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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Criações culturais: norteadores éticos para a articulação entre indivíduo e sociedade

 

Culture creations: ethic guidance for the articulation between individual and social plan

 

 

Maria de Lourdes Manzini-Covre*

Universidade de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Núcleo de Estudos de Subjetividade, Cultura e Cidadania

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nosso foco de reflexão considera a cultura como espaço de constituição, e de possível orientação, dos seres humanos &– espaço de aquisição simbólica. A proposta é refletir sobre as dificuldades de se criar esse espaço possível entre indivíduo e sociedade e a vigência dos direitos humanos, discorrendo sobre a ética e a moral como norteadores desse espaço intrincado. Sobre a complexa configuração do que é ser humano, ensaiamos com Hegel e Freud. Enfocando os norteadores, compomo-nos com Ricoeur, sobre a ética (na intenção da vida boa, para si e em instituições justas). E com Spinoza, na ética de “bons encontros” consigo, com o outro e com a cidade, que supre uma potência de agir. Certeau ajuda-nos a dimensionar o espaço da “sabedoria prática e sabedoria popular”, como um espaço de simbolização para os mais desprotegidos socialmente.

Palavras-chave: Criatividade, Cultura, Ética, Indivíduo, Sociedade.


ABSTRACT

Having the culture as space for orientation of human beings, the space which contains the continous symbolization, the proposal is to reflect on the difficulties of creating the right and possible ambit between individual and social plan, the human rights legality, discoursing about the ethics and morals as possible guidance for this confusing space. It is rehearsed with Hegel and Freud about the complex form of being a human being. Focusing on the leaders, we consist in Ricoeur, about the ethics (on the intention of good life, for itself and in fair institutions). With Spinoza, the ethics related to the possible “good encounters” with oneself, the other and the city, supply the power of acting. Certeau helps us to establish a dimension of space for “practical and popular knowledge”, as a space of symbolization for the socially unprotected ones.

Keywords: Criativity, Culture, Ethic, Individual, Society.


 

 

A vida social pode ser vista, de certo modo, como uma aventura, especialmente quando percebemos melhor a questão crucial que a envolve &– a da relação complexa e delicada entre o indivíduo e a sociedade. Essa questão preocupou os filósofos e tantos incontáveis pensadores de todos os tempos. Entretanto, não é nosso intuito debatê-la em si, mas enfatizar como são importantes as criações culturais e os norteadores entre a vida social e a do sujeito.

Na questão que envolve a relação entre indivíduo e sociedade, vale tocar, ainda que tangencialmente, na discussão sobre qual é, fundamentalmente, a natureza humana. Desde tempos remotos esta questão tem sido objeto de preocupaçãodevários pensadores.Vejamosduasconcepções opostas. A de que o homem é mau pode ser sinalizada, classicamente, por Hobbes (1968) &– o homem é o lobo do homem (então a sociedade deve se organizar autoritariamente para prover proteção). Com Durkheim (1970), vai-se um tanto nessa linha; por isso, para ele, o homem precisa ser rigidamente educado na moral.

A outra concepção é a de que o homem pode ser bom, solidário, concepção que pode ensaiar-se com Platão (1995), nas falas de Sócrates. O filósofo grego diz-nos que a alma seria originalmente boa (plena em sabedoria, bondade, beleza, portadora do bem). No entanto, ao virem para este mundo, os homens a maltratam, estragam as almas. Elas vão perdendo a perfeição que tinham, contudo, retêm reminiscências da plenitude e do saber de sua situação original. Diria Sócrates &– elas precisam só “se lembrar”. Poderíamos, então, dizer que os homens bons seriam aqueles que conseguem estar no rumo das reminiscências originais, possibilitando a solidariedade na convivência humana. É uma forma de acenar com o outro lado do humano, o bom, o solidário.

