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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016
CONTRAPONTO
Tatuagem, linguagem artística e doença psicossomática
Tattoo, artistic language and psychosomatic disease
Jorge C. Ulnik
Membro efetivo e didata da Asociación Psiconalítica Argentina (APA). Professor de Fisiopatologia e Enfermidades Psicossomáticas (Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires). Professor adjunto de Saúde Mental (Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires)
RESUMO
Tatuagem, linguagem artística e doença psicossomática A discussão sobre o sentido dos transtornos somáticos e a capacidade simbólica dos pacientes psicossomáticos, quando dicotomizada (simbolizam X não simbolizam), veda a noção de que existem diferentes níveis de simbolização. Não importa se o nível mais básico não mereceria ser chamado de simbolização, ou se nossa concepção em camadas ou níveis impede-nos de diferenciar de modo taxativo símbolo e signo. O que importa é que as analogias e as equivalências adquirem um peso enorme quando a distância entre representação e percepção diminui e passa a ocupar um lugar essencial, de um terceiro elemento - "o interpretante", que interage com os anteriores, modificando-os. Consideramos que o estudo das tatuagens nos mostra 1) o quanto é importante para os homens levar marcas no seu corpo, marcas que podem ter significados muito distintos; 2) comparadas aos fenômenos psicossomáticos, as tatuagens e escarificações são o efeito da intervenção de um agente - o tatuador - sobre corpos já dados, ao passo que nas manifestações psicossomáticas o agente parece intangível e a constituição do corpo ainda não terminada. A arte representacional fornece modelos, assim como as tatuagens, que servem para compreender como o psíquico se faz representar pelo somático e vice-versa. Assim como a pintura de cada escola ou de cada cultura tem seu próprio estilo, as pessoas e as famílias também têm um estilo próprio de adoecer. O estilo de falar e o de adoecer às vezes diz tanto quanto as palavras propriamente ditas, e faz parte da maneira que cada um tem de representar.
Palavras-chave: Tatuagem. Representação. Fenômeno psicossomático. Níveis de simbolização.
SUMMARY
The discussion of the meaning of physical disorders and the symbolic capacity of psychosomatic patients when dichotomized (symbolize X does not symbolize), precludes the notion that there are different levels of symbolization. No matter if the most basic level did not deserve to be called symbolization, or if our design in layers or levels prevents us from differentiating exhaustively symbol and sign mode. What matters is that the analogies and equivalences acquire an enormous weight when the distance between representation and perception decreases and occupies an essential place, a third element - "the interpretant", that interacts with the previous ones, modifying them. We consider that the study of tattoos shows 1) how important it is for humans to take marks on his body, brands that can have very different meanings; 2) compared to psychosomatic phenomena, tattoos and scarification are the effect of the intervention of an agent - the tattooist - on bodies already given, while in the psychosomatic manifestations the agent seems intangible and the constitution of the body not finished. The representational art provides models, as well as tattoos, which are used to understand how the psychic is represented by somatic and vice versa. Just as the painting of each school or each culture has its own style, people and families also have their own style of getting sick. Just as the painting of each school or each culture has its own style, people and families also have their own style of getting sick. The style of speaking and of getting sick sometimes says as much as the words themselves, and it is part of the way that each one has to represent.
Keywords: Tattoo. Representation. Psychosomatic phenomena. Levels of symbolization.
O culto narcisista à aparência do corpo é uma resposta a realidades sociais, mas também à necessidade de controlar e construir aquilo que o corpo representa inconscientemente: o corpo pode ser experimentado como algo aterrador, fora de controle ou desagradável, dependendo de sua história de desenvolvimento. E a verdade mais dura de aceitar é que, independentemente das pressões externas, o corpo - seja ele de homem ou de mulher - é algo difícil de se integrar à experiência subjetiva de quem se é, porque é a evidência menos controversa de nossa dependência radical e de nossa impotência: tanto a possibilidade de se autoengendrar quanto a imortalidade estão - ao menos por enquanto - fora de nosso alcance (Lemma, 2010, p. 14).
