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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017
LITERÁRIAS
Alkahest: um método em forma de licor
Luiz Moreno Guimarães
Doutorando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e estudante de letras clássicas da mesma universidade (FFLCH-USP)
- Parábola do daímon da psicanálise? -
Alkahest era uma das sublimes substâncias buscadas pelos alquimistas da segunda metade do século XVII, e convém sublinhar que fora tenazmente procurada por esses que souberam criar e ornar elegantes mistérios.
O inventor de seu nome, ao que consta, foi Paracelso (1493-1541), que a imaginou como um licor que conservava e reforçava o fígado, mas que também possuía uma faculdade incrível: podia substituir, caso necessário, as funções desse órgão. O segundo livro de De viribus membrorum, dedicado ao estudo das doenças dos órgãos internos do corpo humano, é o único lugar em que Paracelso define o Alchahest, e o faz exaltando suas qualidades como remédio para insuficiências hepáticas, indiscutivelmente superior a todos os outros, pois, "mesmo se o fígado se encontra arruinado e destruído, ele próprio [o licor Alchahest] assume o papel do fígado, como se este último nunca tivesse sido arruinado e destruído" (1589-91, p. 9). Essa definição inicial, ainda que atribuindo propriedades fantásticas à substância alquímica, ao torná-la substituta ideal de um órgão interno falido (mais fígado do que o próprio fígado), não seria, no entanto, aquela que daria a futura notoriedade ao sublime licor.
Cerca de um século depois, outro alquimista, Johannes (Joan) Baptista Van Helmont (1579-1644) - apropriando-se do nome dado por Paracelso, introduzindo uma sutil modificação na grafia e arriscando-se a reformular a função da substância -, lançou uma busca que ainda hoje permanece aberta. "Existe", escreve e grifa Van Helmont, "algum Solvente universal que dissolve, transforma, separa e reduz todos os corpos" - seu nome é Alkahest. Isso consta numa carta datada de 1631, na qual também lhe foi dirigida a pergunta: "O que é o Alkahest?"; ao que Van Helmont responde: "É um Solvente [Menstruum] católico e universal que podemos chamar, em uma só palavra, a água-do-fogo [Ignis - Aqua]: é um ser [ens] simples e imortal, que penetra todas as coisas e as conduz à sua matéria primeira líquida: nada pode resistir a sua virtude" (1893/2013, p. 10)1. Trata-se de uma redefinição: Alkahest permanece como busca alquímica por um licor, mas a função desse líquido mudou, deixou de ser um licor-remédio para os problemas hepáticos, e passou a ser um licor-solvente, ou melhor, o solvente por excelência. Note-se que suas novas faculdades são magníficas: qualquer matéria em contato com o Solvente universal seria reduzida e decomposta, estamos diante da substância que teria a capacidade de dissolver todas as outras. Insisto que se detenha por mais um instante, meu leitor, na potência desse Solvente: imagine que o papel em que lê estas linhas, a poltrona em que está sentado e todo resto em volta, incluindo seu próprio corpo, seriam sem exceção dissolvidos por um único e simples licor, o Alkahest.
E nessa solvência geral dois processos concomitantes ocorreriam: (i) a matéria seria purificada (id est, tornar-se-ia livre de suas impurezas e de suas complexidades, o que vem a ser o mesmo) e (ii) evidenciar-se-iam os elementos mínimos e específicos, o primum ens [primeiro ser], que a constituem. Alkahest seria então uma sorte de substância antitética, que se define negativamente, por ser a substância que desarticula e purifica as demais substâncias; e também seria uma espécie de condutor: um ens [ser] simples e imortal que conduz outro ens ao primum ens. De tal forma que, visto pelo prisma do Solvente universal, toda matéria era primum ens em estado impuro. E sua qualidade imortal se deve ao fato de que, diferente dos demais solventes, não se misturaria ao corpo em que age; "após dissolver varias outras coisas, ele permanece todo inteiro em sua forma natural, mesmo após mil operações, mantém sua virtude como se fosse a primeira vez" (Helmont, 1893/2013, p. 10) - Alkahest não perderia seu efeito ao agir. Foi essa redefinição feita por Van Helmont, ainda mais fantástica que a de Paracelso, que tornou Alkahest um fluido alquímico tão popular e tão cobiçado. Os alquimistas, hábeis na confluência entre invenção e investigação, já tinham assim a função química e o nome do Solvente universal, bastava agora encontrar sua matéria-prima - e confeccioná-lo.
