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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

EDITORIAL

 

Pensamento clínico e cultura do espetáculo: a questão do íntimo

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Como sabemos, a revista ide nasceu como um canal para a comunicação do trabalho de psicanalistas, e também de outros profissionais, interessados em considerar as relações entre a psicanálise e a cultura. Mas, o que se entende por cultura? De forma abrangente, pode-se dizer que "cultura é o modo de vida do ser humano, entendido como animal simbólico" (Cassirer, 1972, p. 51). E, ainda que seja geral, tal concepção aponta para o particular, pois a palavra modo significa a particularidade do sistema de regras, historicamente criado, que define as relações sociais, os hábitos e objetos, as formas de pensar e sentir, de ação e expressão, em suma, as condições materiais e simbólicas da existência dos indivíduos em uma dada sociedade. Nesse sentido, como definir o modo de vida dos indivíduos no contexto da sociedade atual? No livro A sociedade do espetáculo, Guy Debord escreve: ''Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (1997, 13). Lançado na França em 1967, esse livro logo se tornou referência para a compreensão da cultura contemporânea, que se caracteriza pela supremacia da imagem em relação a qualquer outra forma de comunicação. Entretanto, como se define o espetáculo? Debord é preciso: "não é um conjunto de imagens, mas uma relação entre pessoas mediada por imagens" (p. 14). Nesse contexto, a imagem é um dispositivo cuja função é mediar o controle das formas de perceber o mundo e de interagir com ele. Portanto, no mundo contemporâneo, a imagem é uma característica essencial da cultura, não por acaso chamada cultura da imagem, um modo de vida bastante ardiloso que engendra fenômenos sinistros com manifestações observáveis na clínica psicanalítica - por exemplo, a

supressão da personalidade que acompanha fatalmente as condições da existência submetida às nor-mas espetaculares, cada vez mais afastada da possibilidade de conhecer experiências autênticas e, por isso, de descobrir preferências individuais. Paradoxalmente, o indivíduo deve desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um mínimo de consideração. Essa existência postula uma fidelidade sempre cambiante, uma série de adesões constantemente decepcionantes, a produtos ilusórios [...]. A droga ajuda a pessoa a se conformar com essa organização das coisas; a loucura ajuda a evitá-la (Debord, 1997, p. 191)

Na cultura do espetáculo, em suma, privilegia-se a imagem em relação à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. O espetáculo é a forma que confere sentido a uma sociedade fragmentada, é uma forma sofisticada que levou ao extremo o fetichismo da mercadoria (Arbex Jr., 2001). E, nela, a imagem visual ocupa lugar de honra. No entanto, por que a imagem visual?

Deve-se entender que a sociedade do espetáculo significa, no século XX, o aperfeiçoamento da chamada "sociedade disciplinar" que se instaurou, no Ocidente moderno, a partir da segunda metade do século XVIII, com o projeto de converter os corpos humanos em corpos dóceis politicamente e úteis economicamente. A realização desse projeto aconteceu por intermédio do uso de um dispositivo óptico ("panóptico") cujo mecanismo não só foi incorporado pelas diversas instituições sociais, como também foi tacitamente assimilado pelos indivíduos. Michel Foucault aprofunda a análise desse projeto no primeiro volume de História da sexualidade - A vontade de saber (1976), verificando que, desde a era vitoriana, multiplicaram-se vertiginosamente os discursos sobre o sexo que, ao darem a este visibilidade, ampliaram o exercício do poder disciplinar sobre as formas de viver, de pensar, de sentir. Entretanto, já no começo do século XX, ao escrever Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade (1905), Freud examina o saber existente sobre as chamadas aberrações sexuais, interroga a sexualidade e conclui que esta é essencialmente desviante, aberrante e perversa. Quer dizer, Freud considera e, de certo modo, subverte o saber disciplinar de sua época no tocante à sexualidade, definindo o ser humano como um ser "perverso polimorfo". Porém, atualmente, referente às imagens produzidas pela cultura e reproduzidas pelos indivíduos, o que a psicanálise poderia fazer? O que seria possível dizer da intimidade das relações de nossos analisandos consigo mesmos e com os outros, no contexto do que se observa na clínica e para além dela, no mundo mais amplo em que vivemos nós e eles? Seria possível à psicanálise enfrentar a questão da intimidade no contexto da cultura da imagem, não se deixando capturar pela malha sedutora do espetáculo? Tais perguntas nos instigam a considerar as relações entre a clínica e a cultura do espetáculo.

É em direção a esse campo complexo que os autores enviaram seus artigos, recorrendo à especificidade do seu modo de pensar, se comparado ao praticado pelas demais ciências, ou seja, ao pensamento clínico, para refletir sobre certas temáticas. Nesse sentido, na abertura deste volume da ide, contamos com a entrevista realizada pela Associação de Membros Filiados da SBPSP com a psicanalista Marie Rose Moro, que enfatiza a necessária incorporação da cultura dos analisandos e dos analistas na clínica e na formação psicanalíticas. Essa proposição relaciona-se ao artigo seguinte, que considera como se processa uma conversa, qual o campo ontológico em que ela se fundamenta. E, a partir daí, os artigos se concentram, diferentemente, no modo como a intimidade se evidencia na clínica e nas relações interpessoais no mundo contemporâneo em que a mercantilização da subjetividade é uma questão. Em seguida, articulados à temática em pauta, no capítulo Contraponto, dois artigos apresentam perspectivas diferentes sobre temas atuais: privação, delinquência, direitos humanos e desigualdade social. E, continuando a linha editorial presente nos números anteriores da ide, seguem os demais capítulos - Outras pautas, Literárias e Resenhas -, que desdobram o campo de reflexão proposto neste número.

Esperamos que os leitores possam apreciar a leitura deste volume. E que a figura do circo, manifestação popular que ao longo do século XIX se tornou tão nobre quanto a ópera, encantando um crescente e respeitável público, digna de se fazer visível, por exemplo, na pintura de Georges Seurat, possa servir como contraposição à sedutora cultura do espetáculo que nos leva a participar dela sem crítica, portanto, sem vê-la.

 

REFERÊNCIAS

Arbex Jr., J. (2001). Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela.         [ Links ]

Cassirer, R. (1972). Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou.         [ Links ]

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

 

 

Comissão Editorial: João A. Frayze-Pereira (editor), Eliane Saslavsky Muszkat, Lecy Cabral, Leda Barone, Orlando De Marco, Rodrigo Lage Leite.

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