A complexidade humana permite considerar essas duas visões polarizadas, acima mencionadas, como um processo contínuo de embate, cuja tendência a um deles conformaria um tipo de ser humano que dependeria de muitas variáveis, dentre as quais estão: a história de vida do indivíduo, o tipo de sociedade em que é criado, suas condições socioeconômicas e político-culturais, o(s) grupo(s) ao(s) qual(is) pertence. Mas em toda e qualquer circunstância não se prescinde da variável cultural para haver a comunicação humana. Cassirer (1965) qualifica o homem como animal simbólico, na medida em que não pode comunicar-se senão simbolicamente. Dizemos nós que a capacidade de simbolizar, intrínseca ao seu mundo interno, vai indicar modos de lidar com o mundo social (o externo).

Para Hegel (1966), a questão simbólica do homem é ainda mais complexa: não é pela razão que o indivíduo se torna humano, mas pelo desejo, e este é desejo de algo não natural, é o desejo de outro desejo. Os homens existem no âmbito simbólico. Hegel assinala na Fenomenologia do espírito que é pelo desejo que o homem pode se ver como um Eu. Cabe-nos dizer que a apreensão hegeliana oferece demarcações insubstituíveis para compreendermos a nossa existência como seres humanos e sociais. Com Freud (1915/1969a), essa formulação se torna ainda mais intricada, pois este pensador cria o conceito de desejo inconsciente. Observe-se que fica, então, mais difícil estar a dizer se o homem é bom ou mau intrinsecamente, pois uma parte do homem, a oculta, cuja atuação é infinda, não é passível do controle imaginado.

A questão da articulação entre indivíduo e sociedade carreia também, de outro lado, como é claro, a reflexão sobre a sociedade. Aos obstáculos pulsionais para vir a ser um possível sujeito, pensado aqui como aquele que conseguiu certa contenção de si mesmo, certa reciprocidade com os outros e que contribui para a melhor convivência social, adicionem-se os complicadores do mundo contemporâneo. Estes introduzem extremos difíceis de suportar: vertiginosidade de mudanças em quase todos os planos, que se origina em determinado uso de uma tecnologia fantástica; extremos de poder; autoritarismo (terrorismo, tortura); pobreza (miserabilidade, desemprego); deterioração da vida cotidiana urbana (drogas, violência), deterioração do meio ambiente etc. Tais complicadores, também, fazem com que as pessoas (e os grupos),buscando ser sujeitos,buscando o seu rumo,tenham muita dificuldade de encontrar o sentido da própria vida, ou o sentido da existência dos grupos. Ao mesmo tempo, cabe destacar que essa tecnologia fantástica abre espaço para muitas oportunidades de avanço social em vários planos. E, novamente, vale lembrar aqui o uso que o homem, os grupos fazem de sua capacidade humana intrínseca &– a de simbolizar. Contudo, vale ter em conta qual orientação cultural marca o grupo,a sociedade em que vivem tais homens &– uma tendência à cultura prescritiva (que encontramos, por exemplo, na apreensão de Durkheim) ou de uma tendência a cultura criativa, encontrada, por exemplo, na apreensão de Certeau (1996) ou de Winnicott (1975).

Estando ainda no âmbito da polaridade entre indivíduo e sociedade, retenhamos que a emergência do sujeito (individual, coletivo) se faz dentro dessa situação crucial, que a própria questão encerra. De modo que, nesse contexto difícil, cabe ainda indagar: como se manter a si próprio e lidar com o plano social, com as relações sociais que tendem a implicar contínuas mudanças de si mesmo? Ao contrário da postura durkheimiana, de ter atado o humano ao social (Durkheim, 1970), como se o indivíduo estivesse atado à sociedade e fosse um ator mecânico, necessita-se criar um espaço adequado entre os humanos para estabelecer-se um mínimo conforto no contato social. Conseguir encaminhar isso já diz respeito a um primeiro momento da emergência do sujeito. O difícil é encontrar a medida desse espaço entre o eu e o outro, o eu e o grupo, o eu e o mundo, ou seja, de sermos nós mesmos e estarmos “convivendo” com os outros.

