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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017
EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA
A garota dinamarquesa: Lili Elbe1
The danish girl: Lilie Elbe
Jurenice Picado Alvares
Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP); membro fundador do NPSR; secretária da Diretoria Regional da SBPSP de 2008 a 2012 e diretora regional no biênio 2013-2014; membro de enlace do COWAP/Santos - São Paulo - IPA
RESUMO
Proponho um exercício de leitura do filme A garota dinamarquesa (Hooper, 2015), examinando a comunicação de diferentes formas de expressão da arte, como a dramatúrgica, a cinematográfica, a estética (formas do vestuário) e a linguagem, sob o olhar da psicanálise, para a representação do amor através da aceitação e do compartilhamento da liberdade do outro. Trata-se de uma cinebiografia de Lili Elbe que, embora baseada em fatos reais, não deixa de ser uma construção sobre a trajetória da vida profissional e pessoal do pintor dinamarquês Einar Wegener, considerado o primeiro transgênero a se submeter à cirurgia de redesignação sexual, assumindo o nome de Lili Elbe. O filme retrata o relacionamento amoroso de Einar com sua esposa Gerda, o desvelamento e as implicações da identificação de Einar como mulher. Diferencia a transexualidade e a homossexualidade utilizando-se dos autores Gerald Bonnet e Leticia Glocer Fiorini.
Palavras-chave: Cinebiografia. Identidade sexual. Transexualidade. Homossexualidade. Trabalho analítico.
SUMMARY
My proposition is to analise a film The danish girl (Hooper, 2015), examining the different forms of art expression: dramaturgy, cinematography, esthetic (clothing) and language. To look the representation of love through the acceptance and sharing of other's freedom, under the psychoanalytical gaze. This is a biographic film of Lili Elbe which, although based on real events, is still a construction of the trajectory of the professional and personal life of the Danish painter Einar Wegener, considered the first transgender to undergo the sexual reassignment surgery, assuming the name of Lili Elbe. The film portrays Einar's loving relationship with his wife Gerda, the unvelling and implications of Einar's identification as a woman. It diferentiates the trans-sexuality from the homosexuality using the authors Gerald Bonnet and Leticia Glocer Fiorini.
Keywords: Film biography. Sexual identity. Transsexuality. Homosexuality. Analytical work.
Proponho um exercício de leitura do filme A garota dinamarquesa (Hooper, 2015), examinando a comunicação de diferentes formas de expressão da arte, como a dramatúrgica2, a cinematográfica3, a estética (formas do vestuário) e a linguagem, sob o olhar da psicanálise, para a representação do amor através da aceitação e do compartilhamento da liberdade do outro.
Trata-se de uma cinebiografia de Lili Elbe que, embora baseada em fatos reais, não deixa de ser uma construção sobre a trajetória da vida profissional e pessoal do pintor dinamarquês Einar Mogens Wegener, considerado o primeiro transgênero a se submeter à cirurgia de redesignação sexual (CRS), assumindo o nome de Lili Elbe.
Tom Hooper, diretor do filme, seguiu o roteiro criado pela dramaturga e roteirista inglesa Lucinda Coxon, adaptado do romance do escritor norte-americano David Ebershoff, baseado nos diários e correspondências de Lili, editados em 1933 por Niels Hoyer após a sua morte em 1931, intitulado The danish girl.
O filme retrata o relacionamento amoroso de Einar (Eddie Redmayne) com sua esposa Gerda Gottlieb (Alicia Wikander), o desvelamento e as implicações da identificação de Einar como mulher.
No Oscar 2016, Alicia Vikander recebeu o prêmio de melhor atriz coadjuvante. Receberam indicações: Eddie Redmayne, como ator; o hispano-canadense Paco Delgado, design de produção e figurino; Eve Stewart e Michae Standishl, direção de arte; e Alexandre Desplat pela trilha sonora.
Paco Delgado, Hooper e Stewart pesquisaram a arquitetura e as fotos de época do casal na Biblioteca Nacional de Copenhague e reproduziram fielmente o primeiro vestido branco usado por Lili ao posar para Gerda. Na primeira aparição em público como mulher, Lili usa um vestido cedido pelo departamento de figurino da Ópera de Copenhague. E para a fase parisiense de Lili e Gerda, eles se inspiraram em Coco Chanel, a primeira estilista a pensar na nova mulher que surgia na época.
