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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008
EM PAUTA - CULTURA
O sujeito (oculto) e a cidade: a arte de Wodiczko*
The omitted subjects and the art of Wodiczko
Paula Rochlitz Quintão**
Universidade de São Paulo
RESUMO
Partindo da obra Vehicles, de Krzysztof Wodiczko, o texto analisa o cenário dos indivíduos homeless, apontando para a necessidade de vê-los como sujeitos dentro do espaço urbano.
Palavras-chave: Arte e urbanismo, Homeless, K. Wodiczko, Moradores de rua, Visibilidade.
ABSTRACT
Beginning with the art work entitled “Vehicles” by Krzysztof Wodiczko, the text deals upon the homelessness condition by pointing out the need to include street dwellers as subjects in the urban environment.
Keywords: Art and urbanism, Homeless, K. Wodiczko, Street dwellers, Visibility.
Sou um homem invisível. (...) Um homem de substância, de carne
e osso, fibra e líquidos & pode-se até dizer que possuo uma mente.
Sou invisível, entenda, simplesmente porque as pessoas se recusam
a me ver. Quando se aproximam de mim, vêem apenas o que está
à minha volta, elas mesmas, ou a ficção de sua imaginação & realmente tudo, exceto eu.1
Ralph Ellison. O homem invisível, 1947.
Quem são os habitantes de uma cidade que podem ser considerados sujeitos ou cidadãos? Esta é uma questão que vem se colocando com crescente interesse a partir de diversos estudos realizados com os moradores de rua, os sem-casa, sem-teto, ou, ainda, homeless. Esta última denominação parece-nos a mais adequada, pois, ao conter a idéia da casa como abrigo, coloca a casa-arquitetura em seu sentido mais abrangente, de lar. De acordo com o Dicionário Aurélio (1999),“desabrigado”é o indivíduo que não tem abrigo, que está exposto às intempéries; “sem-teto” é considerado aquele que não tem moradia, geralmente por falta de condições econômicas. São definições amplas que não contemplam a questão que aqui nos interessa: falar dos sujeitos, atores do cenário urbano, como quaisquer outros cidadãos.
Não são todos os moradores de rua que não têm teto: há os que usam teto aproveitado, emprestado, no sentido físico de“casa”. Estamos nos referindo aos andarilhos; aos loucos de rua; aos catadores de papel, de lixo, de restos a reciclar, que carregam seus carrinhos movidos a tração humana, verdadeiras carroças; aos que moram nas ruas, debaixo dos viadutos, que ocupam os não-lugares, e que, por vezes, e apesar disso, tentam construir nesse mínimo espaço algo que vagamente se associe ao cenário de uma casa, com seus objetos pessoais, cachorros, sofás, pertences. O termo homeless (sem-lar) é o que parece chegar mais próximo dessa idéia, visto que abrange não só o segmento dos sem-teto, como também traz consigo a idéia da fragilidade daqueles que vivem nas bordas, nas beiras, nos limites do espaço público. São nômades e miseráveis que perambulam pela cidade, pedintes, desempregados ou subempregados. Mais que viver, sobrevivem aos desafios que a falta de previsibilidade e de constância impõe: problemas tais como frio, desproteção pessoal, acumulação do alimento recolhido, perturbação do sono etc. A sobrevivência compele, assim, à mobilidade, isto é, à habilidade de se deslocar de um lugar para outro com seus pertences e de maneira eficiente. Na maior parte das vezes é o único modo que encontram de habitar a cidade.
Os homeless são indivíduos submetidos continuamente a mecanismos de evacuação, tanto implícitos, representados pelo envio aos abrigos & verdadeiros depósitos de gente, com se esta fosse a solução para o problema &, pela expulsão, em geral de forma violenta, e pelo reenvio para suas cidades de origem, munidos de um reembolso simbólico, como explícitos, representados por seu turno pela construção de bancos convexos, que os impedem de se deitar, de superfícies irregulares, grades, espetos, e, até mesmo, de “esguichadas” de água,a fim de afastá-los de onde estejam. Esta é a resposta que o Estado e a cidade lhes oferecem: ratifica-os como excluídos. Expulsando-os, ninguém os vê: portanto, não existem.
É aqui que retomamos a questão formulada no início: o que torna um indivíduo sujeito, cidadão, incluído na sociedade, participante da cidade?
Em primeiro lugar, é preciso enfatizar a questão da visibilidade. Parece-nos que um indivíduo só passa a ser considerado sujeito quando o olham ou o visitam como “alguém”.
