é pós-positivista no sentido dos novos paradigmas científicos, segundo os quais a verdade não se demonstra; no máximo, pode demonstrar- se a falsidade, substituindo-se, desse modo, a certeza pela probabilidade.

Num certo sentido, a ciência continua, contudo, refém do positivismo. E refém em quê? Refém no contraponto que faz ao positivismo, ao tomá-lo como referência da superação de suas próprias certezas, o que significa aceitar que a ciência, nesses novos paradigmas, substitui a crença em uma evolução, capaz de tudo resolver, pelo ceticismo crítico de que não vai resolver tudo, mas vai resolver tudo o que é possível ser resolvido. Então se relativiza, mas não se abandona a ambição de conhecer. Nós temos que conviver com isso. Penso que a biologia, com esse boom, a partir da segunda metade do século XIX, na linha do evolucionismo, exerce essa fascinação. Porque, como é uma ciência que mexe diretamente com a vida, com seus fundamentos biológicos, ela tem mais pujança e mais proximidade com os interesses do cotidiano por tratar dos temas e dos mitos que nos conduzem no dia-a-dia, embora carregada também por suas conseqüências práticas: a indústria farmacêutica, os interesses econômicos etc. Penso, entretanto, que vivemos uma espécie de era pós-positivista em que a ciência não é positivista no sentido estrito, mas tem um comportamento que só se entende com referência ao positivismo.

Cássia N. Barreto Bruno: Parece-me que o que está sendo colocado se refere a uma posição crítica relacionada à possibilidade de deixarmos questões em aberto, isto é, de o ser humano se questionar a respeito do que se passa com ele, no seu momento presente e atual. Esses aspectos ficaram muito claros na ide, que, ao longo de sua história, sempre teve essa abertura para novas descobertas. Porém, uma nova descoberta provoca um medo muito forte em cada geração. No entanto, se nos dermos conta dele e pudermos estar abertos para a crítica, estaremos mais próximos de lidar com esse medo.

No mundo contemporâneo estamos mergulhados numa cultura que apresenta, de um lado, uma generalização globalizada, digamos, em que tudo influencia a todos e, de outro, um alto nível de especialização, em que cada disciplina tem uma área muito particular e altamente específica, que são as ultra-especializações.

ide: Falando em medo, penso que nós, psicanalistas, podemos ter reações diversas diante da biotecnologia, como o Alan comentou na conversa publicada, que transitam, segundo G. Lebrun, desde uma postura reticente, ou mesmo tecnofóbica, até uma atitude tecnofílica. Mas a possibilidade de pensar criticamente nos faz ver que o susto se origina, principalmente, dessa diferença de objeto metodológico mencionada pelo Menezes, e daquilo que encontramos no texto da Maria Rita Kehl. Em seu primeiro argumento, ela nos alerta para o quanto nos escravizamos em função de um ideal de perfeição, favorecendo o incremento de nossa própria servidão, da nossa própria tortura “em nome do desejo”, no sentido de buscar objetos que não sejam contestáveis, em nada, pelo desejo – objetos de uma satisfação plena. Eu achei essa colocação pertinente à biotecnologia, na qual parece existir uma obsessão de positivar o desejo, de enquadrá-lo, de esquematizá-lo, enquanto, para a psicanálise, estamos lidando com um corpo vivo, pulsional, imperfeito, desejante, que não se sabe o que é (inconsciente), que não está sob o domínio do ego. Então, equivocadamente, o ideal de perfeição estaria perseguindo mais um recuo diante do desejo do que sua aceitação e realização. Porém, ao falarmos de ciências do desejo, precisamos considerar que há também o desejo de ciência. O texto segue para o segundo argumento e penetra na linguagem poética, dizendo que essa tentativa de enquadrar o desejo pode desembocar numa vida sem “graça”, segundo diriam os poetas, mas, ela nos lembra, essa “graça” ainda pode ser encontrada no discurso poético. Quem ainda entende de erotismo não são os cientistas da saúde, nem os escravos performáticos da sedução. São os poetas.

