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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

O íntimo, o estranho e o duplo no mundo digital

 

The intimate, the stranger and the double in the digital world

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do GEPCampinas e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como ponto de partida "Be right back", um episódio do seriado Black Mirror, criado por Charlie Brooker, a autora considera, baseada nas formulações de Freud sobre o estranho e o duplo, como podemos nos relacionar com a morte e com a "vida" após a morte através do mundo digital.

Palavras-chave: Íntimo. Estranho. Duplo. Mundo digital.


SUMMARY

On the path of "Be right back", an episode of a TV series created by Charlie Brooker, the author considers the ways we relate with death and with "life" after death through digital world, based on the Freud's formulations of the strange and the double.

Keywords: Intimate. Strange. Double. Digital world.


 

 

"Be right back". Volte já.

Esse é o título do primeiro episódio da segunda temporada de Black Mirror, um seriado em exibição criado pelo inglês Charlie Brooker. Cada episódio tem um elenco diferente, um set diferente e um aspecto diferente da realidade, apresentando, por meio de ficção especulativa, temas sombrios e às vezes satíricos que examinam a sociedade moderna, especialmente no que diz respeito às consequências imprevistas das novas tecnologias.

O seriado Black Mirror explora o indivíduo atrelado à tecnologia, mas, ao fazer isso, vai além. Mostra, sobretudo, o lado estranho, sombrio e perturbador do ser humano, o unheimlich: "aquela categoria do assustador que remete ao conhecido, de velho, e há muito familiar" (Freud, 1919/1990, p. 277).

No episódio intitulado "Be right back", presenciamos o estranho familiar relacionado intimamente com o duplo, o indivíduo que se desdobra no seu duplo.

Algo tão fugidio que a ficção o demonstra melhor, pois o autor dispõe de mais meios para criação de efeitos de estranheza, sem a necessidade de submetê-los ao teste da realidade (Freud, 1919/1990).

 

Volte já

O episódio inicia mostrando um jovem casal, Ash (Domhnall Gleeson) e Martha (Hayley Atwell), mudando-se para uma remota casa de campo. Nos primeiros minutos nos deparamos com cenas corriqueiras de um casal criando uma intimidade. Ash sempre às voltas com o seu celular, distraindo-se com a possibilidade de compartilhar ideias e fotos, e Martha tentando ser ouvida. O casal no carro cantando em uníssono: "eu não quero ninguém, amor, se eu não posso ter você...". Na manhã seguinte, quando Ash vai devolver a van e Martha não pode ir, ele murmura: "vou dirigir o caminho inteiro sozinho, fazer o caminho de volta sozinho". Martha replica: "e eu vou ter que fazer o almoço sozinha". Há uma certa tensão criada pelo desejo de fazer tudo junto e de nunca perder um ao outro.

Nesses momentos, vemos a intimidade do casal sendo construída na impenetrabilidade, na crescente tensão criada pela constatação do estranho em si mesmo e no outro, e na singularidade de cada um. O estranho remetendo àquilo que é o mais intimamente familiar. O estranho garantindo o íntimo e vice-versa.

A vida corriqueira de Ash e Martha, retratada nos primeiros minutos, é interrompida na próxima cena. No dia seguinte, Ash sofre um acidente de carro e morre. Até aí, nada de novo.

São inúmeras as histórias de casais retratadas na literatura e no cinema, revelando, com lente de aumento, ora a quase total impenetrabilidade, a impossibilidade de comunicação entre eles, ora a crise insuperável ante a evidência cada vez mais nítida do estranho em si mesmo e no outro, ora a singularidade de cada um, que é vivida com ferocidade e destrutividade. Histórias de amor com finais trágicos, paixões que culminam em morte, histórias que retratam a morte dos amantes em pleno gozo da paixão e a ideia fantasiosa de se conversar com os mortos não são raras.