Há quase tantas definições de corpo como correntes psicanalíticas e filosóficas; na elaboração de Freud, não existe uma categoria homogênea para significar o corpo (Assoun, 1998) e não há nenhuma no conjunto de autores pós-freudianos.
Existe um corpo material com que nascemos que vai crescendo e mudando no decorrer do tempo. Simultaneamente, existe uma representação do corpo, imagem do corpo ou esquema corporal - prefiro usar esses termos como sinônimos, embora não coincida com F. Dolto -, que deve ser adquirida e construída e que pode ser inferida das palavras, da conduta, da sexualidade e das produções de todo tipo, sejam elas artísticas ou não, geradas por cada um. A sexualidade, entendida em sentido amplo, afeta um e outro, o corpo material e a imagem do corpo, que interagem permanentemente, modificando-se de modo recíproco. Surpreende comprovar quanto o corpo material muda pela interação com a imagem do corpo. Esta última também muda pela influência das modificações no corpo material, mas isso não é tão surpreendente, ainda que implique que este tenha uma capacidade engendradora, pulsante, que Freud relacionou com a pulsão e com o id e que Assoun definiu como "físico".
Freud descreveu a influência mútua entre psique e soma quando enunciou que percorrem "vias de influência recíproca" (Freud, 1905/1980). Ele também mencionou pela primeira vez a existência de um "encontro entre o psíquico e o somático" (Freud, 1893-1895/1980) em estudos sobre a histeria. Essas vias também possibilitam pensar a relação entre a arte e a psicossomática.
Poderíamos sintetizar dizendo que há um corpo físico, material, fora do campo das representações psíquicas, e há um corpo erógeno, libidinal, dentro do campo das representações. Mas se levarmos em consideração a contribuição de Assoun, que chama de "físico" um princípio de geração, ativação ou de crescimento de algo material, podemos pensar, junto com o autor e com Freud, que "existe um efeito plástico ativo do ato inconsciente sobre os processos somáticos" (Assoun, 1998, p. 25), e, ao mesmo tempo, que os processos somáticos poderiam produzir um efeito plástico ativo que se manifesta como representações artísticas ou que desempenha funções parecidas.
A representação do corpo pode ser construída com os estímulos sensoperceptivos, os significantes que o nomeiam e a imagem especular própria e do semelhante. Se não forem bem articulados, o efeito pode ser uma identidade com base em apenas um dos muitos elementos que a compõem, por exemplo: "dói, logo existo", "me nomeiam, logo existo", ou "olham para mim, logo existo".
O que é representar? De acordo com Green, "representar é fazer presente na ausência aquilo que é perceptível, e, portanto, deve ser reproduzido pela psique". Representar é também associar, enlaçar e estabelecer relações. O mesmo autor afirma que representar é projetar na medida em que significa tornar possível, criar uma virtualidade futura. Por último, representar também é o exercício da subjetividade que toma posição e se estatui (Green, 2005, p. 147).
Para Green, o campo da representação se estende por três espaços diferentes, que se relacionam com três dimensões fundamentais da representação: o corpo, o mundo e o outro. Como são heterogêneos, planteiam a problemática da dimensão espacial da representação, porque a representação os atravessa e os inclui num movimento que os transcende.
Para transformar as representações em que vamos nos formando, temos que as investir. Se negamo-nos a conceder valor a elas, ou se são demasiado dolorosas, não conseguimos reprimi-las ou nos livrar de seu domínio, a repressão falha e a diferença entre representação e percepção deixa de existir (Green, 2005, p.152). Quando isso acontece, o mundo, o corpo e o outro se misturam, ativando fontes semióticas originárias. "O significado dos objetos é experimentado como inseparável das qualidades sensuais que podem ser percebidas na sua superfície" (Meltzer, 1975, citado por Anzieu, 1987a), o que deveria ser, por exemplo, no caso da pele, promoção e transformação de experiências táteis concretas em representações de base, cujo fundo podem-se estabelecer sistemas de correspondência intersetoriais, termina transformando-se em sistemas de correspondência intersetoriais que vão gerar experiências táteis concretas (Anzieu, 1987a, p. 149).