O filme transcorre no início do século XX, primeiramente na Dinamarca, onde o casal Einar e Gerda reside, depois na França, Einar e Gerda se conheceram na Academia de Artes, em Copenhague, e se casaram em 1904, ele aos 22 anos e ela aos 19 anos. Eles se amavam e mantinham uma relação de casamento feliz.
Na esfera profissional, Einar é um pintor de relativo sucesso, enquanto Gerda não consegue se desenvolver nas pinturas dos retratos. Em uma cena, Einar expõe um quadro em que pintou o fiorde em Vejle, que fazia parte da sua infância, conversa com al-guns observadores e com o expositor Rassmussen. Nessa exposição ele usa um terno escuro, de tecido pesado. Provavelmente, uma metáfora do seu desconforto, da sua inibição, preso a uma aparência social que, naquele momento, ele aceita.
Essa cena contrasta com outra, na qual Einar está num estúdio de ballet e naturalmente se encanta com a leveza dos tules que vestem as bailarinas. Parece um movimento feminino em uma época em que a tolerância social em relação a questões de gênero era muito menor do que na nossa.
Em contrapartida, Gerda aparece em um estúdio pintando o retrato de um homem, que lhe pergunta se o seu marido não se importava por ela estar ali sozinha com ele. Enquanto pinta, tem um cigarro na boca e gestos masculinos, clichê da mulher artista, dos costumes e questionamentos da época. Possivelmente, uma representação das mudanças e questionamentos entre os gêneros e valores da cultura, da função social da mulher e do papel do feminismo.
Também observamos a possibilidade de certa autoridade feminina na cena em que Gerda diz à cachorrinha do casal: "Good, girl!". A cachorrinha obedece e senta-se. Penso que essa metáfora da obediência corresponde ao lugar questionado da mulher e de seus aspectos femininos.
Enquanto Gerda sai de casa para vender seus retratos, Einar permanece pintando a paisagem do pântano com árvores entre os fiordes dinamarqueses, próximos à cidade de sua infância, em Vejle. Parece que, ao insistir na pintura dessa paisagem, Einar mergulha no seu próprio pântano interior em busca de sua verdadeira identidade.
No decorrer do relacionamento do casal observamos que Einar se identifica, de forma velada, com o mundo feminino e Gerda parecia não se incomodar com isso, inclusive incentivando-o em algumas situações, o que a excitava, como na cena em que Gerda usa uma camisola e Einar admira o tecido. Ela diz que, se ele gostou da sua camisola, a emprestaria, e ele responde que talvez aceitasse.
Em seguida, na cena em que ele veste a camisola, num primeiro momento ela se surpreende e ele permanece apreensivo, observando a reação de Gerda. Imediatamente ela entra no cli-ma. Einar toma a iniciativa de iniciar a relação sexual, mas ela pede que ele espere, o acaricia em uma das mamas, como se houvesse ali um seio, e durante a relação sexual ela muda de posição, ficando por cima dele, e o acaricia de forma excitante.
Seria uma possível homossexualidade de Gerda? Ela aparentava sentir muito prazer na situação, possivelmente fantasiando uma relação com outra mulher.
Na manhã do dia seguinte ela desenha Einar enquanto ele dorme. Fala para ele que perdeu o sono e questiona se, na noite passada, conseguiram fazer o bebê desejado. Penso que Gerda, provavelmente, ficou perturbada por suas sensações, e, para afastar sua angústia, fala do possível filho como afirmação de que eram um casal heterossexual, sentimento que parece se dissipar quando pede ao seu marido para substituir a modelo Ulla, amiga do casal, que está atrasada para uma sessão, posando para o quadro que está pintando.
Ele resiste e se intimida, mas ela insiste. Ele cede e passa a observar, com admiração e encantamento, o movimento feminino, o alongamento da perna e o vestido, que é colocado sobre ele. Ao entrar em contato com os objetos do universo feminino, o vestido e as meias de seda que precisou usar, Einar toma consciência das questões em relação a sua identidade. A partir desse trabalho Gerda consegue vender os quadros. Seu sucesso se inicia quando passa a utilizar Einar/Lili como modelo.