Para além dos viadutos, o homeless é empurrado para fora da cidade, não no sentido geográfico, e sim no de espaço desqualificado,destituído de humanidade; jogado cada vez mais para as bordas, para o lixo (coincidência?), para debaixo do tapete. Embora por diferentes motivos, e em diferentes contextos sociais e econômicos, sua presença, principalmente em locais inóspitos, acontece tanto aqui no Brasil como em outros países; trata-se, portanto, de um fenômeno global. Ora, essa não é apenas uma coincidência, mas diz respeito ao tipo de lugar da cidade que lhes é imposto, passível de ocupação silenciosa: por serem locais esquecidos, desprezados, são símbolos do abandono, do desamparo e da privação.
O psicanalista Contardo Calligaris, na reportagem “O espírito das casas” (2006), aponta que, “em geral, subestimamos o espaço concreto no qual vivemos. Não acreditamos que sentimentos, afetos e relações dependam também do cenário concreto de nossas vidas”. Mais adiante, ele acrescenta: “O mesmo vale para o espaço urbano: temos a vida pública que nossas cidades nos impõem”. No caso dos homeless, os âmbitos público e privado da vida confundem-se na medida em que o espaço público é também o privado (e/ou vice-versa). A base do equívoco começa aí: o espaço público é o meio de sobrevivência para o homeless, que dele, portanto, depende. No entanto, paradoxalmente, mais do que a qualquer outro cidadão, a ele é negado esse direito.
O que Flávio C. Ferraz escreve a respeito do louco de rua:“a importância que têm para ele, o espaço público e o social e sua liberdade de andarilho” (2000, p. 247), pode ser dito também sobre o morador de rua.Mas encontramos aí uma contradição. Se, por um lado, o morador de rua está fisicamente confinado no espaço público, por outro, encontra-se politicamente destituído do uso desse espaço, que,por lei,deveria ser a ele garantido. A própria semântica do termo “morador de rua” exprime a curiosa ambigüidade intrínseca nas palavras: morador/esfera privada e rua/esfera pública. Ao ser apartado da sociedade e permanecer nesses espaços públicos, o homeless é impelido a viver dentro dele como espectador silencioso, sem voz: a ele tem de ser dado o direito à cidade.
O isolamento pela sociedade faz com que a população de rua seja percebida equivocadamente, por falta de informação. Essa idéia estigmatizada se forma também pelo fato de a rua possuir uma composição heterogênea, o que dificulta qualquer caracterização perante a sociedade, como se fosse preciso uniformizá-la para entendê-la. A rua tem loucos, sim, mostra-nos Ferraz (2000, p. 23), referindo-se ao documentário de Miriam Chnaidermann (1994), Dizem que sou louco:“(...) a rua é o seu habitat por excelência”, mas nem todos os moradores de rua assim o são. São pessoas que, na realidade, pouco têm a ver com o imaginário de“perigo em potencial” que lhes é imputado. O perigo se passa à volta, nos locais em que se inserem, como citamos acima, lugares marginalizados, sem uso e sem qualidade, freqüentados também por aqueles que neles parasitam, através do comércio de drogas ilícitas e da prostituição, e que partilham desses mesmos espaços.
Como então dar visibilidade e chamar a atenção para o problema dos não-sujeitos no cenário físico e social das metrópoles? Tomaremos como exemplo um projeto de intervenção na cidade, por meio da arte, de Krzysztof Wodiczko.
Artista polonês, nascido em Varsóvia em 1943, Wodiczko emigrou para o Canadá e depois para os Estados Unidos, onde mora e é diretor do Center for Advanced Visual Studies e chefe do Interrogative Design Group do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Esteve em São Paulo em 1998, para o encontro Arte/Cidade. Como artista engajado que visa à intervenção urbana, criou uma série de instrumentos para esse fim, utilizando o espaço público como cenário para lançar interrogações, por meio de suas Projeções em edifícios públicos, dos Instrumentos de comunicação e dos Vehicles. Com estes últimos, além de lançar uma crítica à situação dos homeless nas cidades, às suas condições de sobrevivência, à sua exclusão física e social, Wodiczko denuncia o funcionamento perverso da lógica espacial das metrópoles.