Já presenciamos mais de uma vez a história de amor e perda, mas a diferença no roteiro criado por Charlie Brooker é estar calcado em uma situação presente no mundo real, mais especificamente no alcance e na dimensão do mundo digital em nossas vidas, ou melhor, na "vida" após a morte.

O uso de redes sociais após a morte é um assunto que ganhou importância nos últimos anos, tanto que o próprio Facebook permite ao usuário apontar um "herdeiro", ou seja, alguém que poderá administrar seu perfil após sua morte, em vez de simplesmente manter a conta "congelada" ou ser desativada. Essa e muitas outras ideias fazem parte de um movimento que visa a "eternidade aumentada" e que tem como objetivo usar a inteligência artificial para converter rastros digitais de uma pessoa em um chatbot com personalidade, com capacidade de responder a perguntas e engajar-se num diálogo, imitando o estilo de conversação do indivíduo falecido (Pedreira, 2017).

Várias empresas, para atender à crescente demanda de proteção ao legado digital, oferecem uma espécie de conceito funerário do futuro. A Remember Me e o The Hereafter Institute, usando o Facebook de pessoas que já faleceram, produzem um vídeo com a história delas, tudo acompanhado de uma trilha sonora gerada exclusivamente a partir dos dados do falecido (Pedreira, 2017).

"Be right back" não efetua um rompimento absoluto com a realidade, mas beira seus limites, provocando, por isso mesmo, um estranhamento indefinível, diferente do sentimento de pânico diante de um fenômeno avassalador e catastrófico.

 

A "vida" após a morte

Depois da morte de Ash e após descobrir que está grávida, Martha reluta, mas experimenta um novo serviço online que permite que as pessoas permaneçam em contato com o falecido. Usando todos os últimos perfis de comunicação online e redes sociais de Ash, Martha pôde ressuscitá-lo virtualmente.

Ela carrega vídeos e fotos de Ash para o banco de dados do serviço, duplicando a sua voz para conversar com ele no celular. Martha se permite acreditar que está falando com seu parceiro morto, e nas semanas seguintes ela conversa com o Ash/digital quase sem parar, mantendo-o atualizado sobre a gravidez.

Quando Martha acidentalmente danifica seu celular e per-de temporariamente contato com o serviço, entra em desespero. Então, o Ash/digital a informa sobre o próximo estágio do serviço, que ainda está em fase experimental: um corpo feito de carne sintética em que o programa pode ser carregado.

Seguindo as instruções, Martha transforma um corpo branco sintético em um androide que se parece quase exatamente com Ash, só faltam características menores, como o cabelo facial e uma toupeira no peito. No momento em que o Ash/digital/androide é ativado, e após certa estranheza, Martha acaba aceitando a sua existência. Tempos depois fica incomodada, inquieta. Há um estranhamento no ar. Apesar de o androide satisfazê-la sexualmente, fica incomodada por ele fazer constantemente o que ela diz, sem questioná-la, e com a sua falta de emoção. Ele só expressa emoções quando ela pede.

A ausência de determinados hábitos e traços de personalidade que o verdadeiro Ash tinha, mas que não constavam no serviço, leva Martha a querer destruí-lo: "você é sinistro", ela diz.

O androide de Ash não sangra, age de forma programada no sexo e só se revolta quando solicitado por Martha. Ela não consegue lidar com o papel de administradora de um Ash/androide feito para apenas satisfazer seus desejos. Martha leva-o a um penhasco. Ela pede-lhe para pular e ele se recusa, pois, no mundo asséptico das redes sociais, Ash nunca demonstrou vontade de se matar.

 

Martha, Ash/androide e o narcisismo

A problemática do duplo tem sido representada e discutida sob diferentes ângulos: nos mitos, na religião, na filosofia, na literatura e na psicanálise (Bravo, 2000; Freud, 1919/1990; Rank, 1925/2013; Santos, 2009). Otto Rank esmiúça a questão do duplo no imaginário dos povos antigos através do folclore, histórias de magia, superstição, antigos costumes religiosos, e formula que o significado original do duplo nada mais é do que a referência à morte que constantemente ameaça a personalidade.