Gerda submetia Einar às suas vontades, aos seus desejos, enquanto ele se mostrava tímido diante das possíveis reações de Gerda. Por exemplo, ela estava se vestindo ou se pintando e ele a admirava, ela lhe dirigia o olhar e ele prontamente desviava o seu, como se tivesse sido flagrado.
Chega o tradicional baile dos artistas e Einar está decidido a não participar da festa. Mas Gerda quer companhia e insiste com o marido que vá vestido de mulher, como uma brincadeira.
Ele acha sua proposta absurda, ela insiste, dizendo que ele pode gostar, e joga uma echarpe sobre ele, a echarpe simbolizando a feminilidade, como atirando o feminino para ele. Entendo como uma atitude agressiva por parte dela, até mesmo desrespeitosa. Porém, Einar não reage e, talvez por se sentir atraído, entra na brincadeira, sendo apresentado como a prima de Einar que chegou de Vejle.
Sua mulher o estimula, compra-lhe meias ao mesmo tempo que quer garantias de que ele nunca a deixe.
Durante a festa ele é seduzido por um rapaz homossexual e se beijam. Einar é surpreendido com a sua excitação, sangra pelo nariz e começam suas dores de cabeça. Estaria somatizando? O corpo estaria expressando o que a mente não conseguia nomear?
Quanto a esses questionamentos, a psicanálise, interessada na construção da subjetividade, olhou para o corpo além do seu revestimento corporal, isto é, o corpo além do concreto e a palavra se apresentando como a via régia que dá conta da insistência pulsional, que nos estimula frequentemente.
Dessa forma, de acordo com as experiências, recordações e repressões, o corpo e a linguagem se combinam e conferem sentido ao vivido. Como nos diz Freud (1923/1976b), o eu é antes de tudo um eu corporal.
O sangramento nasal de Einar persiste e é acompanhado de cólicas, que acontecem mensalmente em determinado período do mês, como na menstruação, diz o médico que eles consultaram. Einar recebe diagnóstico ora de louco, ora de pervertido ou esquizofrênico.
Realmente, no passado a maioria dos médicos considerava doença o que não seguia os padrões da época.
Em seguida, Gerda se surpreende ao descobrir que Einar e o rapaz homossexual estão se encontrando, e toma consciência de que a brincadeira começou a ficar mais séria. Gerda começa a perceber que pode perder Einar para Lili, mas o amor leva-a a renunciar o marido e ajudar Einar a ser Lili.
As roupas de Einar começam a ficar mais leves e claras e o mundo feminino torna-se emergente para Lili, que começa a se descobrir. Nesse sentido, a imagem da cachorrinha que desce do colo de Gerda e vai em direção a Einar pode ser entendida como uma representação cinematográfica, metafórica, da liberdade e autonomia dessa Lili que emerge.
Einar está confuso e diz: "Lili vem de dentro de mim". Gerda sente falta dele como marido, mas seu amor é maior.
O texto sonoro na linguagem musical do filme é indicativo do tormento interior do casal diante da irreversibilidade da situação, linguagem que acompanha a transformação de Einar em Lili.
Bonnet (1999), psicanalista da Associação Psicanalítica da França, diz que algumas formas de prática sexual parecem estranhas quando abalizadas a distância, porém, podem ajudar a converter ideias preconcebidas, desencadeando novos avanços. Para o autor, "aquilo que pode ser chamado de problema da sexualidade nada mais é que uma solução ao enigma de origem; uma solução mais ou menos satisfatória e que, pelos seus curiosos atalhos, nos informa muito bem das vicissitudes" (Bonnet, 1999, p. 31).
Esse mesmo autor confronta duas soluções sexuais distintas, afirmando que por muito tempo foram confundidas, a transexualidade e a homossexualidade, e diz que "dentre as soluções sexuais atuais, estas são duas modalidades que vêm se afirmando com insistência, que seguramente chocam e, por isso mesmo, muito nos ensinam" (Bonnet, 1999, p. 31).