O trabalho de Wodiczko é fundamentalmente artístico, e por isso não deve ser dissociado da perspectiva acima. O “Homeless Vehicle Project” (Figura 1) e o “Poliscar” (Figura 2), especificamente, trazem qualidades que causam impacto: capturam o olhar, provocando perplexidade, interrogação, estranhamento, chamando a atenção para um verdadeiro exército de excluídos, por ele denominados “nômades urbanos despejados da economia atual” (Milton, 2003). Tal como o conjunto de sua obra, os veículos por ele criados são metafóricos & “o veículo é para uso exclusivo do artista” (1999, p. 76) &, e seu discurso contém elementos que nos interessam.
O “Homeless Vehicle Project”, elaborado por Wodiczko e D. Lurie entre 1988 e 1989, mas iniciado em 1971, é um projeto de carrinhos desenhados a partir da leitura dos carrinhos que os homeless improvisam naturalmente nas ruas (Figura 3). A proposta dos artistas é que tais “veículos” sirvam como meio para seu sustento e sobrevivência na cidade. São projetados não apenas para servir de abrigo pessoal, a fim de que nele possam morar (circular, dormir, lavar-se, guardar seus pertences), como também para o transporte e o armazenamento de latas, garrafas, lixo e outros materiais recicláveis que a cidade oferece, possibilitando a coleta, a separação e o retorno, como o trabalho de nossos catadores de papel. Neste sentido, é um design bem resolvido. Foi testado em diferentes cidades dos Estados Unidos e da Polônia.É evidente, contudo, que estamos falando de algo para além dessas necessidades básicas.Assim, a partir desta intervenção no real, abre-se uma gama de instigantes questionamentos.
Um fato importante a destacar é a direta participação dos usuários na construção do veículo, chave para uma relação de apropriação do objeto.
Assim como o “Homeless Vehicle Project”, o “Poliscar” (o nome origina-se de polícia, policy, e política, derivado do grego polis) segue a linha de expressão artística que compõe o trabalho de denúncia de Wodiczko, como meio experimental para a expressão e auto-imagem. “Democracia, liberdade e identidade são formas de prática contínua que não podem ser separadas das instâncias de sua expressão, comunicação e, por conseqüência, recepção pela maior parcela da população” (1999, p. 96).
O “Poliscar”, de 1991, também usado como unidade de comunicação ou moradia, serve para ajudar a organizar e operar uma “Rede de Comunicação entre os Homeless” (Homeless Comunication Network) (1999, p. 95). Essa rede seria um meio de articulação, troca e confrontamento de idéias, experiências e histórias entre eles, em que mensagens são transmitidas por meio de uma antena, dando unidade ao grupo, mantendo-os informados e buscando igualmente inseri-los no mercado de trabalho.
Ambos os projetos tiram partido da visibilidade do design como meio de expressão, semeando inquietação, incômodo, estranheza, perplexidade, e acabam por instigar perguntas que, se não fornecem a solução, ao menos retiram o objeto de seu lugar comum, fazendo-nos pensar: provocam um zoom no olhar. São objetos esquisitos, para dizer o mínimo, a circular pela cidade. Não há como não enxergá-los: são olhados, logo existem.
Se a idéia é de que esses objetos sejam pontos finais, solução para o problema de quem mora na rua, da ausência de lar, a proposta causa certa repulsa. Impossível ver um morador de rua dentro de um daqueles contêineres sem ficar imobilizado ou constrangido. E, é justamente isto que encanta no trabalho de Wodiczko: tentamos “traduzir” essa dualidade, atração e repulsa.
A questão dos “veículos” incomoda, visto que nos obriga a olhar, óbvia e escancaradamente, para aquilo que não queremos ver. Sua presença na cena urbana tem um caráter de contundência, “alterando a percepção pública sobre os indivíduos homeless. Sua movimentação visivelmente proposital pela cidade lhes dá identidade como atores no espaço urbano” (Wodiczko, 1999, p. 82). Mas, não pela visibilidade invisível dos meninos de rua que nos param nos sinais a pedir esmola, ou mesmo das pessoas que dormem em cada esquina e pelas quais passamos sem desviar o olhar, e sim pela presença de um objeto estranho que nos impacta.
O paradoxo de Wodiczko reside no modo como encaminha a questão, pois sugere a idéia de tornar permanente aquilo que, a princípio, haveria de ser transitório, e que acabaria por cristalizar esses indivíduos num lugar de exclusão e de imobilidade social.
