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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

O lugar da fala na cidade

 

The place of speech in the city

 

 

Jorge Ricca Junior*

Prefeitura da Cidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A praça é um elemento fundamental da arquitetura de uma cidade na civilização ocidental, pois ela é o lugar da fala e da escuta populares. Quando esse espaço se degrada, é o próprio exercício da democracia que se degrada, porque ambas, democracia e praça, nasceram ao mesmo tempo e só encontram a sua razão nas sociedades democráticas. A valorização da praça e da sua arquitetura são os sinais evidentes da arte de viver e fruir a cidade.

Palavras-chave: Cidade, Democracia, Praça.


ABSTRACT

In western civilization, the square is a key element of a city's architecture: it is the place of popular speaking and listening. When this space degrades itself, the exercise of democracy degrades too. Because both – democracy and square – were born at the same time and found their reason on democratic societies. Valuing the square and its architecture are important signs of the art of living and enjoying the city.

Keywords: City, Democracy, Square.


 

 

No muro da USP, eu vi a frase: "Você praça, acho graça; você prédio, acho tédio". É possível perceber na frase pelo menos duas leituras, se significarmos praça como um símbolo do espaço público e prédio como símbolo do espaço privado. A praça então passa a ser o lugar aberto da conversa coletiva na cidade. O prédio, o lugar fechado da vida familiar.

Na primeira leitura, imagino o indivíduo enamorado dirigindo-se a seu par para dizer: "se você vem aqui fora, eu gosto; mas se fica em casa fechado, não, porque não posso ver, tocar, falar com você". Esse é o ponto de vista do amor entre dois seres, um casal, algo que ocorre na história desde sempre, como se Romeu chamasse a sua Julieta.

Na segunda leitura, ainda temos um indivíduo chamando, mas não apenas um outro indivíduo, e sim toda uma comunidade. Parece alguém conclamando todo um povo para vir à praça, para sair dos muros estritos da casa e da família para falar coletivamente, quer dizer, manifestar-se. Aqui, a história das sociedades humanas está repleta de exemplos, principalmente após o Iluminismo atacar a ideia da monarquia divina e proclamar que o direito à cidade é um direito humano básico. Pois se a cidade é o lugar da liberdade, onde o cidadão escapou das arbitrariedades do rei e dos senhores, seus espaços públicos, como a praça, são o lugar por excelência do exercício dessa liberdade.

Pichada no muro da Universidade após as manifestações de junho, a frase sintetiza um tema que atravessa a cultura ocidental e tem nexos com o tema do poder na sociedade de massas. Massa e poder como tema, sugere que o poder manipula a massa através de técnicas publicitárias, por exemplo, ou através da força e da violência de um Estado policial totalitário. Algo como aquilo imaginado por George Orwell no seu 1984. Se invertemos o tema na ordem em que foi proposto, podemos chegar a pensar no poder das massas, ou seja, na própria ideia da democracia, do poder do povo para ele mesmo, e no lugar onde isso se materializa: a praça.

 

Ágora e Democracia

Para lidar com as duas esferas – pública e privada –, a Grécia inventou a Praça e o Teatro. A praça grega (ágora) foi a forma urbana que inventaram para reunir os cidadãos livres e debater os assuntos da polis, do Estado. A praça era o lugar de falar da política. A praça definia o limite do mundo familiar e do mundo político, era o lugar da discussão e da definição dos temas que afetavam a todos em comum. A cultura ocidental herdou essa ideia: a conexão entre praça e democracia, a praça sendo a expressão espacial do regime democrático.

Já o Teatro foi a forma que inventaram para lidar com os problemas familiares, e suas consequências sociais. No palco, a plateia assiste à representação, trágica ou cômica, dos fatos que se desenrolam no interior dos muros do palácio. O teatro é, ainda agora, uma janela onde o público perscruta o mundo privado. Não é esse o sentido do teatro de Nelson Rodrigues, por exemplo?

A famosa fotografia de Eisenstaedt, o marinheiro beijando a enfermeira (ambos anônimos) na Times Square, em Nova York, no dia da grande comemoração popular pelo término da Grande Guerra, em 1945, motivou Marshall Berman a estabelecer a ligação daquele momento simbólico com o nascimento da democracia grega e o papel que os marinheiros (e o povo) terão nisso. Um panfleto do século V a.C. sobre a Atenas democrática redigido pelo "Velho Oligarca", homem de alta linhagem, é franco no desdém pelo "povo comum e as classes mais pobres". No entanto, elogia a pólis na qual as classes baixas têm um poder substancial e aspirações, ainda que limitadas: querem ser alguma coisa, não querem tudo, querem "cargos no Estado abertos a todos". Dizem: "o direito de falar deve pertencer a todos os que desejarem se expressar, sem exceção". Desejam se candidatar aos cargos e não apoderar-se deles; "mas o que querem sobretudo é o direito de falar".