Ângela Rocha: Ao falarmos da estranheza, assusta-me a incrível capacidade humana de adaptação a condições bem “estranhas”, a um cotidiano de sofrimento em toda a história da humanidade. Como arquiteta, atento para o fenômeno do paradoxo da grande cidade, das diferenças com seus habitantes, que não estranhamos mais. O que está acontecendo com as cidades e seus habitantes? Quais as propostas para as aglomerações humanas e para o desenvolvimento das grandes cidades? Temos a evasão urbana, as disputas de cidades entre si, para mantê-las rentáveis. À medida que nos acostumamos com o desenvolvimento técnico, pequenas adaptações cotidianas “estranhas” passam a fazer parte da nossa vida. O conhecimento técnico tem trazido o máximo de conforto para as pessoas, dentro das habitações, e elas estão se ambientado com esses tecnicismos, dos quais não querem mais abrir mão.

Hoje, confunde-se ciência com técnica. E a técnica é absolutamente estranha. Ela surge como controle da natureza, e o problema assustador, atualmente, é que essa natureza é o próprio ser humano. Qual então seria a função da ciência e quais são os seus objetos?

ide: Fizemos duas referências importantes no nosso editorial da ide 43.

Certa vez, na conferência “O poder não corrompe, revela”, realizada na SBPSP, no dia 7 de outubro de 2005, Fabio Herrmann, ao falar de psicanálise, cultura e sociedade, disse que o mundo não cabe no divã e, por ser redondo, cairia, pois, como sabemos, ele rola; além disso, como o divã está dentro do mundo, não seria possível fazer essa operação! A psique coletiva não é uma psique individual ampliada, nem o contrário, uma vez que, na concepção do autor, a psique é o sentido humano. Na esteira de Freud, Herrmann procurou recuperar aquilo que constituiu o nosso patrimônio original: um olhar clínico sobre o mundo. Aí está uma das raízes da linha editorial que tentamos desenvolver nos três números anteriores e a nossa gratidão à preciosa herança deixada pelo Fabio.

A segunda referência e o segundo agradecimento dirigem- se aos fundadores da ide. A revista nasce de uma fala que carrega o prazer da inconclusão, uma fala que quer continuar, essa fala que pode ser considerada a fala erotizada. Procuramos resgatar essa dimensão da história da ide. As conversas que abrem o número 43/ Biotecnologia têm esse sentido de apresentar um pensamento em construção, um olhar psicanalítico da biotecnologia, mantendo um diálogo com outras áreas de conhecimento. Os textos mostram os pólos de tensão e de ambivalência, da mesma forma como acontece nos consultórios, e um olhar clínico, com o cuidado de não fazer uma psicopatologia dos fenômenos do mundo. Procuramos, também, não nos ater a um horror à tecnologia, possível desencadeador de uma análise mais nostálgica. A proposta foi deixar que o fenômeno dissesse por ele mesmo, para daí nascerem as idéias.

Sonia Azambuja, uma das fundadoras da ide, deu uma bonita aula inaugural no Instituto, “Carta a um jovem analista”, em que ela fala da necessidade de o psicanalista olhar o mundo e de uma invariância, na psicanálise, que é a questão edípica, que envolvem os sonhos, a origem, o pulsional, a lei. Ela entende essa referência edípica como o eixo do nosso trabalho, não uma armadura defensiva, mas um jogo de dados em que as jogadas se sucedem como as imagos inconscientes. O artigo do Carlos Vogt fala dos clones e de que os heróis da ficção científica são sempre tristes. Um dos livros que nos inspirou nesse tema foi Não me abandone jamais, citado na abertura deste debate, que transborda uma enorme tristeza. Parece que aí as idéias do Vogt e da Sonia se cruzam. A tristeza está vinculada ao impossível, a uma perda mítica, ruptura da origem e do sonho, em que se evidenciam uma luta contra a solidão e, sobretudo, uma luta da ciência de jogar longe o desejo, de tentar aprisioná-lo. Como contraponto, encontramos no texto do Vogt a cena final de Blade runner, com a fuga do par amoroso “no sobrevôo dos campos verdes e fecundos de estéril solidão” (p. 86).

A busca da fala erotizada, passando pelo ficcional e considerando a nossa permanência incidental na história, tem sido a marca da ide, nos três números anteriores.