Freud (1921/1969b) usa uma metáfora de Schopenhauer, que é bem emblemática. Refere-se a um conglomerado de porcos espinhos em região gélida, que se juntam para não congelarem, buscando calor um do outro; entretanto, quando se grudam, machucam-se todos com os espinhos, e então se afastam. Mas para sobreviverem, precisam se juntar novamente. E, assim repetem a situação, procurando proteger-se contra os espinhos, procurando obter calor uns dos outros, ensaiando o devido espaço entre eles. Eis o mesmo desafio para os grupos humanos. Como manter a alteridade, a reciprocidade? A humanidade tem criado algumas “leis” para isso, dentre as quais se pode destacar dos tempos mais remotos a tábua dos dez mandamentos de Maomé.

A seguir, recorremos a Ricoeur e Spinoza para abordar a ética e a moral como possíveis ordenadores amplos da cultura humana e da convivência humana. E depois, vamos além, com o espaço da sabedoria prática, que pensaríamos, com Certeau (1996) também, como sabedoria “popular”.

 

Possíveis norteadores da vida social: a ética e a moral

Pode-se dizer que estes norteadores são imprescindíveis na discussão, no suporte, na argumentação para e na construção das leis, na legislação dos direitos do cidadão e direitos humanos. Busquemos, então, alguma compreensão sobre ética e moral em Ricoeur (1995) e em Spinoza, via leitura de Deleuze (1977). Ambos têm apreensões aproximadas, sendo que o primeiro nos fornece essa apreensão mais no plano do corpo social, e o segundo, a partir da leitura de Deleuze, lança-nos à apreensão do que está além do corpo social “visível”.

Ricoeur (1995) diz que, etimologicamente, não há diferença entre moral e ética &– uma vem do grego, a outra do latim, e ambas dizem respeito à idéia de costumes (ethos, mores). Contudo, diz ele, pode-se distinguir uma nuance entre o que é estimado bom ou o que se impõe como obrigatório. Veremos com Spinoza que essa “nuance” apresenta-se mais forte. Mas seguimos com Ricoeur, que assim define as duas categorias em pauta:

É por convenção que reservarei o termo “ética” para a intenção de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas, e o termo “moral” para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de constrição (Ricoeur, 1995, p. 161).

O autor assevera que se podem entrever, nessa oposição, duas heranças: a aristotélica, na qual a ética se caracteriza pelo télos (significando “fim”), e a herança kantiana, na qual a moral é definida pelo caráter de obrigação, por um ponto de vista deontológico (significando “dever”). Todavia, o autor diz que, para além da ortodoxia dos dois pensadores, predispõe-se a discorrer sobre: 1) a primazia da ética sobre a moral; 2) a necessidade para a intenção ética de passar pelo crivo da norma; e 3) uma sabedoria prática necessária quando a norma conduzir a conflitos, de se estar atento à singularidade das situações, que leve em conta a intenção ética. Estabelece, ainda, a intenção ética explicitada em três termos: intenção da vida boa, com e para os outros, em instituições justas.

A “intenção da vida boa”, diz Ricoeur, leva o modo do optativo e não do imperativo. É uma aspiração: “Possa eu, possas tu, possamos nós viver bem!” Diz, em seguida, que é melhor usar o termo “cuidado”: “cuidado de si, cuidado do outro, cuidado da instituição” (Ricoeur, 1995, p. 162). Poderíamos adiantar que o que foi dito acima encontra semelhança com Spinoza &– o âmbito da ética é a busca do que é bom para mim mesmo, para o outro e para a “cidade”, o que ele expressa com o conceito de “bons encontros”.

Seguindo com Ricoeur, todavia, ele problematiza se o cuidado de si é um bom ponto de partida, se não significaria estar preso ao ego.Não seria melhor partir do cuidado do outro? Mas, enfatiza o termo “si”, associando-o ao termo ”estima”, no plano ético, que fica, então, referente ao outro. Segue assinalando serem importantes a capacidade de agir intencionalmente e a capacidade de introduzir mudanças no mundo ou, ainda, a capacidade de iniciativa, em que destacamos: “Seria necessário desenvolver toda uma teoria da ação para mostrar como a estima de si acompanha a hierarquização das nossas ações” (Ricoeur, 1995, p. 162).