O conceito hegeliano de Aufhebung1 convém especialmente desde o ponto de vista de Anzieu para descrever o estatuto dos sinais ecotáteis que são, ao mesmo tempo, negados, superados e conservados (Anzieu, 1987a, p. 165).
Os níveis de simbolização
A eterna discussão sobre o sentido dos transtornos somáticos e a capacidade simbólica dos pacientes psicossomáticos, quando dicotomizada (simbolizam X não simbolizam), em meu entendimento, veda a noção de que existem diferentes níveis de simbolização. Não importa se o nível mais básico não mereceria ser chamado de simbolização, ou se nossa concepção em camadas ou níveis impede-nos de diferenciar de modo taxativo símbolo e signo. O que importa é que as analogias e as equivalências adquirem um peso enorme quando a distância entre representação e percepção diminui e passa a ocupar um lugar essencial, de um terceiro elemento - Peirce chama-o de "interpretante" -, que será aquele que determina a posteriori de que classe de símbolo ou de signo estamos falando. O interpretante não é uma pessoa que interpreta, mas um novo signo, que interage com os anteriores, modificando-os (Deladalle, 1996).
No capítulo "Arcimboldo, ou o retórico e o mago", Roland Barthes (1986) descreve a diferença entre a equivalência do ser e a equivalência do fazer. Por exemplo, em algumas cabeças pintadas pelo artista italiano, a carne de um pequeno corpo "faz" (fabrica, produz) a orelha do tirano, uma fruta "faz" um nariz etc. O modelo de Arcimboldo se parece muito mais ao das tatuagens que ao da linguagem comum.
Vejamos o seguinte modelo, que explica os diferentes significados que as pinturas de Arcimboldo evocam: nível 1: uma pera, uma cenoura, uma maçã etc.; nível 2: um rosto. Nível 3: o rosto de alguém conhecido (Calvino, ou qualquer outro exemplo); e nível 4: a primavera.
Para Barthes, o grande segredo da semântica viva é o escalonamento de articulações.A combinação de elementos insignificantes produz o nascimento do significado. Mas a combinação, sozinha, não gera a criação do sentido: se deixamos de lado nossa própria percepção, retirando-nos um pouco da pintura, podemos engendrar um novo significado a partir dela, combinando os elementos em outro nível. O deslocamento do autor ou do intérprete faz parte da essência da obra. Um grande exemplo é a cabeça reversível de "O jardineiro", que se transforma em uma tigela de vegetais ao ser invertida, ou se a observamos de cabeça para baixo.
Às vezes seu trabalho é tão audaz que o procedimento necessita da equivalência ao fazer: por exemplo, quando o amontoamento de voltas de uma corda com muito esforço recorda, e desse modo "faz", "fabrica" ou "produz", o franzimento das rugas humanas (Barthes, p. 142).
Se extrapolamos isso no nosso trabalho como psicanalistas, a técnica arcimbolesca se torna útil. Por exemplo, quando combinamos intencionalmente o corpo, o mundo e o outro - as três dimensões da representação que Green considera fundamentais -, "fazemos" um significado que talvez antes não existia. Para isso, utilizamos como elementos as "frutas", e os "objetos" do paciente, incluindo seu corpinho de menino e suas partes naturais, tanto as sãs quanto as doentes. Mesmo que o produto dessa combinação, feita de deslocamentos e analogias, seja um significado que não provém inteiramente do psiquismo do paciente, isso não quer dizer que ele é alheio ou que não funcione como ferramenta terapêutica.
Por exemplo: uma paciente de personalidade perfeccionista e exigente, que era professora aposentada, estava em diálise e, contudo, conservava zelosamente a "sensação de urinar". Os seus rins já não eram funcionalmente úteis, e as poucas gotas ou os mínimos jatinhos de urina que eliminava não eram produto de uma filtragem eficiente. Mas ela não queria perder essa sensação, guardava-a como uma menina guarda "para depois" um doce que naquele momento não pode comer. Após decidir aceitar um transplante, manifestava grande ansiedade e temor de receber um rim que não fosse bom. A minha resposta foi: - "Não se preocupe tanto. Se lhe derem um rim que estiver funcionando mais ou menos, peça ao seu jatinho, esse que a senhora tem guardado há anos para essa ocasião, que ele ensine ao rim transplantado como trabalhar direito".