Leda Herrmann: Eu fiquei muito feliz com a publicação pela ide 43 da conferência do Fabio, comemorativa dos cinqüenta anos da morte de Freud, apresentada em um ciclo organizado pela SBPSP em 1989. Ela vem a público agora, quando comemoramos os 150 anos do nascimento de Freud e, infelizmente, quase em seguida ao desaparecimento de Fabio.Nessa conferência, Fabio revisita, vinte anos depois, o estudo que realizou sobre o desvelamento do método da Psicanálise, considerando os rumos tomados por seu pensamento nesse período, pensamento que em minha tese de doutorado tomo como um pensamento psicanalítico original crítico-heurístico. Penso ser tarefa de todos nós pensarmos nos fundamentos daquilo que fazemos, antes de nos preocuparmos se as nossas teorias estão bem estabelecidas, sob o risco de nos perdermos como psicanalistas. Espero que a publicação dessa conferência possa dar frutos que alcancem as raízes do nosso fazer clínico, ou seja, do nosso método interpretativo.

Julio Gheller: O que me tocou ao longo desta conversa foi a questão do nosso objeto de trabalho: mente ou cérebro? O Vogt apontou nesta direção. Aqueles que têm formação médica terão familiaridade com o que eu vou falar. Os psiquiatras recebem a visita de representantes de laboratório, que fazem propaganda das novidades em remédios, trazendo informações, indicando sites na internet, sugerindo bibliografia, apresentando pesquisas comparativas a respeito dos mais recentes antidepressivos e antipsicóticos. Eu quero ressaltar um dado do ponto de vista da ética. Saiu um número recente do jornal do CRM, questionando os médicos a respeito desse relacionamento com os laboratórios. Isso porque os representantes trazem brindes, oferecem desde convites para jantar até passagens e inscrições em congressos, principalmente se o médico tem uma boa clínica. O ponto importante é que a indústria farmacêutica acaba patrocinando a pesquisa, o estudo, a ciência.

A psicanálise, como a entendo, trabalha com a mente. Eu posso até verificar que um paciente não está podendo conversar comigo, como no caso da crise de pânico, porque está num pico de ansiedade. Nesse momento ele tem um problema na camada subcortical do cérebro, que impede ou dificulta a possibilidade de representação. Tudo bem, temos dados muito interessantes fornecidos pelos neurocientistas, mas eu permaneço com a opinião de que o meu foco de trabalho é a mente, e não o cérebro.O enfoque do cérebro não dá conta da compreensão do indivíduo em sua singularidade. Tomando o fragmento clínico contado há pouco, em que a analista está conversando com um sujeito que aos cinqüenta e tantos anos nunca namorou, que quer ter um filho, mas vai ter que se valer do esperma que guardou em um banco de sêmen porque a namorada, a primeira de sua vida, não quer transar com ele, podemos imaginar que aí tem uma longa conversa sobre o que paciente pensa dessa situação. Seria interessante colocar uns eletrodos na cabeça dele para avaliar a atividade cerebral durante a conversa? Vai trazer elementos a mais? Esse é o ponto que temos que observar com cuidado porque eu acho que o diálogo com as neurociências é possível, porém existem fronteiras e especificidades. O trabalho com a mente é tão específico que quase posso afirmar que não interessa como estão naquele momento as camadas subcorticais do paciente e do analista. Desde que não haja um comprometimento orgânico limitante das funções psíquicas, o que interessa é como a mente de ambos lida com o que surge.