A partir desse momento o instinto de Einar fala mais alto e surge o conflito em relação à sua identidade de gênero, conflito que é denunciado através do corpo. Einar estava assustado, afirmando que não era ele, que algo mudou dentro de si.
Lembro um poema de Carlos Drummond de Andrade (1986, p. 11), intitulado As contradições do corpo, que diz:
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele ocultaMeu corpo, não meu agente,
Meu envelope selado,
Meu revólver de assustar,
Tornou-se meu carcereiro,
Me sabe mais que me sei.
Einar ama sua esposa e luta contra seus desejos, porém percebe que eles são mais fortes que ele. Provavelmente, o que estava reprimido ressurgiu. Em sua pintura, Einar dava forma e expressão às suas emoções, aos seus conflitos. Gerda lhe diz que ele seria engolido pelo pântano que desenhava, tal sua introspecção. Ele sentia-se preso a fatos não resolvidos do passado. A ideia de pântano que engole nos remete à de areia movediça, instável, que suga.
Freud (1905/1976a), no artigo "Sobre a psicoterapia", faz um paralelo entre técnicas de análise e o trabalho da arte, mais especificamente da escultura e da pintura. No caso da pintura, em que se aplica tinta em uma tela em branco, o artista dá forma e expressão às suas emoções, aos seus conflitos - per via di porre, diferentemente do que acontece na escultura, em que o artista faz emergir do bloco de mármore uma figura expressiva -, per via di levare.
O pouco que sabemos da infância de Einar foi através da narrativa de um beijo na boca dado por seu amigo, Hans, por quem Einar estava apaixonado. O pai de Einar chega e dá uma surra em Hans, o que nos faz deduzir que se tratava de uma figura autoritária e agressiva, que muito provavelmente não enxergava seu filho, não permitindo que ele se reconhecesse.
Sabemos que o essencial da sexualidade humana está na dimensão inconsciente, não tem formas fixas nem predeterminadas. Podemos pensar que a sexualidade é imaginativa e advém das sensações corporais em sincronia com as múltiplas identificações provenientes do inconsciente dos pais.
Assim, a identidade sexual de cada pessoa é única, como uma digital, é psíquica e determina comportamentos específicos, independentemente do organismo ser masculino ou feminino. Falo de gênero, que não é o mesmo que falar de sexo, de homem ou de mulher, com corpos biologicamente diferentes. Embora a masculinidade combine com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a qualidade de ser mulher, sexo e gênero não estão diretamente relacionados.
McDougall (1997), psicanalista estudiosa da psicossexualidade humana, em seu livro As múltiplas faces de Eros, diz que a busca de amor e satisfação produz múltiplos conflitos psíquicos, que surgem como resultado do choque entre o mundo interno de pulsões instintivas e as forças repressoras do mundo externo, e que por conta desses conflitos a sexualidade humana é inerentemente traumática e força o ser humano a um eterno questionamento e a uma busca de soluções.
Na luta para assumir sua identidade sexual, Einar abandona a pintura, dizendo que esta fazia parte da sua existência anterior a ser deixada para trás.
Gerda sugere que ele volte a pintar a paisagem que tanto gostava e o absorvia, possivelmente traduzindo a necessidade dela de reencontrar Einar. No entanto, ele não quer mais pintar. Quer ser uma mulher. Dessa forma, parece que se livra de um passado que o mantinha preso, reprimido.
Em contrapartida, Gerda dedica-se ao trabalho e ascende em sua carreira artística, desenhando Lili (ela pintava o Einar que perdeu?). Nesses momentos difíceis, os seus riscos eram fortes, num movimento agressivo. Parecia expressar seu sentimento de revolta, incompreensão e frustração.
Gerda é convidada a expor em Paris, em 1912. Ao chegar, pede ajuda ao amigo Hans, imaginando que Einar possa se reconhecer através dele.
Quando Hans vai ao encontro de Einar, este está travestido de mulher e se apresenta como a prima de Einar.
Observando o diálogo entre os dois, penso que a postura de Lili foi de sedução. Hans era um homem com quem havia sonhado em sua infância.
Outra cena, à qual quero me referir e que tem estado quase que diariamente na mídia, é a de Einar sendo surrado na rua por dois rapazes preconceituosos e violentos.