Tanto o paciente como o médico pode fazer parte do status da doença, porque esta é uma composição, do mesmo modo que as pinturas de Arcimboldo o são. As lesões, os sintomas, suas exteriorizações, são as partes dessa composição. Ao mesmo tempo, cada parte é também uma nova composição, e, dependendo do modo como se juntam as partes, o resultado será uma doença ou a outra.
A pele como órgão e a localização das lesões que possa ter também constituem um conjunto. Desse modo, "psoríase" é uma cabeça de Arcimboldo e seu tratamento será diferente se a visão do paciente é uma ou outra. Mais ainda, as analogias de Arcimboldo e a teoria de Roland Barthes nos ensinam que o observador (o médico, o paciente ou o corpo teórico da medicina etc.) não constitui um observador que vem de fora, mas sim que é parte da doença a descrever, diagnosticar e tratar. Isso ocorre na mesma medida em que o observador, dependendo da distância que tome (de sua cultura, suas preferências etc.), é parte da obra de arte que observa.
Portanto, há um escalonamento de articulações formando parte não apenas de nossa complexa psicologia, mas também de nossa complexa biologia. Até se poderia pensar que há uma espécie de "superarticulação" que une psique e soma, fazendo surgir certa "entidade pensante". Esta entidade não é o resultado final ou o sujeito em si, mas a fábrica de significados que trabalha, ora subindo escalões feitos de símbolos, ora descendo escalões feitos de signos, combinando ao mesmo tempo os diferentes níveis em curtos-circuitos semânticos, como os que realiza Arcimboldo quando transforma uma berinjela em um nariz, e a combinação de frutas em uma estação do ano, ou quando desloca os dentes de um tubarão para a boca de um ser humano, deixando intactos os dentes (porque os dentes são dentes, afinal), mas, saltando de um reino a outro, sem avisar, como fazem os médicos quando curam um coração humano com uma válvula de porco.
Seguindo esses deslocamentos, analogias e curtos-circuitos, o paciente e o médico estabelecem equivalências: às vezes, a equivalência do ser "O linfócito é killer", e, outras vezes, a equivalência do fazer: por exemplo, uma mulher jovem padecia de uma lesão de eczema no punho, no mesmo lugar do corpo em que sua mãe tinha uma tatuagem do campo de concentração no qual havia estado reclusa. A imagem da tatuagem de um campo de concentração no punho da mãe, e a história de sofrimento que essa mãe contou a sua filha, fazem, geram, criam, um sofrimento equivalente na filha, que, por sua vez, faz uma lesão de eczema no mesmo lugar, mas em seu próprio corpo.
O verbo fazer aqui é enganador porque poderia sugerir que as pessoas fazem um câncer ou uma lesão de eczema com sua vontade. Que essa vontade não seja consciente não muda muito as coisas, porque soma, ao sofrimento próprio da doença, o sentimento de culpa por senti-la como uma criação própria e por não estar resolvendo o problema por via da análise. Consequentemente, impõe-se diferenciar este efeito de composição de uma doença somática e, por exemplo, a ação deliberada de uma tatuagem ou uma autoescarificação.
As tatuagens e escarificações são o efeito da intervenção de um agente - o tatuador - sobre corpos já dados. Em fenômenos psicossomáticos o agente parece intangível e o corpo não constituido inteiramente.
Essa última ideia, a de um corpo não constituído, apesar da existência inegável de um corpo material, é a que leva Carvalho Neto (2011), em seu trabalho de pesquisa sobre vitiligo, intitulado "Um corpo ad hoc", a se perguntar: pode ser o vitiligo análogo ao produto da agressão criadora de um artista plástico?
No vitiligo há uma autoagressão que implica destruição dos melanócitos. E se a agressão fosse equiparável à agressão do cinzel sobre um bloco de mármore? E se fosse uma agressão que engendrasse um contorno e não uma agressão que aniquila um contorno já constituído? (Carvalho Neto, 2011).