O segundo momento da intenção ética seria: “viver bem com e para os outros”. O autor designa esse segundo componente da intenção ética de “solicitude”. E novamente se indaga se a expressão “estima de si pode ser uma ameaça de um dobrar-se sobre o eu”, argumentando:

Minha tese é que a solicitude não se acrescenta de fora à estima de si, mas explicita a dimensão dialogal implícita naquela. Estima e solicitude não podem ser vividas nem pensadas uma sem a outra. Dizer si não é dizer eu. Si implica o outro de si, a fim de que se possa dizer de alguém que ele se estima a si mesmo como um outro... Do contrário, nenhuma regra de reciprocidade seria possível... Essa reciprocidade dos insubstituíveis é o segredo da solicitude (Ricoeur, 1995, p. 163).

O autor discorre sobre vários planos da reciprocidade. “A reciprocidade só é aparentemente completa na amizade, na qual um estima o outro tanto quanto a si”. Mas, a reciprocidade não exclui certa desigualdade, como a da relação discípulo e mestre, a desigualdade, todavia, “é corrigida pelo reconhecimento da superioridade do mestre, que restabelece a reciprocidade” (Ricoeur, 1995, p.163). A desigualdade pode provir, também, da fraqueza do outro, do seu sofrimento. Então, é pela compaixão que se restabelece a reciprocidade, desde que aquele que parece ser o único a dar, recebe mais pelo reconhecimento. A solicitude, então,“restabelece-se mesmo sem a igualdade da amizade” (Ricoeur, 1995, p. 163).

Viver bem, com e para o outro, “em instituições justas” é o terceiro momento para Ricoeur. Segundo o autor, a intenção do bem-viver envolve de algum modo o sentido da justiça, o que é exigido pela própria noção de outro. A justiça, aqui, estende-se além do face a face, para as instituições (entendidas como todas as estruturas do viver-em-comum de uma comunidade histórica). Para as instituições, trata-se de se desenvolver a “justiça distributiva”, compreendê-la como sistema de partilha, de repartição &– vantagens e encargos. A justiça consiste, precisamente, em atribuir a cada um a sua parte, sendo cada um o destinatário de uma partilha justa.

Temos, ainda, segundo o autor, uma ética que necessita passar pelo crivo da moral, enriquecida com a passagem pela norma, pela exigência de universalidade, que esta comporta, conforme Kant. Ricoeur discorre sobre os dois princípios categóricos de Kant, sinalizando o primeiro como rígido e com vacuidade. “Age unicamente segundo a máxima que faça com que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne lei universal” (Ricoeur, 1995, p. 171). O segundo, no dizer de Ricoeur, repõe esta vacuidade, aproxima-se da solicitude no plano ético: “Age sempre de tal modo que trates a humanidade na tua própria pessoa e na de outro, não somente como um meio, mas sempre também como um fim em si”. Ricoeur diz que é por causa da violência que se deve ter ética passando pelo crivo da moral, retendo de Kant, que “a relação espontânea de homem a homem é, precisamente, a exploração da estrutura da interação humana” (Ricoeur, 1995, p. 171). Neste processo da ética passar pelo crivo da moral, o autor ainda diz da necessidade da sabedoria prática em situações particulares, que são, muito amiúde, situações aflitivas, com regras morais e jurídicas indiferentes. Caberia, perdendo em intenção ética, descobrir, criar certa eqüidade (conforme formulação de Aristóteles), que adviria dessa sabedoria prática, é o que assinala Ricoeur.