Se a questão ainda é delicada nos dias de hoje, imaginemos isso há um século. Einar viveu numa época que a compreensão do gênero e do sexo humano apenas nascia. Quero lembrar a campanha na TV sobre a intolerância que diz: "Você pode não gostar, mas tem que respeitar!".
Continua a crise do casal. Gerda, inconformada, pede que ele a abrace, que a tenha sexualmente, ele se desculpa e diz que não consegue mais, que machucaria Lili. Seria uma indicação de respeito que Lili vai desenvolvendo por sua nova condição?
Definitivamente, ela não mais o teria como homem. Terminam os jogos eróticos que pareciam lhe proporcionar prazer. Quem sabe por estarem associados a dois tipos de gozo, o sexual concreto e o imaginativo, ligado à fantasia homossexual, que possivelmente se mantinha reprimida.
Lili/Einar parte para fazer sua primeira cirurgia e observamos o respeito e o carinho entre o casal, ambos se amam, independentemente da vida sexual. Na estação de trem, Gerda, ao se despedir, entrega-lhe uma echarpe rosa, que se torna a representação de sua identidade.
Quem ama verdadeiramente não prende o amado, pelo contrário, deixa-o ir. É preciso amar o outro como ele é. Respeitar o diferente é uma das maiores dificuldades do amor e, por que não dizer, de todo relacionamento, de uma forma geral.
Lembro de um livro clássico que atravessou os tempos, O banquete, de Platão (2012), em que sábios dialogam sobre o amor. O texto toca nas questões primordiais da essência humana. Cada sábio fala, e a fala de cada um contribui para o surgimento de uma verdade sobre o amor. Para tal, Platão utiliza a metáfora da relação entre amado e amante, e da necessária reciprocidade.
Para Platão, quem ama é superior se for capaz de acordar o amado para esse mundo que está dentro dele mesmo, despertando a necessidade e o desejo.
Seguindo esse fio condutor, o amor de Gerda despertou Lili, e precisou ser sublimado, manifestando-se através do companheirismo, da amizade e dos cuidados que ela tinha com ele.
Lili, por sua vez, também cuidava de Gerda, por exemplo, quando não permitiu que ela o acompanhasse na primeira cirurgia porque Lili abandonaria Einar.
Podemos pensar em um amor respeitoso, que permite ao outro seguir sua vida, o que é muito bem representado na cena final do filme, através da echarpe que Gerda permite que se vá ao vento!
Quando Lili chega a Dresden, para a primeira cirurgia, batiza-se com o sobrenome Elbe, inspirado no rio Elba. Podemos pensar na simbologia, o rio que atravessou para chegar ao hospital e se tornar verdadeiramente Lili.
Depois da cirurgia, num passeio ao redor da sua casa, Lili en-contra Henrik Sandahl, o rapaz que o beijou, o qual fica surpreso ao saber da cirurgia. Pergunta a Lili se o médico a fez mulher e Lili responde que não, que foi Deus,"o médico corrigiu um erro da Natureza, me curando da doença que era o meu disfarce". O diretor Tom Hooper mostra fidedignamente o sentimento do transexual.
Nesse dia, Gerda os vê juntos e questiona Lili sobre a amizade dos dois. Lili responde que não precisava se preocupar, pois seu amigo era homossexual.
Faço aqui um parêntese, para diferenciar, no sentido estrito, a transexualidade e a homossexualidade de acordo com os autores selecionados, pois as interpretações sobre as diversidades sexuais podem se diferenciar em meio às várias teorias psicanalíticas.
Retorno a Bonnet (1999), na transexualidade a pessoa se diz convencida de que o sexo original que possui não corresponde à sua verdadeira natureza, ao que sente realmente ser, o que a impede de viver normalmente. Há uma repugnância em relação ao seu órgão genital, quer se livrar dele a qualquer preço e exige da medicina que retifique o que considera um erro.
Fiorini (2016), psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina (APA), diz que no transexualismo há uma problemática na questão da identidade de gênero e, em conformidade com Bonnet, fala da existência da convicção absoluta de que houve um erro entre o gênero e o corpo sexuado, resultando na necessidade de adaptar o corpo ao gênero que sente como próprio.