Citando um verso de Borges, cego, Carvalho Neto afirma que as lesões psicossomáticas da pele poderiam ser o efeito de uma cegueira diante do espelho - para ele, o de Lacan -, e assim enuncia sua hipótese mais forte: o vitiligo faz um corpo num sem-corpo e existem dois tipos de vitiligo: vitiligo com corpo e vitiligo sem-corpo (2011).
E o que acontece com os pacientes que desenvolvem vitiligo e logo se tatuam para cobrir as suas manchas? Será que houve primeiro um engendramento de um corpo pelo vitiligo para que mais tarde o paciente possa tatuar esse corpo? (Carvalho Neto, 2011, p. 77).
Na minha opinião, o vitiligo não faz um corpo, ao contrário, denuncia uma falta que tenta apagar. Nesse sentido, sim, concordo com Carvalho Neto quando, referindo-se à falta de angústia e de demanda espontânea nos pacientes derivada do vitiligo, diz: há quem não precisa olhar seu próprio corpo para urdir a imagem do seu sofrimento. Mas há outros que escrutam a carne com seu olhar para encontrar uma imagem de sua angústia. Se o vitiligo garante uma encenação, por que enunciar a angústia? (Carvalho Neto, 2011, p. 81).
Acho a ideia de doenças em um corpo e de doenças em um sem-corpo útil porque nos leva a indagar sobre que base a doença está instalada, qual é o corpo que está sendo atacado ou curado, ou, por exemplo, quais funções ou partes do corpo são invadidas, ou construídas pela metade, ou carentes de representação etc.
Por exemplo, Anzieu descreve uma série de "representações formais" que estariam alteradas especialmente na neurose narcisista e em estados borderline. A alteração levaria a confusões de dentro-fora, próprio-alheio, que seriam uma fonte permanente de conflitos e ansiedades. Para o tratamento desses pacientes seria necessário ajudá-los a construir os tipos de representações das quais carecem, o que frequentemente implica mais trabalho sobre o continente do que sobre o conteúdo, o que significa não focalizar a interpretação de fantasias, e sim o exercício das funções psíquicas carentes ou deficitárias, como ajudá-los a estabelecer limites e configurar espaços, discriminar o próprio do alheio, integrar "partes" da personalidade, adquirir noção de processo etc. (Anzieu, 1987a).
Em uma pintura famosa de Dalí - Woman at the Window at Figueres (1926) -, mostra-se a criação de espaços de dentro e de fora, onde a mulher, olhando pela janela, está claramente dentro de um espaço cuja janela abre-se a um segundo espaço, que fica fora.
Em contraste, um paciente com psoríase fez uma obra na qual o interior e o exterior são ambíguos e os personagens humanos estão metade dentro e metade fora, como querendo se arraigar e se segurar para evitar que o espaço não os leve ou sugue de um lado para o outro (figura abaixo).
O seguinte é um desenho de uma criança que permanecia "conectada" com a história de um filho morto que seus pais não haviam conseguido elaborar. Note-se como a lâmpada tem a mesma forma que as árvores do quadro, e como na "Rosa Púrpura do Cairo" se introduz na cena onde está de cor preta o menino perdido (figura abaixo).
O estudo das tatuagens nos mostra o quanto é importante para os homens levar marcas no seu corpo. Marcas que significam não só um ornamento, mas também um sinal de identidade, de pertencimento a um grupo, de proteção contra os perigos que ameaçam e também de materialização ou de projeção sobre o corpo das próprias origens e paixões. As palavras adquirem seu sentido mais concreto, dependendo do que está escrito ou desenhado e de sua localização. Ocasionalmente, procura-se uma função narrativa ou comemorativa para a qual as palavras não são suficientes. A intenção parece ser a de suprir uma função faltante ou complementar uma função existente para que seja real e permanente.
O estudo das tatuagens nos ajuda a compreender a relação entre o corpo material e a imagem do corpo, assim como a existência de corpos semiconstruídos, duplicar, parasitados etc.