Passemos, em seguida, para os aspectos que nos proporciona Spinoza sobre a ética e a moral. Como já dito, a compreensão de Spinoza aqui presente é apoiada inteiramente na leitura que Deleuze faz deste autor (1977). Ele enfatiza que em Spinoza encontra-se certa retomada da união corpo e alma, rompida com a tradição instaurada basicamente com Platão. Contudo, ao evocar o corpo, Spinoza não subestima a alma/o pensamento, coloca ambos, sim, num paralelismo, como diz Deleuze: “... o que é mais importante, (é) uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não menos profundo que o desconhecido do corpo” (Deleuze, 1977, p. 27).

Ainda distingue, na relação corpo e alma, uma oposição entre moral (em que o corpo padeceria, dadas as regras da consciência) e ética (em que haveria uma relação eqüitativa entre os dois, ao que se poderia distinguir como encarnação corpo e alma, ou como existência corpórea). A expressão disso Spinoza afirma ser o conhecimento (conatus). E, assim, o conatus tem a ver com a ética e não com a moral. Spinoza diz que quando Deus fala: “Não comerás o fruto...”, Adão ignorante entende estas palavras como expressão de uma interdição. Trata-se apenas de um fruto, que enquanto tal, envenenará Adão se este o comer... Mas, porque Adão é ignorante das causas, crê que Deus o proibiu moralmente... (Deleuze, 1977, pp. 31, 32).

Pode-se dizer, com Deleuze, que, para Spinoza, a “moral” diz respeito a valores morais &– Bem e Mal &–, enquanto a Ética lida com “o bom e o mau”, no sentido de ser condizente ou não com determinada natureza, de promover bom ou mau encontro. Desenvolver o conatus é desenvolver o que emerge da alma, que é relativo ao fato de que o conhecimento, o próprio uso da Razão não é a operação de um sujeito, mas a afirmação da idéia na alma.

Neste rumo, “trata-se de descobrir as potencialidades do corpo para descobrir as potencialidades do espírito”(Deleuze, 1977, p. 135). O homem é livre quando entra na posse de sua potência de agir, isto é, quando o seu conhecimento é determinado por bons encontros: idéias adequadas, afetos ativos, alegria, potência do agir. Assinala Deleuze que: “Todo caminho da Ética desliza pela imanência; mas a imanência é o próprio inconsciente e a conquista do inconsciente. A alegria ética é o correlato da afirmação especulativa” (Deleuze, 1977, p. 135).

O conatus é, então, o esforço para experimentar a alegria, exorcizar a tristeza e, com isso, aumentar a potência de agir. Os “bons encontros” advindos pelo conatus são aqueles que convêm à sua natureza, que compõem com ela. Assinala Spinoza que é assim para o homem, e também para a cidade. Traduzindo para nossa contemporaneidade, suponho, então, que se podem ver esses bons encontros com a cidade pelos veios da democracia. Tal esforço para os bons encontros “... conduz o homem (...) a entrar na posse formal dessa potência e a experimentar alegrias ativas, que decorrem das idéias adequadas que a Razão forma... O conatus como esforço bem-sucedido, ou a potência de agir como potência possuída chama-se Virtude” (Deleuze, 1977, p. 136).

Deleuze diz que sobre a indagação do sentido da existência mesma, Spinoza nos responde que esse sentido é o de estar na alegria de ser. E mais: é ser parte do panteísmo, de um Deus, causa de todas as coisas, ao mesmo tempo em que é a causa de si mesmo. Da mesma forma, é estar na imanência da Ética, que se poderia dizer que é a emergência mesma do inconsciente. Essa identificação que Deleuze faz da imanência spinosiana com o inconsciente serve-nos como suporte para o que teríamos como sujeito desejante de rumo ético (Manzini-Covre, 1996).

 

Sabedoria prática: espaço maior de simbolização, o de invenção dos direitos

Estamos todos no mesmo planeta, com a premente questão entre indivíduo e sociedade &– a predominante sociedade capitalista contemporânea &–, em que as condições são diversas para alçarmos a condição de sujeitos. O que se apresenta para todos é que &– a nossa existência depende de nos fazermos reconhecidos pelo outro/Outro. O que é diferente nos diversos setores sociais é “como” isto pode ser alcançado. Assim, todos buscamos um certo reconhecimento e o que nos liga como humanos, como vimos com Hegel, é o desejo (indecifrável) mas sentido, de vínculo aos outros, de desejo do mundo (do que ele nos acena) tido como elan da vida. Lembro uma frase de Winnicott (1975), em um de seus poemas: “vejo, sou visto, existo”. A questão é dar conta de si próprio (necessidades e indeterminações) e lidar com as relações sociais (o mundo, com suas normas, determinações, chamamentos) que tendem a implicar em contínuas mudanças de si mesmo.