Uma diferenciação inicial destacava-se como importante. A matéria que entrasse em contato com o Solvente universal se-ria por ele apenas desassociada - e não destruída; o Solvente universal não é o fogo, e sim o ventre do fogo, a Ignis - Aqua; Alkahest se limitava a decompor qualquer coisa palpável, e essa decomposição era a sua própria purificação. "De acordo com Van Helmont, o Alkahest realizaria a dissolução e a purificação através da divisão do outro corpo em minúsculas partículas - apesar de não serem tão minúsculas ao ponto de extinguir sua especificidade (isto é, destruir sua propriedade seminal)" (Porto, 2002, pp. 8-9). O Solvente universal não destruiria o corpo com o qual entraria em contato, apenas o purificaria ao romper as ligações que o constituíam - não era o Destruidor universal, mas o Purificador universal. Cabe bem dizer inclusive que Alkahest analisaria a outra substância, no sentido etimológico de análise: do grego άνάλυσις, ação de desatar. O Solvente universal trazia assim, implicitamente, uma noção própria de purificação relacionada com a de ruptura: é necessário romper a unidade do corpo para que se revele o seu elemento seminal, o seu mínimo puro, que de outro modo mantinha-se inacessível."É a esse estado primitivo da matéria, desembaraçada de todas as impurezas da terra, que o Alkahest conduz o que ele dissolve. A dissolução que ele produz é então uma liquefação, e não uma destruição" (Joly, 1996, p. 323). A função alquímica do Solvente universal era, portanto, romper o campo de constituição do outro, sem destruí-lo, apenas purificando-o, operando desse modo a desestruturação que paradoxalmente torna o outro ainda mais ele mesmo, conduzindo-o ao seu primum ens. Em termos trágicos, Alkahest era uma espécie de catarse materializada2 e apresentada em forma de solvente; em termos psicanalíticos, o Solvente universal era uma sorte de licor concentrado de bondade3, por estar no outro mais do que este está em si mesmo4.
Mas eis que, antes mesmo de encontrar esse analisador universal, sobrevém a mais-que-sóbria questão, formulada em 1677 por Johann Kunckel, que inicia assim: "se é possível encontrar um Solvente Universal que possa dissolver todos os corpos sem distinção, mesmo as pedras preciosas", e continua, "se mesmo o diamante não pode resistir a ele, qual recipiente - conjectura-se então - pode-se utilizar para preparar e conservar esse solvente?" (1677, citado por Joly, 1996, p. 309). Se nem o corpo mais sólido da natureza (o diamante) pode contê-lo, onde vamos guardar o Alkahest? O Solvente universal romperia o seu recipiente e, como não se mistura com a substância em que age, seguiria dissolvendo incessantemente tudo que encontra pelo caminho. Essa indagação acerca do receptáculo do Solvente universal era, por um lado, uma crítica à sua busca, mas, por outro, revelava que Alkahest seria um solvente tão forte que convém antecipar a sua vinda. E o tom debochado de Kunckel - que chega a chistar com o nome: Alkahest significaria alles Lügen heisset ou alles Lügen ist [ambos: é tudo mentira] - não consegue dissimular a nova preocupação alquímica: como sustentar aquele que desfaz qualquer sustentação?