Além disso, enfrentamos o caso de pacientes que combinam as marcas de sua doença com tatuagens que são feitas sobre elas. Tal como esta psoríase "estrelada" (figura abaixo).
As doenças também deixam marcas no corpo. Elas não são o produto da vontade do paciente, mas podem obter uma relevância ou um sentido similar ao das tatuagens.
A tatuagem substitui uma superfície por outra, mas o faz de uma maneira que joga com o conhecimento de que a pele tenha sido penetrada, na medida em que a técnica da tatuagem requer que o pigmento seja injetado por baixo da superfície da pele. Assim, o que parece ser depositado na superfície da pele, na realidade é depositado embaixo dela. O corpo então lardeia, ostenta, uma superfície que foi incorporada dentro dele como uma interioridade secundária. E na medida em que a tatuagem é indelével, um jogo ambivalente entre injúria e autodefesa se desenvolve. Uma vez marcada, a pele terá perdido a sua clareza imaculada. Mas a permanência da mancha-ornamento dará uma garantia de continuidade ou de proteção diante dos assaltos do mundo exterior e uma espécie de pausa imaginária contra a flacidez e as rugas da pele próprias do processo de envelhecimento. A tatuagem, que é para a vida toda, será um assalto letal contra a pele, mas também terá um significado de supervivência criogênica (Connor, 2004, p. 64).
O psicossomático na arte representacional: motivações compartilhadas
Para complementar esses temas, vale a pena repassar algumas motivações representacionais, comunicativas e simbólicas, que determinaram a evolução da arte representacional.
Por exemplo, para Leonardo, a pintura tinha um objetivo preponderante: "Os elementos das cenas pintadas devem fazer com que aqueles que as contemplam experimentem as mesmas emoções que aqueles que estão representados na história; quer dizer, sentir medo, pânico ou terror, dor, pesar e lamento ou prazer, felicidade ou alegria [...]" (citado por Gombrich, 2003, p. 18).
Para que a ficção possa ser vivida e ser convincente, mesmo quando evoca um acontecimento imaginário, deve ter coerência interna e consistência situacional. É por isso que Leonardo insistia em pintar um cenário espacial consistente: "um muro, um espaço, uma cena", e não dispor os personagens uns em cima dos outros (Gombrich, 2003, p. 16).
Quando um paciente pinta uma tatuagem ao redor ou sobre uma lesão de vitiligo, o que está buscando não é só cobrir sua lesão ou dissimulá-la, mas, sim, dar-lhe coerência interna e consistência situacional. Isso pode ser buscado pictograficamente ou discursivamente, homologando sua forma a algo conhecido, ou inserindo-a numa história, como quando uma paciente com psoríase chamava de "a velha" sua lesão mais antiga, que resistia a todos os tratamentos do mesmo modo que a sua mãe não se curava da dependência de álcool. Ou talvez se possa dizer o mesmo de outra paciente com uma úlcera crônica que chamava de "a ferida" ou "o furo", ao mesmo tempo que comentava irritada que não havia tido pai porque o seu a abandonou junto à sua mãe e irmãs de um dia para o outro e nunca pôde obter dele uma desculpa ou uma explicação satisfatória.
Há uma relação muito interessante entre a evolução da arte e o que podemos observar no relato e na conduta dos pacientes. Há pacientes que são esquemáticos, estruturados e compartimentados. Compartimentam a vida, os médicos, os tratamentos, seus âmbitos de trabalho, familiares, afetivos, e até mesmo o seu próprio corpo. Mas ao mesmo tempo podem ser contraditórios e ambíguos, sobrepondo ou alternando seus compartimentos. Esses pacientes aproveitam as partes de seu corpo, ou a forma como a medicina divide seu funcionamento e sua patologia, para representar a si mesmos ou seus problemas. São como os pinto-res que pintam o quê e não se preocupam com o como, razão pela qual as cenas se sobrepõem ou coexistem uma sobre a outra sem coerência, ou se compartimentam em células e sequências divididas, que permitem contar muitas coisas que aconteceram ao longo do tempo sem preocupar-se com pintá-las num cenário que lhes dê consistência global. As células fazem as vezes dos compartimentos que criam os pacientes quanto a seus afetos e seus fatos vitais. Às vezes os pintores resolviam os seus problemas de coerência apoiando-se no entorno.