Felicia: Precisamos pensar qual é o espaço a habitar neste momento da cultura para manter a missão psicanalítica, a possibilidade de recuperar a singularidade subjetiva. Nesse sentido, é importante a diferenciação entre adaptação e alienação tecnológica. Temos formas de adaptação, de alienação e de resistência tecnológica. Eu discordo do Marcelo Leite quando ele diz, no texto “Aceleração tecnológica e quebra de representações”, publicado na ide 43, que a perda de soluções de referências não é o mais importante porque isso ocorre o tempo todo, a história da tecnologia é uma história de colocação de artifícios e da nossa capacidade de nos adaptar a realidades que antes não existiam. Pensar só em termos de adaptação é uma redução. Precisamos pensar no movimento da subjetivação, nos sujeitos que estamos produzindo hoje. Nesse sentido, o texto do Plinio Montagna, O rapto das metáforas, trabalha com a possibilidade de se transitar no irrepresentável. Só para citar um exemplo de uma saída possível: um jovem casal cuja mulher estava grávida escolheu não saber o sexo do filho durante a gravidez, apesar de toda a pressão dos amigos, da sociedade, dos médicos. Os jovens estão descobrindo formas de resistência, estão podendo escolher se a tecnologia responde a uma necessidade ou se podem transcender do seu uso e manter a fantasia, o espaço de ilusão ou outros espaços.

Valéria Loureiro: Farei uma pontuação freudiana sobre a questão do mundo. A psicanálise não oferece uma visão de mundo, do que podemos até discordar, mas a biotecnologia oferece uma visão de mundo, ela vende um mundo, uma imagem e como esse mundo deve ser vivido; temos que quebrar essa visão e pensar além, em como nos deixamos colonizar por certas idéias e como elas ocupam nossa mente. Eu não sei como usar as inúmeras informações cerebrais ainda, mas com certeza temos que continuar pensando porque um paciente sem cérebro não tem mente, ele está morto. Talvez, a função do psicanalista, como alguém que não defende uma visão de mundo, seja a de pensar que há mundo e ser no mundo, sendo que a preocupação maior do psicanalista é como se vive nesse mundo e como acontece o sofrimento humano.

Debora Seibel: Uma paciente relatou-me, recentemente, uma situação de angústia, e eu comento com ela uma história do rabino Nilton Bonder, contida no livro A alma imoral, no qual ele conta a história de uma mãe cujo filho estava morrendo de fome. Ela ganha uma galinha, mas, como era extremamente religiosa, não sabia como fazer para dar ao filho uma comida que não fosse kosher, segundo os preceitos judaicos. Decide pedir à esposa do rabino que leve a galinha até ele e pergunte se a ave pode ser abatida e servir de alimento para o filho. A esposa vai até o rabino com a galinha e faz a pergunta, mas o rabino abre os livros, olha para a galinha e responde: “Diga que ela devolva a galinha, pois, infelizmente, não poderá servir de alimento para o filho”. A esposa vai ao encontro da mãe que estava chorando com o filho morrendo, no entanto, ao olhar para a galinha e olhar para a mãe, diz: “Pode matar a galinha e usá-la de alimento para o seu filho”. Depois, ela volta e diz para o rabino: “Eu falei que podia! Você olhou a galinha e olhou os livros, eu olhei a galinha e olhei a mulher”. É assim que me sinto, cheia de aflições, na minha clínica, descrita no artigo “Infertilidade e desejo de filho: Onde se passa essa dor?”, publicado na ide 43.

Vogt: Posso dar uma contribuição poética?

A poesia não tem fim
nem tem começo
não tem tranqüilidade
nem atropelo

A poesia orgulhosa
não acaba nunca
o verso do poema
cheio de prosa

O poema sério
se diverte
faz-se de versos
de face oculta
que esconde o explícito
no seu mistério

A poesia no seu poema
não tendo fim meio ou começo
só tem tranqüilidade
no arremesso

Assim não se acaba
nunca
por incompleta
nos seus poemas
definitivos na finitude
e controversos na expressão:
por eles nasce e morre a poesia
que neles vive onde não estão.
(Carlos Vogt, “O fim da poesia”).

 

Referências

Ishiguro, K. (2005). Não me abandones jamais. São Paulo: Companhia das Letras.

McEwan, I. (1999). Amor para sempre. Rio de Janeiro: Rocco.

 

 

* Edição: Jassanan Amoroso Dias Pastore e Maria Aparecida Angélico Cabral. Debate entre os autores e leitores da ide 43/Biotecnologia, realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 17 de março de 2007.
1 Philippe Pignarre. Comment la depression est devenue une epidemie. Paris: La Decouverte, 2001; Les malheurs des psys: Psychotropes et médicalisation du social. Paris: La Decouverte, 2006.

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