Há um ponto crucial na antiga cultura grega, em que os senhores do Estado esmagam o desejo de falar do povo. No livro II da Ilíada, Tersites e outros soldados protestam contra o sítio a Troia por dez anos e clamam pela volta dos gregos para casa. Muitos dos senhores falaram nisso, mas o fizeram em privado, uns para os outros. Quando um soldado comum diz o que os senhores andaram falando, Odisseu esmaga o insolente: o derruba e racha o cetro nas costas dele até ele sangrar. E essa é a última vez que ouvimos a voz popular, até que, séculos depois, a democracia restitui a todos o direito de falar em público. Na assembleia democrática na ágora, todos os cidadãos podem falar e todos têm o dever de escutar (Berman, 2009, pp. 100-103).

Em Roma, o processo democrático sofreu um retrocesso. O fórum está delimitado pelos prédios monumentais do Estado e, ao contrário da ágora, a discussão não mais ocorrerá na praça aberta, mas no recinto fechado dos edifícios, onde penetrar era restrito aos senhores.

 

Praça e rede social

A arte da conversa parece estar em crise. Um deus do nosso tempo, Steve Jobs, inventou uma nova maneira de comunicação remota. O diálogo sempre pressupôs a presença física, a proximidade dos corpos, a fala e seu reverso, a escuta. No Renascimento, Leonardo da Vinci podia dizer que os olhos eram a janela da alma porque conversar era olhar os olhos do interlocutor.

O telégrafo e o telefone introduziram na cultura a comunicação à distância, que agora culmina na maravilha do IPhone. O diálogo passa a ser possível a todo tempo, de qualquer lugar, a custo razoável. A pequena máquina portátil anulou os efeitos do espaço, estendeu o tempo e tornou acessível às massas a livre comunicação. O poder de falar distribuiu-se democraticamente a todo o povo.

Se meu filho mora em Barcelona, eu agora posso falar com ele diariamente. Quando morava em minha casa a comunicação era mais difícil. Esta frase parece contradizer a asserção de que a proximidade física é essencial ao diálogo. Mas não. O que ocorreu nesse caso experimentado por tantas famílias é que a distância tornou possível a conversa porque o filho estava confinado ao prédio – para usar a metáfora inicial – e só o pai conhecia a praça. Quando os dois homens saíram à praça, e puderam crescer, eles também puderam conversar porque viram o mundo fora da caverna.

Quando o gigantismo das cidades contemporâneas e suas difíceis condições parecem inviabilizar a própria vida, eis que a própria cidade parece inventar novas saídas para o relacionamento humano. Penso nas dificuldades de deslocamento, na insegurança, no cansaço que experimentam os habitantes das cidades em que esses problemas restam insolúveis. E em como o mágico artefato criado pela inteligência humana afetou todos os aspectos da vida, inclusive as instituições mais antigas.

Quando a Igreja católica adotou o sino para chamar seus fiéis, na Idade Média, as altas torres das igrejas marcaram a paisagem das cidades, pequenas e silenciosas. Agora, se o sino toca na praça da Sé ninguém mais escuta. O espaço dilatou-se, as cidades se agigantaram; o tempo reduziu-se. É imperativo chamar os fiéis através dos sinais eletrônicos. A natureza do espaço, do tempo, e dos sinais se alterou profundamente. As altas torres de difusão digital, e os arranha-céus, são os signos maiores da cidade contemporânea.

Mas o IPhone não substitui a praça. As grandes democracias do mundo ocidental têm, ao contrário, cuidados crescentes e eficazes de construção de praças (jardins e parques) para suas populações. Manhattan, Londres, Paris, Buenos Aires, Roma, Barcelona. Por que essas cidades atraem tanto os habitantes locais e os visitantes senão pela qualidade de seus espaços de uso comum?