Onde se faça necessária uma sequência de cenas, a resposta mais fácil a esse dilema viria proporcionada ainda pela articulação arquitetônica real de um muro ou pela divisão em lentes cada uma das quais podia abrigar uma cena com seu próprio espaço, como acontece com o quarto de Domenico di Bartola no Hospédale Della Scala de Siena. (Gombrich, 2003, p. 34)
A ideia que desejo expressar é que os sentimentos, o discurso e o estilo dos pacientes não são alheios às motivações representacionais, comunicativas e simbólicas que determinaram a evolução da arte representacional. Por isso, quando os pacientes querem mostrar suas lesões ou quando eles mesmos as veem no espelho e se confrontam com elas, despertam neles as mesmas exigências de coerência, consistência e expressão comunicativa que motivam os artistas na hora de criar ou de interpretar os desejos de seus mecenas. Isso gera uma complexa e rica interação entre o entorno, a pressão social e a forma de vida e do corpo do paciente e o de sua família.
Com o método pictográfico, a imagem fica reduzida a símbolo (por exemplo, a imagem de uma caixa flutuando na qual há um personagem, identifica-se com Noé, e não importa se a arca é menor que ele), e o problema dos espaços incoerentes que propunha Leonardo desaparece por completo.
Segundo Gombrich, Giotto introduziu uma distinção visual entre simbolismo e narração:
Em seus murais da capela dos Scrovegni, as imagens didáticas dos vícios e das virtudes estão repartidas; embaixo, em tons de cinza, como que sugerindo estátuas fictícias no lugar de seres de carne e osso; enquanto que as histórias da parte de cima estão relatadas com todos os recursos deste novo realismo. (Gombrich, 2003, p. 31)
Giotto introduziu, assim, o recurso que Sven Sandström denominou de níveis de irrealidade, que eu relacionaria com os níveis de simbolização.
"A decoração, a narração sequencial e a lógica dramática exigem de cada uma delas um modo diferente de olhar" (Gombrich, 2003, p. 38).
A exigência de narrar uma única história em cada muro, seguindo a lógica de Leonardo: um muro, um espaço, uma cena, foi burlado, de certa forma, mediante o ardil de incluir um quadro dentro de um quadro, como quando se incluía numa cena reprodutora de personagens reais um friso contendo cenas mitológicas ou representações que materializavam abstrações. Do mesmo modo, quando uma lesão é real e responde a uma explicação médica, genética, hereditária, infecciosa etc., isso não exclui a possibilidade de incluir uma história dentro de outra história, o que quer dizer que um paciente "pinte" dentro da sua lesão o "friso" da sua fantasia mitológica ou, inclusive, da sua história real; e que isso determine em grande medida a sua conduta e os seus sentimentos para com a sua doença ou para com uma lesão em particular.
Dessa forma, podemos encontrar na clínica várias lógicas simultâneas: a) a lógica do friso dentro da cena; assim como b) a lógica dos níveis de irrealidade e as inclusões recíprocas (como ao ver uma imagem do televisor no telejornal, multiplicando-se a mesma imagem que inclui a si mesma).
A diferença de uma e outra é que na primeira o friso está incluído como fantasia de outro nível de realidade na cena principal, e, no segundo caso, o das inclusões recíprocas, o sujeito incluído num quadro-lesão pode ser o mesmo portador global de toda a doença, destruindo a noção de que espacialmente isso é impossível pelas leis do continente-conteúdo, e voltando dessa maneira a certas características do pictograma nas quais a arca de Noé pode ser menor em tamanho que Noé, ainda que todos saibamos que, além de Noé, havia casais de todos os animais da natureza.
O estilo
Assim como a pintura de cada escola ou de cada cultura tem seu próprio estilo, as pessoas e as famílias também têm um estilo próprio de adoecer.