Vale considerar que esta realidade social não é vista sob um único olhar. “A realidade não existe em si, ela depende das formas de observação. Ou, ainda, como se representa a realidade é como se tende a lidar com ela” (Manzini-Covre, 1996, p. 88). Aqui se pode pensar um espaço onde se pode melhor compreender a necessidade de encontrar, para além das normas universais, modos de uso da ética em situações particulares e conflitivas que exige solução e que se mantenha na intenção boa, do que vimos com Ricoeur.

É precisamente nesses espaços de“ver”a realidade, que emerge um âmbito para desenvolver a resistência e a invenção do possível espaço “confortável” da relação inter-humana, evocado através da mencionada metáfora dos porcos-espinhos &– o espaço possível da convivência humana. E, é o que cria a possibilidade de estar junto com os outros com “bons encontros” (Spinoza) ou com a “vida boa” (Ricoeur). Vida boa seria podermos estar sendo nós mesmos, fazendo o que nos dá um sentido de vida na relação com o(s) outro(s). Semelhantemente, “a vida boa” nos (s) grupo(s), ou mesmo na sociedade, é caminhar no rumo do vir-a-ser sentido para a própria existência grupal. É imprescindível que as chefias/lideranças passem pelo crivo da democracia, no sentido que lhe aufere Barus-Michel (2001), de ter presente a relação entre o chefe e os subordinados, a existência da fratria e de que a chefia não é o lugar do poder, mas é o estar no lugar do poder.

Contudo, na maior parte das relações sociais, dos organismos sociais predominam“os espinhos”das relações de domínio, que desenvolvem aspectos que se poderiam conceber como não éticos, que causam um sofrimento repetitivo na população subalterna. Observe-se grande parte da relação predominante entre trabalhadores e proprietários (e seus representantes nas chefias), de bancos, empresas e organismos “produtivos” em geral, bem como em espaços familiares (em que crianças e mulheres tendem a sofrer subalternidade, falta de reciprocidade). Observem-se, ainda, também os organismos repressivos, e tantos outros espaços sociais, com este sofrimento repetitivo (Manzini-Covre, 2003).

Retomemos a proposta da sabedoria prática, de Ricouer. Porém, cremos que vamos além, pois teríamos no seu interior, a sabedoria“popular”, que depende da qualidade de indivíduos (e também de instituições) que alçam à condição de sujeitos e que atuam nos espaços de “mais espinhos”, sem poder contar com os rumos de ética sob a “universalidade” da moral ricoeuriana.Vale aí pensar a capacidade desses atores (e instituições) de apropriação, reapropriação dos inúmeros códigos socioculturais que não se nomeiam nas relações de poder, como nas normas explícitas: não matarás, não roubarás etc.