Para o homem primitivo, a perspectiva da morte, a consciência da efemeridade e da finitude do eu, que é difícil de ser admitida, levou à origem da crença na alma imortal, que é um dos fundamentos das tradições religiosas: "a crença na alma originou-se do desejo de vencer este medo, e daí sobreveio a divisão da personalidade em duas partes, uma mortal e outra imortal" (Rank, 1925/ 2013, p. 100).

Baseando-se no conceito de narcisismo elaborado por Freud em 1914, Rank articula o duplo com o temor do homem diante da ameaça de morte. Associa o duplo a uma perturbação da relação do sujeito consigo mesmo, seu anseio de uma imagem unitária de si mesmo, e à ameaça de despersonalização e aniquilamento.

Freud (1919), partindo das formulações de Rank, considera o duplo não só como uma negação da própria morte, mas também da castração e da impotência, evidenciando uma fragmentação da imagem narcísica. Na estranheza relacionada ao princípio de onipotência do pensamento, há uma supervalorização narcísica de seus próprios processos mentais, o que pode ser entendido como um mecanismo de defesa, como um modo de evitar o confronto com as limitações que a realidade impõe: a morte, a impotência, a castração.

"Volte já", no início, mostra Martha e Ash se havendo com a impossibilidade de sustentar a ilusão de uma imagem unitária que exclui qualquer possibilidade de dualidade: Ash às voltas com o seu celular, Martha tentando ser vista e ouvida, ele indo sozinho entregar a van e ela tendo que sozinha fazer o seu almoço. Não há, nesse início, nenhuma referência ao desejo de retorno ao Um com tentativas drásticas de reconfiguração da Unidade. É um casal reconhecendo, com certa frustração, a presença do Outro, distinto de si.

A morte de Ash ameaça a integridade de Martha. Ela hesita em seguir o conselho da amiga, também viúva, de recorrer a um aplicativo que permitirá a ela conversar com o falecido. Ante a intensa dor da perda, o "Volte já" se tornou implacável. Martha utilizou o aplicativo disponível e por um tempo se estabilizou. Inconformada com limitações e com a mortalidade, Martha constrói um duplo (Ash/digital/androide) que a princípio é benevolente, protege o seu eu de fragmentação e aniquilamento. Eles formam um casal unitário, são praticamente Um. Ash/androide é o reflexo e o complemento de Martha.

Entregando-se à onipotência do pensamento e através do artifício do mundo digital, Martha tenta manter Ash imortal para satisfazer o desejo narcísico de preencher a expectativa nostálgica do ideal. Mas o duplo benevolente, que antes bastava para protegê-la contra a solidão e o desamparo, não é totalmente eficaz. Ash/androide acaba se tornando o representante da morte: "depois de haver sido uma garantia de imortalidade, transformou-se em estranho anunciador da morte" (Freud, 1919/1990, p. 295). Estranho anunciador da limitação e da alienação.

Lembro-me de um paciente jovem que, inconformado com a morte súbita de um amigo, por meses se pôs a conversar com ele através de vídeos, fotos e conversas postadas no Facebook, Instagram e Twitter. Quando me falava desses encontros, dizia: "ele continua vivo". Após inúmeros encontros desse tipo, começou a se sentir incomodado, inquieto. Um estranhamento, dizia: "é meio assustador, meio sinistro isso que estou fazendo, cada vez que converso com ele, depois fico só pensando na morte".

O mundo digital é uma porta de entrada eficaz para a criação do duplo: um amigo imortal, um sósia, um gêmeo, um ser complementar, um substituto perfeito, um protetor ou perseguidor, uma heroína de animes japonês, uma celebridade.