A impossibilidade assim se evidenciava: se tivermos um recipiente para o Solvente universal, este pode até continuar a ser um poderoso solvente, mas não será universal, pois não dissolve o receptáculo que o contém - logo não será digno do nome Alkahest. Esse receptáculo, tão inencontrável quanto o Santo Graal, deveria ser a materialização do insolúvel, aquilo que impediria o Solvente universal de ser ele mesmo; uma espécie de refúgio, de álibi, de ao menos um lugar a salvo do processo geral de solvência. E o ímpeto de defender-se de algo que sequer fora confeccionado era talvez o pressentimento de que Alkahest estava em vias de realizar-se, de que estava se realizando, ainda que de um modo inteiramente inesperado. Pois bem, partindo de uma busca, os alquimistas passaram a ter duas buscas - e opostas: encontrar o que tudo dissolve e contê-lo no insolúvel.
Apesar da objeção lógica de Kunckel, a procura pelo Alkahest não cessou; havia algo inquietante na formulação alquímica dessa substância que, mesmo refutada como impossível, continuava a ser procurada por autores imunes a qualquer hermetismo. E malgrado a absurdidade das características do Alkahest, que por vício epistemológico possa advir aos nossos contemporâneos olhos, autores do calibre de Boyle, Leibniz ou Boerhaave, consagram parte considerável de seu tempo à busca das propriedades desse líquido. Leibniz chega a afirmar: "Possibilis est Liquor Alcahest [O Licor Alcahest é possível]" (1671/2006, p. 291). O aspecto Unheimliche dessa substância, e que talvez tenha fisgado esses tão distintos autores, encontrava-se no fato de que "Sob o nome de Alkahest um importante segredo estava oculto"; "ele não era apenas um solvente, mas a chave do segredo [da química e] da medicina - e, consequentemente, a chave para a compreensão da natureza" (Porto, 2002, p. 28); esse licor era mais que um solvente fantástico: "Alkahest é um agente universal com inumeráveis usos" (Hedesan, 2016, p. 182), um deles é "não apenas revelar a essência de todos os corpos, mas também permitir o aproveitamento do poder primordial do seu núcleo interno" (Hedesan, 2016, p. 182), e em última instância tal prática conduz a "extinguir a tradicional distinção entre ciência e arte" (Id., Ibid., loc. cit.). O Solvente universal nos ensina que analisar é desobrigar o elemento seminal de suas ligações, para que este possa então realizar-se. De tal forma que o trabalho científico de dissolução visava, no final das contas, permitir o usufruto do primum ens: a ciência abrindo caminho para a arte5. E a procura pelo Solvente universal parecia ser uma investigação estranhamente familiar a todas as outras buscas humanas. Não à toa, em sua aparição literária (La recherche de l'absolu, 1834), Balzac define o Alkahest como o demônio da pesquisa.
Não demora muito para que a busca pelo Solvente universal sofra uma mudança de ênfase: deixa-se de lado a procura da substância que produziria a solvência, e passa-se a pensar a própria solvência. "Argumento para Boyle, momento de um processo para Fabre, modelo ideal para Starkey, o Alkahest é finalmente pensamento da solvência mais que produção de tal ou tal solvente" (Joly, 1996, p. 343). Nessa toada, Pierre-Jean Fabre (1588-1658) irá propor que é do interior da matéria mesma, através da ação do calor e de repetidas destilações, que surge seu aspecto purificado. Alkahest deixa de ser um fluido trazido do exterior que entra em contato com outra substância e passa a ser um método de dissolução a partir do próprio elemento - um processo de alcoolização, diz Fabre, se desse termo destacamos o seu sentido etimológico, do árabe: a mais fina pulverização que é possível obter de um corpo.