A sexualidade humana conheceu modificações significativas e o diferencial com a medicina foi que a ação médica teve uma ressonância mais global, fora de qualquer incidência patológica. A tecnologia médica, através dos métodos cirúrgicos, faz com que possa haver consonância entre o sexo anatômico e o gênero autopercebido.
Bonnet (1999) diz que, em relação à homossexualidade, a repugnância é pelo outro sexo, pelo diferente, e conduz a uma rejeição definitiva e radical. O que não representa uma parada na evolução libidinal e sim uma solução específica, na qual o encontro com o outro sexo produz um refluxo da libido em direção ao seu sexo. Assim, na homossexualidade a questão está na eleição do objeto e a solução é a partir do corpo do outro, enquanto na transexualidade a questão é o desejo, e a solução é a partir do próprio corpo.
Continuando com esse autor, a oposição e a complementariedade entre a solução homossexual estrita e a solução transexual tornam-se mais instrutivas quando ultrapassamos o plano da realidade do corpo, ou do órgão genital, para nos colocar no terreno do jogo social ou do imaginário; é lá que veremos, de fato, manifestarem-se os efeitos da sexualidade pulsional, pois a solução para se compreender as diferenças sexuais deve partir do pulsional.
De acordo com Fiorini (2016), no processo identificatório de qualquer menino/a, a diferença de gênero e a diferença sexual, num sentido simbólico, além da sua orientação sexual, estão inscritas no psiquismo dos pais e podem ser conflitivas. E diz que é necessário pensar nessas diferenças de uma forma transedípica, observando que é evidente que a estrutura edípica clássica pode favorecer o processo identificatório e desejante, porém, "restringir-se a pai e mãe, ainda no sentido simbólico, num triângulo essencial (numa estrutura microfamiliar), empobrece a possibilidade de pensar nestas configurações" (Fiorini, 2016, p. 8).
Lembro de uma carta escrita por Freud em 9 de abril de 1935 (Jones, 1989), em resposta à mãe de um homossexual que lhe escreveu com a intenção de que seu filho fosse "curado" pelo psicanalista. A resposta de Freud parece válida nos dias atuais. Escreve que a homossexualidade não pode ser qualificada como uma doença e sim como produto de certa interrupção no desenvolvimento sexual, seria uma variante da função sexual. E que é uma grande crueldade, injustiça, perseguir a homossexualidade como um delito, que não representa uma vantagem, que não há motivos para se envergonhar, pois não caracteriza um vício nem uma degradação, e sugere a leitura dos livros de Havelock Ellis, caso não acredite nele.
Em relação à supressão da homossexualidade, Freud responde que em alguns casos a análise consegue desenvolver rudimentos das tendências heterossexuais presentes em todo homossexual, embora na maioria dos casos isso não seja possível. A análise pode ajudar, desde que se tenha experimentado insatisfações por conta de inibições e conflitos quanto a vida social, na busca de tranquilidade, plena eficiência e paz, independentemente de ser homossexual ou de mudar sua condição.
Corbett (2009), psicólogo, psicanalista, editor e professor assistente do Programa de Pós-doutorado em Psicoterapia e Psicanálise da Universidade de Nova York, ao desenvolver seu texto sobre "O mistério da homossexualidade", assegura que um ponto decisivo no trabalho analítico "centra-se no reconhecimento de sua experiência inicial de gênero e de como essa experiência se entretece na trama da sua sexualidade" (Corbett, 2009, p. 159).
Fiorini (2016) diz que na situação analítica não se pode generalizar, é necessário olhar para a singularidade de cada analisando. Para alguns, as questões podem ser de gênero e para outros, sexuais. Ela chama atenção para a importante diferenciação que deve ser feita entre eu sou e eu desejo, embora possa haver superposições, e acrescenta que "eu sou" remete ao plano das identificações (transexualidade), enquanto "eu desejo" se reporta ao desejo (homossexualidade), uma opção de objeto mais do que de identidade de gênero.