O reconhecimento do direito à moradia digna deve levar também à pergunta sobre quais são as necessidades imediatas desses moradores. O foco da questão de “prover teto, banheiro, comida e roupa” como caridade deve ser deslocado para uma outra posição que os caracterize como clientes, legitimando o processo e possibilitando resultados mais eficazes.
Cabe ainda apontar a ausência de instrumentos que contemplem essa multiplicidade, tanto na abordagem dos serviços de assistência social, psicológica e de saúde como nos projetos dos albergues e casas de convivência. Se a população de rua é heterogênea, a resposta não pode ser homogênea. A configuração física de tais espaços não contempla, por exemplo, a diferença entre as diversas configurações de grupos: famílias com ou sem crianças, indivíduos sozinhos, menores etc. O tratamento uniforme para uma população heterogênea tem sido uma das razões da falência deste sistema de albergamento. A resistência do morador de rua em relação ao albergue se deve exatamente a essa pasteurização. Não podemos, então, esperar que qualquer proposição seja efetiva, se não levarmos em conta que se trata de sujeitos em sua individualidade e unicidade.
O contingente de moradores de rua cresce vertiginosamente2, o que por si só já é motivo suficiente para a elaboração de projetos urbanísticos que levem em conta essa população. Para tanto, é preciso considerar os locais de maior incidência de moradores de rua, os traçados de mobilidade, a infra-estrutura de transportes coletivos, entre outros elementos já disponíveis nas pesquisas até aqui realizadas. O que falta é servir-se de tais informações para propor soluções.
Uma proposta imaginada como possível saída seria uma rede urbana de locais de apoio que se espalhasse por todo o território em que os moradores de rua circulam, ao que chamaríamos de “Centros de Referência”. O nome visa, justamente, conferir um caráter político, no sentido de criar referências em direção à construção de cidadania, e físico, como referência de inserção espacial na cidade, a fim de dar suporte e de alavancar o processo de saída da rua.Tal proposta seria uma solução circunstancial para que esta condição seja transitória. Porém, cabe esclarecer, para os moradores que usam a rua por opção, é necessário lançar um outro olhar. Em resumo, nossa proposta de projeto urbano visaria a uma estrutura permanente & a que se deu o nome de rede &, para uma estada efêmera, transitória. Pois se o que caracteriza o homeless é a mobilidade e a não-pertinência a lugar nenhum, é incoerente propor um local de “transitoriedade permanente”.
Entre arte e cenário real urbano, a premissa é que, se o morador de rua existe, que possa ao menos sê-lo por opção e não por coerção, tornando-se assim um ator do espaço urbano & sujeito, e não objeto.
Referências
Calligaris, C. (2006, 24 ago.). O espírito das casas. Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada. [ Links ]
Chnaiderman, M. (Dir.). (1994). Dizem que sou louco [Filme documentário] (Argumento: Reinaldo Pinheiro). São Paulo. 16 mm, duração 12 min. [ Links ]
Dear, M., & Von Mahs, J. (1997). Housing for the homeless, by the homeless and of the homeless. In E. Nan (Org.), Architecture of fear (pp. 187-200). New York: Princeton Architectural Press. [ Links ]
Deutsche, R. (1996). Evictions: Art and spatial politics. Massachusetts: MIT Press. [ Links ]
Ellison, R. (1947). Invisible man. New York: Random House. [ Links ]
Ferraz, F. C. (2000). Andarilhos da imaginação: Um estudo sobre os loucos de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Ferreira, A. B. de H. (1999). Novo dicionário Aurélio: Século XXI. São Paulo: Nova Fronteira. [ Links ]
Milton, A. (2000). Critical vehicles: The creation of a conceptual road map for automotive design. Making and unmaking: Selected proceedings of the Design History Society, 330-339. [ Links ]
Wodiczko, K. (1999). Critical vehicles: Writings, projects, interviews. Cambridge: Massachusetts, MIT Press. [ Links ]
Endereço para correspondência
Paula Rochlitz Quintão
Tel.: (11) 8202-8404
E-mail: paularq@terra.com.br
Recebido: 20/01/2008
Aceito: 10/02/2008
* Texto baseado no TFG “Centros de Referência: Espaços de moradia transitória e reinserção para população de rua na cidade de São Paulo”. FAU/USP, 2000.
** Arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Mestranda da área de Projeto, Espaço e Cultura da mesma universidade.
1 Tradução livre da autora.
2 Segundo contagem do número de Moradores de Rua da Cidade de São Paulo, promovido pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e pela Secretaria Municipal de Assistência Social, outubro 2003.