Houve quem dissesse que o Alkahest, por não ter sido confeccionado, por nunca ter exercido seu católico processo de solvência, jamais existiu. Errado: ao longo de sua história sabemos de ao menos uma atuação do Solvente universal - nele mesmo. Todo o processo de dissolução, purificação e evidenciamento do elemento seminal ocorreu com o próprio Solvente, o que torna essa solução ainda mais inquietante. Algumas décadas de acaloradas querelas abstratas e de repetidas destilações teóricas dissolveram e alcoolizaram o licor Alkahest; e eis que o seu primum ens - aquilo de que não deve ceder, nem exceder - vem à tona: depurado, sobrou apenas o seu elemento seminal, a solvência analítica, e a substância alquímica pôde então transmutar-se em método que viria a se chamar química. Esse foi seu devir-método: o Solvente se dissolveu em puro movimento de solvência.
Aquele que reduz a forma do outro está condenado a manter-se informe. Até que assuma sua vocação, que é justamente ser sem suporte, mas aí já não precisa encontrar-se em forma alguma. Quando Alkahest, o licor insuportável, cumpre seu daímon, torna-se indiferente afirmar ou negar sua existência.
REFERÊNCIAS6
Burckhardt, T. (1972). Alchemy: Science of the Cosmos, Science of the Soul. Baltimore: Penguin Books. [ Links ]
Hedesan, G. D. (2016). An Alchemical Quest for Universal Knowledge: The ‘Christian Philosophy' of Jan Baptist Van Helmont (1579-1644). London; Nova York: Routledge.
Joly, B. (1996). L'alkahest, dissolvant universel ou quand la théorie rend pensable une pratique impossible. Revue d'histoire des sciences, 49, n. 2-3, 305-344. [ Links ]
Leibniz, G. W. (2006). De Liquore Alcahest. In ______. Philosophische Shriften: Band 2 (1663-1672, pp. 291-293). Berlin: Akademie Verlag. (Trabalho original publicado em 1671). [ Links ]
Paracelsus. (1589-91). Bücher und Schriften (Vol. 1, bk. 3, pp. 8-9). Basel: Huser. [ Links ]
Porto, P. A. (2002). Summus atque felicissimus salium: The Medical Relevance of the Liquor alkahest. Bulletin of the History of Medicine, 76(1), 1-29. [ Links ]
Van Helmont, J. B. (2013). The Secret of the Immortal Liquor called Alkahest or Ignis-Aqua. In A. E. Waite (Org.). Collectanea Chemica (pp. 10-23). London: Global Grey. (Trabalho original publicado em 1893). [ Links ]
Endereço para correspondência:
Avenida Paulista, 807/714
01311-915 – São Paulo – SP
tel.: 11 97159-6180
luiz.moreno@usp.br
Recebido 30.03.2017
Aceito 28.05.2017
1 Católico, na citação, encontra-se no sentido grego (καθολικός) de irrestrito, geral.
2 O estudo de Paulo Porto (2002) aborda o uso medicinal do Alkahest, demonstrando seu valor purgativo; pesquisa que abre interessante caminho para se investigar a relação entre Solvente universal e catarse (trágica e psicanalítica).
3 Conferir o capítulo "Bondade" de A infância de Adão e outras ficções freudianas (2002) de Fabio Herrmann, e a sessão XX,"Em Ti mais do que Tu",do Seminário XI (1964) de Jacques Lacan.
4 O símbolo que segue - sonhado, desenhado e que serve como divisor das partes deste texto - revelou-se como a condensação de dois símbolos alquímicos, o da abstração com o da destilação.
5 O livro de Titus Burckhardt deixa claro que qualquer pesquisa que se incline sobre um ou vários dos problemas alquímicos deve levar em consideração essa singular forma de articular ciência e arte, pois apenas assim pode-se operar "o resgate do horizonte espiritual próprio da Alquimia" (Burckhardt, 1972, p. 202), afinal, essa singular articulação é o primum ens não de uma substância em especial, mas da Alquimia como um todo.
6 Agradeço ao professor Paulo Alves Porto, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, pela ajuda na busca do material bibliográfico.