 

Praça e construção de cidade

Na Roma renascentista a praça ganhou um significado espacial inédito. Michelangelo projetou a praça do Campidoglio, Lorenzo Bernini, a praça de São Pedro. Os papas, prefeitos de Roma, dedicaram atenção e cuidado aos espaços públicos. Seis praças romanas conservam até hoje suas "estátuas falantes". A tradição parece ter começado quando Pasquino, um barbeiro da época do Renascimento, escrevia versos satíricos contra os poderosos, inclusive contra o papa, e os pendurava ao pé da estátua (no caso, um fragmento de estátua do século III a.C.). O costume do barbeiro transformou-se em tradição que persistiu até recentemente. Mesmo em outras cidades italianas essa qualidade é evidente. Ao chegar a Veneza, Napoleão declarou que a praça São Marcos era o mais belo salão do mundo.

Na França, desde Luís XIV, a capital foi sendo construída a partir da magnificência dos espaços de uso público. A praça Vêndome, a praça Royale, a série de logradouros esplêndidos que geraram toda a cidade. A praça de Grève foi o coração de Paris. Grève significa "terreno plano de cascalho e areia à margem do rio". Pelo porto de Grève chegavam a Paris a madeira, o trigo, o vinho, era aí o grande mercado da cidade, ao redor do qual se desenvolveram os bairros da margem direita do Sena. Quando a sede do poder municipal, o Hôtel-de-Ville, aí se instala, o lugar, urbanizado, se transforma na praça onde operários desempregados reuniam-se em busca de trabalho.

Na América, a Espanha aplicou-se em ordenar as cidades que fundou. O Estado espanhol ordenava a construção das cidades segundo um plano regular minucioso. A construção se iniciava pela praça Maior, retângulo que servia de base para o traçado das ruas principais. A povoação partia nítida de um centro que é a referência do plano futuro da cidade. A praça gera a cidade, aqui. E se distingue do que fizeram os portugueses com suas cidades na América. Já na América portuguesa, a fantasia dava às cidades o modo de dispor as ruas, como em Salvador, a maior cidade da colônia, onde as vias achavam-se dispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era irregular, e a praça onde se erguia o Palácio do Vice-Rei parecia estar ali por acaso e não por uma decisão firme da vontade da Coroa. No Brasil, o traçado geométrico jamais alcançou a importância que teve em terras espanholas. Quase sempre, o desenvolvimento posterior das cidades portuguesas repeliu o esquema geométrico para obedecer à topografia (Holanda, 1995, pp. 95-109).

As consequências são hoje visíveis. Em Lima, por exemplo, é uma grande experiência sentar-se na praça Maior ao entardecer e deslumbrar-se com a animação da gente que por ali passa ou senta-se para conversar. Cercada de edifícios monumentais, sedes do poder temporal e religioso, os limenhos têm ali um jeito de se encontrar, se ver. A forma aberta e a dimensão da praça têm o poder de atrair a gente para lá. Na praça, mesmo o homem que se supõe apolítico já é, mesmo sem o querer, político.

 

Praça e prédio

Nas cidades brasileiras, é sugestiva a desvalorização da praça pública. Na cidade de São Paulo, como em outras, a cidade velha (a área central) é pobre de praças públicas dignas do nome. Na cidade fundada por padres jesuítas do século XVI, quase todas as praças centrais são restos dos antigos adros das igrejas: o Páteo do Colégio, os largos de São Bento e São Francisco, os largos do Rosário (praça Antonio Prado) e da Misericórdia (desaparecido), o largo do Carmo (que deu lugar à avenida).

A praça da Sé não chega a se caracterizar como tal. Entre nós, reina a confusão acerca do que constitui de fato uma praça. Nós a associamos à presença da vegetação. A praça aqui é na verdade um jardim urbano, uma praça jardim. Chegamos mesmo a designar de praça os canteiros e rotatórias de grandes avenidas, ainda que impossíveis de serem acessados e usufruídos pelos cidadãos. A praça do Patriarca é a única exceção, o chão contínuo, a nítida significação urbanística, ainda que de dimensão reduzida.

Na cidade nova, nem a praça da República nem o largo do Arouche têm as caraterísticas da praça. Por esse motivo, o maior comício da história paulistana – das diretas, em abril de 1984 – realizou-se no vale do Anhangabaú, naquele tempo uma avenida expressa. E agora, nas manifestações de junho, as multidões deambulando linearmente em marcha, em passeata, por avenidas e pontes, não se fixaram num espaço político simbólico e poderoso.

