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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

RESENHAS

 

O labirinto e a psicanálise

 

The labyrinth and the psychoanalysis

 

 

Eunice Nishikawa*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Morgenstern, Ada (2009). Perseu, Medusa & Camille Claudel: sobre a experiência de captura estética. São Paulo: Ateliê Editora. 227 p.

E, de repente, um encontro inesquecível: o encontro com Perseu e Medusa. Um impacto, um arrepio, um instante de “petrificação”. O encontro com o desconhecido, com um mito que para mim era uma incógnita... Jamais esqueci aquele momento. (p. 23)

O fato ocorreu na Exposição Camille Claudel em São Paulo, em fins de 1997. O encontro com esta obra – Perseu e Medusa −, uma escultura em mármore branco, obra de Camille Claudel, dá origem à aventura vivida pela autora. Este, entre outros acontecimentos, resultou no livro cujo título mais parece um enigma. Afinal, qual a relação entre Perseu, Medusa e Camille Claudel? Que título! Do que trata o livro? Penso que trata do enigma, mas entendido por meio de pinceladas contemporâneas, trabalho de uma artista plástica.

Fajardo (2008, p. 23), em uma entrevista concedida à Revista Brasileira de Psicanálise, considera “que se é um enigma, você não está lá apenas para entender o discurso, e sim para compor as peças faltantes”. É esta a característica da arte contemporânea, um convite para você participar e compor as peças que faltam. Não se trata mais de uma narrativa, em que é possível entender o que se fala, mas da própria construção daquilo que pode ser narrado pelos intérpretes. Penso que o título já é em si uma síntese da proposta da autora: mulher, psicanalista e artista plástica, que com pinceladas nos remete à sua obra como escritora, concedendo lugar para que Camille Claudel a interrogue, a capture e a faça trabalhar; e para que nós, seus leitores, sejamos também capturados. Não há como decifrar o enigma – mas, quem sabe, ser devorado?

Lemos então o subtítulo: “Sobre a experiência de captura estética”. Creio que há aqui um indício importante da relação entre arte e psicanálise, um campo que merece ser mais explorado. Desde os sintomas psicossomáticos que compõem uma síndrome (de Stendhal) que acomete os que veem as obras-pri mas da Renascença pela primeira vez (Mangel, citado por Morgenstern, p. 40), que envolve palpitação, sentimento de vertigem, eu acrescentaria “petrificação”, pela qual o corpo do espectador é afetado pelo contato com a obra, até a aceitação de que “precisamente algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão” (Freud, 1914/1974, p. 253). Mas Ada vai além e nos remete à captura como significante, que busca encontrar significados, os quais, ao serem encontrados, tornam-se novos significantes, gerando uma experiência labiríntica.

Para não se perder nessa experiência labiríntica há que se levar o fio de Ariadne. Daí o segundo capítulo: “Puxando fios, desfazendo emaranhados”, no qual Ada mostra como compôs o fio da meada.

Estamos então prontos para a aventura única e estimulante, pois, se Camille Claudel como personagem já nos toca e comove (p. 25), sua história é contada através da obra, a escultura Perseu e Medusa, em uma composição em que vida e obra se entrelaçam. Sob o título “Compreender” enveredamos pelos caminhos tortuosos de uma vida criativa e conturbada, nos quais a relação entre Camille e Rodin é apresentada com um toque especial, mas de forma indireta através do mito, no qual Medusa acaba sendo decapitada por Perseu. São pinceladas sensíveis, mas vigorosas, que alcançam a dor e a violência. Em nenhum momento encontramos uma interpretação banal, uma psicanálise selvagem.

A partir deste núcleo central, somos apresentados ao contexto no qual a escultura foi criada: não apenas no eixo vertical, “a história transversal da obra, mas também uma história longitudinal – focalizando o que precede e o que sucede a obra” (p. 94). Uma incursão pelo momento histórico e cultural do fim do século XIX, início do século XX, na França, com a introdução do termo “modernidade” por Baudelaire, e com o movimento impressionista na pintura, no qual, como assinala a autora, o “foco de atenção não era mais o objeto e, sim, a atividade mental do sujeito que o percebe” (p. 107). Além do mais o espectador é convocado a se implicar na obra: “A partir das pinceladas descontínuas, de regras cromáticas inusuais, a pintura de Cézanne colocava o espectador numa posição de reflexão – numa posição, portanto, ativa” (p. 108).

Dois capítulos são dedicados à escultura: “A arte da escultura e suas especificidades” e “A escultura de Camille Claudel”. Não por acaso, acredito, a autora cita Frayze-Pereira e seu livro Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, nas considerações sobre os mitos fundantes da arte da escultura: Zeus que, compadecido, petrifica a altiva Níobe, que chora desesperada a perda de seus inúmeros filhos, e Dédalo, que concebe o labirinto em que será encerrado o terrível Minotauro (Morgenstern, 2009, p. 113; Frayze-Pereira, 2006, p. 272). Como link entre os dois capítulos, a autora escreve: “Curiosamente, Níobe ferida será a última obra criada e preservada por Camille Claudel” (p. 113). Também no viés histórico, Ada retoma a concepção de escultura de Michelangelo, que serviu de modelo para Freud falar da técnica psicanalítica: “Por escultura, entendo aquilo que se faz por um processo de subtração (per forza di levare); o que se faz por um processo de adição (per via di porre – ou seja, a modelagem) é mais semelhante à pintura” (p. 114). No entanto, é o uso da argila, o modelado, que irá marcar a revolução na técnica da escultura na modernidade, principalmente através de Rodin.