A inquietante estranheza que provoca esse tipo de dispositivo para a criação do duplo, tão bem mostrada em "Be right back", é a semelhança com o ser humano construída a partir de versões digitais. Não se trata de um robô, um fantasma ou um ciborgue, bastante distinto da imagem do humano. O fantasma assusta, mas não nos faz exclamar: "que sinistro!". O Ash/androide é sinistro não pelo aspecto, mas pelo que isso significa: o eu digital dominando as versões de carne e osso. Não se trata mais da divisão entre mortal e imortal fundamentada na crença da eternidade da alma, mas de uma divisão entre o Homem-Ash/ vivo e real e o Homem-Ash/digital.

A psicanálise tem mostrado que a capacidade de elaboração do luto e o desenvolvimento mental estão indissoluvelmente articulados. A capacidade de elaboração do luto abre possibilidades para novas e intensas emoções. A perda de um ente querido pode, a princípio, retirar o interesse no mundo, de modo que o sujeito se concentre em sua própria dor e fique ainda mais apegado à pessoa que morreu. A melancolia pode se instalar e o sujeito se enterrar com o próprio morto. A melancolia é menos a reação regressiva à perda do objeto do que a capacidade fantasmática (alucinatória) do sujeito de manter vivo o objeto perdido (Fédida, 1999).

Por meio do trabalho de luto o sujeito pode elaborar o desapego. Um longo processo entremeado por culpa, angústias esmagadoras e sonhos. Sonhos com a pessoa amada ainda viva. Não havia, de fato, morrido, fora apenas uma viagem longínqua, e agora a pessoa amada estava de volta, às vezes no próprio sonho, constatando que aquilo é só um sonho (Freud, 1915/1990).

A cena final de "Be right back" decorre vários anos mais tarde e mostra Martha levando sua filha (Indira Ainger), agora com sete anos de idade, até a casa de campo, onde ela está mantendo o Ash/androide trancado no sótão. Ela permite que sua filha o encontre nos fins de semana. Enquanto sua filha está no sótão com o androide, Martha espera com lágrimas no rosto, antes de se juntar a eles.

Apesar de eficiente e tão próximo da realidade, o duplo não eliminou a angústia. A cópia não substituiu o original e não foi totalmente satisfatória. Criar um duplo é apenas um dispositivo psíquico utilizado para neutralizar o eu fragmentado, em vias de aniquilamento, até que se siga adiante.

Doppelgänger é um consagrado termo romântico, cunhado por Jean-Paul Richter em 1796, traduzido por duplo, por "segundo eu". Literalmente, Doppelgänger significa aquele que caminha ao lado, companheiro de estrada. O duplo, com esse sentido, é usado para designar aquelas personagens que veem a si mesmas especularmente, como se dispusessem de outro "si mesmo", caminhando na mesma estrada lado a lado. (Bravo, 2000).

O duplo, ao mesmo tempo exterior e íntimo, está logo ali: no quarto ao lado, no sótão, na mesma estrada, no black mirror, apto a representar o que nega a limitação do eu, apto a encenar o roteiro fantástico do desejo.

 

REFERÊNCIAS

Bravo, N. F. (2000). Duplo. In P. Brunel (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio.         [ Links ]

Fédida, P. (1991). O sítio do estrangeiro. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1990). O estranho. In S. Freud. Obras completas (Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

______. (1990). Luto e melancolia. In S. Freud. Obras completas (Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Pedreira, P. (2017). Enfim, imortais? Como a tecnologia pode mudar a noção de morte. Recuperado em 12 mar. 2017, do LinkedIn.         [ Links ]

Rank, O. (2013). O duplo: um estudo psicanalítico. Porto Alegre: Dublinense. (Trabalho original publicado em 1925).         [ Links ]

Santos, A. (2009). Um périplo pelo território do duplo. Investigações, 22(1),51-101.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
VERA L. C. LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-030 - Campinas - SP
tel.: 19 3254-0824
vlamannoadamo@gmail.com

recebido 11.04.2017
Aceito 13.05.2017

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