O símbolo das cidades brasileiras talvez seja outro. Desligado do público, ligado ao privado. O prédio parece ser a metáfora. O símbolo poderia ser Alphaville, que pode ser o nome de qualquer domínio privado, horizontal ou vertical, cercado de muros, dentro ou fora da cidade. De onde se sai para ir às "praças de alimentação" dos centros comerciais fechados ou aos "centros empresariais" com seus espaços de uso exclusivo, antiurbanos. Lugares onde a regra é ditada pelo privado, nunca pelo público.

 

A cidade é nosso texto

O livro não acabou com a arquitetura, como previu Victor Hugo. Mas em algumas cidades, como São Paulo, o IPhone pode ajudar a empobrecer o espaço público real. Se pensarmos a cidade como linguagem, a degradação do espaço público é um mau sinal. Se a praça é um signo definidor dessa linguagem, sinal da cultura urbana, assento da arquitetura, sua inexistência pode empobrecer ou embrutecer essa linguagem.

Outras culturas, outras cidades, têm demonstrado que sem a praça o povo não é sujeito direto de sua história. Grandes manifestações políticas do mundo se dão nas praças, onde o povo, com sua presença física, com o seu corpo, é capaz de demonstrar a sua vontade comum. Mesmo nos países em que a tradição ocidental democrática é fraca. Praça da Paz Celestial, Pequim; praça Tahrir, Cairo; praça Taksim, Istambul. O nome dessas manifestações era o nome das praças.

Na floresta de signos urbanos, o espaço público de uso comum, onde os cidadãos encontram as condições físicas de livremente se ver e se encontrar, é o princípio civilizador que distingue a urbs da civitas. A praça é uma essência, onde cidades desenvolvem suas potencialidades e sua vocação original. Se a rede social pode empobrecer ou embrutecer a linguagem é porque antes algo se partiu. Mas sem linguagem não há cidade. Sendo a língua a base da linguagem, como a arquitetura é a base do urbanismo e da urbanidade, sobre as pedras da língua assenta-se a arquitetura da linguagem. Com as pedras da arquitetura se faz o tecido da cidade, signos plurais definidores de seu caráter. Cidades são o humano refúgio das agruras da natureza. A natureza não é um lugar humano, o lugar humano é a cidade.

A praça vazia, a rede social congestionada. É preciso restaurar a arte da conversa como se restaura a Santa Ceia de da Vinci. É uma grande missão humana hoje. Restaurar a arte da conversa, no plano familiar e no plano político. Teatro, cinema, literatura discutem os novos problemas criados pela ciência na sociedade de massas, inclusive o da manipulação publicitária. A invenção da psicanálise tem significado profundo na cultura, assim como teve a invenção da perspectiva por Brunelleschi no Renascimento. Ambas aprofundam o olhar humano na direção da busca da liberdade individual.

Regimes totalitários odeiam a praça, estejam à direita ou à esquerda do arco político convencional. Basta lembrar a doutrina de Lênin sobre "a consciência vinda de fora", onde intelectuais superiores definem o destino das massas. Em cima, os dirigentes; embaixo, os "cidadãos comuns" que sustentam o Estado e devem obedecer calados ao governo que controla os impostos sem prestar contas. Fora dos muros dos palácios, o povo observa o antro de palacianos privilegiados, áulicos operadores do poder do Estado.

A praça é o lugar onde o povo fala. A praça é uma invenção da democracia. Escrevendo do Recife de 1864, o jovem Castro Alves assim sentia simbolicamente as praças de seu país:

Quando nas praças se eleva
Do povo a sublime voz...
Um raio ilumina a treva [...]
Que o gigante da calçada
De pé sobre a barrica
Desgrenhado, enorme, e nu... [...]

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!
(Castro Alves, O povo ao poder)

 

Referências

Berman, M. (2009). Um século em Nova York: espetáculos em Times Square (R. Eichenberg, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Holanda, S. B. de. (1995). Raízes do Brasil (26ª ed.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
JORGE RICCA JUNIOR
Rua Corinto, 739, Bloco B, Ap. 124
05586-060 – São Paulo – SP
tel.: 11 3105-6118 r123 / 99551-0894
E-mail: riccajunior@yahoo.com.br

Recebido: 18/11/2013
Aceito: 22/11/2013

 

 

* Arquiteto urbanista formado pela Universidade de São Paulo, trabalha na Prefeitura da Cidade de São Paulo.