Para isso, cabe enfatizar o indivíduo tornado sujeito. Ricoeur traz, em seu discurso, o ator implícito no enfoque amplo, o filosófico. Nas Ciências Humanas, precisamos trazer este sujeito mais presente na cultura cotidiana. Devemos estar atentos à relação moral e ética formulada, mas, mais ainda às imposições do Outro (instituições, cultura etc.). Constituir-se como sujeito, de acordo com o abordado acima, supõe certas opções &– como a que está na forma de se apropriar da Lei, das leis, das normas, e lidar com isso a seu modo, e de acordo com a visão do grupo a que se pertence. Enfocando a questão do sujeito, sob este prisma, vale perceber duas tendências: a passiva e a ativa, que se apreendem como separadas apenas no registro abstrato, porque todo sujeito é ativo e passivo ao mesmo tempo (Manzini-Covre, 1996). A primeira é a daquele que tende mais para a submissão. Na verdade o não-sujeito. No seu extremo está o que expressa La Boetie (1982) na Servidão voluntária: porque damos nossos olhos, nossas mãos, nosso corpo, nossa alma? Curvamos-nos voluntariamente. A segunda tendência refere-se a dos sujeitos propriamente ditos, aqueles que, mesmo em dura situação subalterna, conseguem, de algum modo, com algum suporte, apropriar-se dos códigos sócio-culturais a seu favor. Poderiam, então, realizar, de certo modo, o que propõe Ricoeur: introduzir mudanças boas para si, para os outros e para as instituições e/ou mundo. Ou, a partir do que nos proporciona Spinoza, realizar bons encontros para si, para os outros e para a “cidade”. Temos aí muitos espaços para resistência e para invenção de direitos.

Podemos exemplificar com pessoas em situação de desproteção social, como catadores de lixo, que, com algum suporte do Município ou de ONGs, (e/ou mesmo de liderança), criam uma cooperativa (como a “Coopamare”, em São Paulo e a “Asmare” de Belo Horizonte), que os suporta materialmente de modo razoável, sendo que, psicossocialmente, passam a “existir”, a serem sujeitos de direitos, que eles criaram para si próprios. Semelhantemente, trabalhadores operários diante da falência de empresa em que trabalhavam, também, com a ajuda de alguma ONG criam cooperativas, transformam-se em trabalhadores cidadãos com certos direitos conquistados por eles mesmos. São exemplos de certa “cidadania interna” e de conquista de cidadania social que extravasam a concepção universal de cidadania, atada ao Estado (Manzini-Covre, 1991).

Esses poucos exemplos, dentre tantos outros que se espraiam contemporaneamente, servem para nos fazer pensar que há possibilidade da intenção ética, a estima pelos outros, de busca de instituições mais justas, mesmo em contextos de injustiça social. Consegue-se propiciar bons encontros consigo mesmo, com os outros, com a cidade. Ex-catadores de lixo, tornados sujeitos cooperados, acabam aprendendo a reivindicar publicamente por mais direitos. São sujeitos se apropriando, mudando, sofrendo, um sofrimento que leva a uma nova construção de si e certa nova construção social parcial.

Contudo, há situações em que a questão se coloca de modo mais candente. Relações fortemente desiguais, instituições ainda mais injustas vigentes no âmbito da população ainda mais desvalida socialmente. E, mesmo assim, temos dados e exemplos de que essa gente pode conseguir “driblar”, de algum modo, códigos sócio-culturais dominantes (antiéticos). Com Certeau (1996), vislumbramos que se pode deslocar o enfoque do que uma parcela desse tipo de população, acima mencionada, recebe como produto cultural (códigos) para aquilo que ela pode fazer disso. O autor traz um exemplo, emblemático, ocorrido no Nordeste brasileiro, mais especificamente em Pernambuco, pesquisado no ano de 1974. Ele se foca nas façanhas de Frei Damião, que se torna um herói carismático pois elas acabam servindo a uma apropriação popular de sobrevivência. A Igreja da região tem aí um discurso reacionário, permeado por milagres, dirigido então a uma população rural sofrida, pressionada pelos patrões e pela polícia, que assim permaneceria subjugada. Pois bem, esses crentes passaram a utilizar-se das mensagens passadas, da idéia de milagre como formas de romper com o fatalismo a que estavam destinados pela ordem estabelecida. E esse novo modo de ver a situação levou-os a uma nova forma de fazer a vida cotidiana, trouxe esperança, trouxe mudanças. Reiteramos o que já dissemos &– que a forma como apreendemos a realidade, já diz respeito a como vamos lidar com ela. Diríamos que esses “crentes”, no seu desespero, buscando saída para vida, conseguiram passar por certa auto-reflexão de si próprios como pessoas e como grupo, e com isso conseguiram se aproximar da condição de sujeitos, ou constituir para o próprio grupo rurícola uma existência como sujeito.