A vida e a obra de Camille Claudel foram marcadas pelo encontro com Rodin. “No período em que Camille trabalhou no ateliê do artista, uma intensa paixão entre eles eclodiu. De alguma forma, essa experiência contribuiu para a criação de uma espécie de fusão artística – além da amorosa” (p. 122). Ada nos mostra não apenas o entrelaçamento dos estilos dos artistas e amantes, mas também o modo como Camille afirmava um estilo próprio, diferenciando-o cada vez mais do trabalho de Rodin. Essa diferenciação vai ficando evidente nas obras após o aborto sofrido em 1892 − A valsa e Cloto − e, segundo Lessana, citado por Ada, “enquanto as esculturas de Rodin têm uma ‘pele’ que as recobre”, o modo como as estátuas de Camille desabrocham do interior para o exterior “acusam a expressão do desencarnado e da tortura”, assim como transparece “uma poderosa emanação da expressão interior – o medo, o apelo, o carinho, o pavor... e a proximidade da morte” (p. 128). Temos ainda a escultura A idade madura, considerada por muitos críticos a obra-prima de Camille. “A escultura Níobe ferida encerra seu ciclo produtivo, como se também fechasse outro circuito, com a volta ao momento fundador da escultura: Zeus transformando Níobe em pedra” (p. 133).

Chegamos ao terceiro e último bloco: “A caminho da conclusão”. Continuo a metáfora do labirinto como o outro mito fundante da arte da escultura. Acompanhando a autora na sua aventura observamos como ela, com todo o cuidado, tece o fio de Ariadne e consegue encontrar a saída. O mesmo não aconteceu com Camille Claudel, que acabou confinada no seu labirinto. No início do livro lemos: “Pois ... ela (Camille) nos legou uma criação muito especial. Uma criação que foi relegada ao esquecimento – exatamente como a criadora, esquecida por trinta anos num sanatório” (p. 25).

Dois temas fundamentais são trabalhados pela autora: “Reflexões sobre o olhar” e “Pensando a paixão: entre a fusão e a individualidade”, que considero decorrentes da sua relação com Camille Claudel, vida e obra, e o entrelaçamento com a psicanálise. Há na forma como a relação arte e psicanálise é tratada a possibilidade de uma troca e um enriquecimento no trajeto entre ambas − uma psicanálise implicada (conceito de Frayze-Pereira), baseada em “uma experiência estética – da dinâmica da presença e ausência do sensível” –, como “uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer” (p. 169). Mas também uma experiência poderosa que tanto nos permite dizer, como ao não mais dizer, vai além do calar. É essa a matéria bruta da arte e posteriormente da psicanálise.

Os outros três capítulos: “Um caminho entre a psicanálise e a arte”, “Ler uma obra de arte: a questão da interpretação”, e o último, “Prosseguindo na captura”, considero um trabalho de reflexão da autora na sua relação com a obra e a psicanálise. Seria a explicitação dos duplos, do espelho. Espelho e labirinto que bela combinação! A captura como ilusão – mas que desilusão! No dizer de Ada: “Há que se considerar intangível o gesto da criação” (p. 201).

Para terminar, além de recomendar vivamente o livro, quero contar que na verdade esta resenha é fruto de um reencontro, pois conheci Ada Szklo nos bancos do ginásio. Era uma escola experimental em tempo integral, Ginásio Estadual Vocacional “Osvaldo Aranha”, onde tivemos aula de Artes Plásticas com Evandro Carlos Jardim e Maciej-Babinski. Nas escolas vocacionais, “segundo relato da professora Maria Nilde Mascellani, a arte e a literatura faziam parte do currículo, já ‘que as formas de expressão são humanizadoras e dão uma dimensão muito mais profunda do entendimento das coisas práticas, do mundo construído’” (Tamberlini, 2005, p. 42). Com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de dezembro de 1968, muito professores e alunos foram presos e a professora Maria Nilde foi envolvida em mais de 300 processos. Fica aqui um relato breve de uma experiência de ensino na qual ciência e arte davam-se as mãos na busca da verdade.

 

Referências

Fajardo, C. (2008). Entrevista. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(3), 15-27.         [ Links ]

Tamberlini, A. R. M. B. (2005). Os ginásios vocacionais, a história e a possibilidade de futuro. In Rovai, E. (Org.), Ensino vocacional: uma pedagogia atual (pp. 27-49). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Eunice Nishikawa
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 247/14
04544-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3846-6926
E-mail: eu.nishi@uol.com.br

Recebido: 05/10/2010
Aceito: 20/10/2010

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.

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