Tomaremos como exemplo o estilo egípcio. Gombrich, em seu livro La historia del arte, mostra a pintura mural El jardin de Nebamun, de 1400 a. C., que representa um jardim com uma lagoa. Se tivéssemos de desenhar um tema semelhante buscaríamos o ângulo de visão mais propício. A forma e o caráter das árvores apenas poderiam ser vistos com clareza pelos lados; a forma da lagoa, unicamente por cima. Esse problema não preocupou os egípcios: representariam a lagoa simplesmente como se estivesse sendo vista por cima, e as árvores, pelo lado. Os peixes e os pássaros na lagoa dificilmente seriam reconhecidos se estivessem sendo vistos por cima, assim, pois, os desenharam de perfil. Nessa simples pintura podemos compreender facilmente o procedimento do artista.
Muitos desenhos infantis aplicam um princípio semelhante. Cada coisa teve de ser representada em seu aspecto mais característico, como "de memória". El jardin de Nebamun mostra, no caso de uma paisagem, os efeitos que produziu essa mesma ideia na representação do corpo humano. A cabeça se via muito mais facilmente em seu perfil, assim, pois, a desenharam de lado. Mas se pensamos nos olhos, não os imaginamos como se estivessem sendo vistos de frente. De acordo com isso, olhos inteiramente frontais foram postos em rostos vistos de lado. A metade superior do corpo, os ombros e o tórax, são observados muito melhor de frente, já que assim podemos ver como pendem os braços a partir do tronco. Mas os braços e os pés em movimento são observados com clareza muito maior lateralmente. Deve-se a essa razão o fato de que os egípcios apareçam tão estranhamente planos e contorcidos. Além disso, os artistas egípcios consideravam difícil representar o pé esquerdo visto de fora, preferiam perfilá-lo claramente com o dedão em primeiro lugar. Desse modo, ambos são pés vistos de lado, parecendo possuir a figura do relevo dos pés esquerdos. Não se deve supor que os artistas egípcios criam que as pessoas eram ou aparentavam ser assim, mas sim que, simplesmente, limitavam-se a seguir uma regra que lhes permitia inserir na forma humana tudo quanto consideravam importante. A verdade é que a arte egípcia não se baseia no que o artista poderia ver num momento dado, mas sim no que ele sabia que pertencia a uma pessoa ou a uma cena.
Assim também atua o cérebro quando representa o membro fantasma, negando-se a reconhecer a perda de algo que pertence ao seu portador. O cérebro também parece agir "de memória". E é assim como Ramachandran ideou um sistema de espelhos, pelo qual os pacientes com membro-fantasma doloroso, aqueles em que dói o membro que já perderam, depois de um longo período sem podê-lo mover, recuperam-se quando, por meio de uma ilusão de ótica, veem mover-se no espelho o membro que já não têm, e isso faz com que desapareça a dor!
Também Montagna (2000) conta num trabalho que um paciente com ceratocone estava por ficar cego porque o seu sistema imune recusava os transplantes de córnea. Esse paciente começou a contar as suas aventuras de viajante numa sessão. Ao detectar um estilo português no relato, Plínio o relacionou com Camões, o poeta português, e assim desentranhou uma história representada em sua recusa aos transplantes de córnea, que conectava Camões com Inês de Castro e as recusas de córnea com a mãe morta do paciente.
O estilo de falar e o de adoecer, às vezes, diz tanto quanto as palavras propriamente ditas, e é parte da maneira que cada um tem de representar.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
JORGE ULNIK
Rua Malabia, 2255/2
C1425 Buenos Aires Argentina
jorgeulnik@gmail.com
Recebido 10.04.2016
Aceito 04.06.2016
1. Segundo Hyppolite (1966, p. 860), o conceito hegeliano de Aufhebung quer dizer ao mesmo tempo negar, suprimir e conservar. Deve-se lembrar que Freud dizia que a negação é uma espécie de Aufhebung (cancelação) da repressão, mas não por isso uma aceitação daquilo que fora reprimido, dado que o essencial da repressão - impedir o desenvolvimento do afeto - persiste.