Certeau diz que há “mil modos” de jogar e desfazer o jogo do outro, ou seja, desfazer o espaço instituído por outros. E isso “... caracteriza a atividade, sutil, tenaz, resistência de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se de uma rede de forças e representações estabelecidas” (Certeau, 1996, p. 32).

Por essa mudança de lógica, de enfoque, feita pelos crentes nordestinos, por exemplo, pode-se aventar como há formas de se fugir da passividade, pela resistência e pela capacidade de invenção. Trata-se de outra produção, invisível e astuciosa, como indica o autor. É nesse sentido, que poderíamos dizer, como já se afirmou, serem os próprios códigos dribláveis.

E, acoplando-se a isso, temos mais um exemplo forte desse processo, dado em pesquisa de Vanistendael (1995), que discorre sobre uma certa forma de resistência, a resiliência &– termo da Física, referente à resistência de materiais &–, que põe em cheque a força dos códigos vigentes em si, ou seja, de uma estrutura. Nessa pesquisa, feita com jovens do Harlem, em Nova York, é indicada a forte resistência e criatividade por parte destes jovens, pois, mesmo vivendo em um ambiente bastante adverso, propício aos “maus encontros”, conseguem compor um tipo de vida aprazível. O autor examinou as causas dessa resistência no ambiente social, e constatou que esses jovens do Harlem, tal como outros, também viviam em famílias miseráveis: lares desregrados, pais bêbados, privação etc... Descobriu-se, entretanto, que esses atores tinham características muito próprias, como: primeira, satisfaziam-se (alegravam-se) com pequenos “ganhos” que poderiam ser uma forma de resistência; segunda, eram ligados a algum veio de religiosidade; terceira, tinham certo humor diante da tragédia, de modo a superá-la. Diríamos que, de fato, para lidar com dificuldades, exige-se humor e criatividade. A quarta característica desses jovens é a de fazerem parte de associações, terem seus projetos e trabalharem para projetos futuros. Desenvolvem outro modo de “ver” a realidade, usam sua capacidade de simbolizar, de serem criativos.

Desses exemplos fica a necessidade de maior investigação para se saber por que há indivíduos que conseguem ser sujeitos, na medida em que resistem, “driblam” os códigos, e outros que se submetem, mesmo que o ambiente social seja o mesmo &– aquele âmbito que leva a“maus encontros”,com instituições familiares “injustas”, como no caso da pesquisa no Harlem &– e grupos de jovens que conseguem reverter suas experiências para “bons encontros”. Em síntese, investigar porque alguns conseguem fazer sua cidadania interna (Manzini-Covre, 1991), alçar algum poder para si próprio, como esses jovens, que inventaram a própria vida, a vida de seu grupo.

Em suma, mesmo as populações mais desvalidas podem estar na aventura de serem sujeitos e procurarem se aproximar de uma vida melhor. Vale perceber que a cultura tem um espaço infindo. O ser humano está nesse espaço de que carece perceber. A apreensão de Deleuze do panteísmo de Spinoza como inconsciente nos permitiria asseverar como os seres humanos têm a possibilidade infinda de simbolizar. Parece que o destino do homem é simbolizar mais e mais... Retomemos de Sócrates, de que “sabemos tudo”, basta “recordar”. Pois estamos atrás do “devir” onde o absoluto e a razão se encontram (Hegel, 1966). Enfim, o espaço social é difícil, mas está prenhe também de oportunidades, prenhe de possibilidades culturais em que é possível desenvolver a criatividade para “existirmos” e práticas sociais inovadoras.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria de Lourdes Manzini-Covre
E-mail: lou.manzini@uol.com.br

Recebido: 20/11/2007
Aceito: 10/12/2007

 

 

* Cientista social, psicanalista, livre-docente da Universidade de São Paulo, coordenadora do NESCCi (Núcleo de Estudos de Subjetividade, Cultura e Cidadania).

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