Transcrevo uma frase dessa mesma autora, que nos orienta que a homossexualidade "pode responder a diferentes mecanismos. Por esse motivo, uma homologação absoluta com as perversões deveria ser revisada, pois pode conduzir a universalizar o conceito de homossexualidade sem considerar os mecanismos em jogo em cada sujeito". Em sua compreensão, "as homossexualidades podem responder a mecanismos neuróticos, perversos ou psicóticos e isto pode conduzir a diferentes processos de subjetivação" (Fiorini, 2016, p. 7).
As manifestações da sexualidade são múltiplas... e em relação ao amor valem todas as formas! Como diz a música de Lulu Santos: "Toda forma de amor valerá"!
Ressalto que a função da psicanálise não é solucionar as questões de ordem sexual, mas desvendar quais os mecanismos psíquicos que resultaram na escolha do objeto e traçar o caminho que vai desses mecanismos às disposições originais instintuais.
Na segunda cirurgia, Lili deseja ser uma verdadeira mulher e poder engravidar, diz ao médico. Há aqui uma referência simbólica entre feminilidade e fertilidade.
Quando Gerda chega ao hospital, encontra Lili passando mal e chora muito. Entre outras tantas linguagens simbólicas, a cena de fundo é uma janela que mostra a chuva caindo! Parece que o mundo também chorava a dor da perda de Lili.
No dia seguinte, Lili está morrendo. Gerda e o amigo Hans perguntam como ela se sentia, e a resposta: "Completamente eu mesma, o que eu fiz para merecer tanto Amor?". Pergunta para Gerda, sua sempre companheira.
Observamos que nas duas cirurgias a chegada de Gerda acalmou o desespero de Lili - o amor tem o poder de tocar as pessoas, como o flautista Mársias, que tocando a flauta encantava as pessoas!
Assistimos à dor e ao sofrimento, ao lado de muita realização, satisfação pela possibilidade de Lili se tornar uma mulher.
Lili pede que a leve para o jardim, dizendo estar totalmente completa, conta o sonho que teve naquela noite e considera o sonho mais lindo da sua vida. "Eu era um bebê nos braços da minha mãe. Ela olhava para mim e me chamava de Lili." Através do sonho, Lili realizava o seu desejo (Freud, 1900/1976c).
Einar/Lili nasceu em 28 de dezembro de 1882 em Vajle, Dinamarca, e morreu em 13 de setembro de 1931 na cidade de Dresden, Alemanha.
Seu túmulo em Dresden é visitado todo mês por pessoas que vão lhe prestar homenagens, são acadêmicos e ativistas da comunidade LGBT.
Depois da morte de Lili, Gerda viaja com Hans para Vejle e se surpreende ao encontrar a paisagem que Einar desenhava. No alto da montanha, a echarpe rosa de seda que Gerda estava usando e que Lili deixara para ela, solta-se do seu pescoço. Hans quer segurá-la, mas Gerda a deixa livre para voar na paisagem real, tal como uma representação do voo de Lili, agora livre ao vento de Vejle ao assumir sua verdadeira identidade.
Gerda segue pintando Lili. No amor, o outro não morre, permanece vivo na vida interior, nas lembranças de quem o amou. Penso que essas pessoas são especiais e, portanto, deixam registros nos que amaram e nos que as amaram.
A título de complementação biográfica, vale informar que Lili morreu em consequência de complicações pós-operatórias de sua quinta cirurgia de redesignação sexual, numa cirurgia de transplante de útero. Lili mantinha uma relação de casamento estável com um homem e desejava muito ter um filho. Gerda tinha uma companheira. Lili e Gerda permaneceram amigas.
O casamento entre Einar e Gerda foi anulado quando Lili foi reconhecida legalmente na sua identidade como mulher.
REFERÊNCIAS
Bonnet, G. (1999). A roda gira: sobre o transexualismo e a homossexualidade. In P. R. Ceccarelli (Org.). Diferenças sexuais (pp. 27-51). São Paulo: Escuta. [ Links ]
Corbett, K. (2009). O mistério da homossexualidade. Jornal de Psicanálise, 42(76),159-176. [ Links ]
Andrade, C. D. de (1986). As contradições do corpo. In C. D. de Andrade. Corpo (9ª ed., pp. 11-12). Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
Fiorini, L. G. (2016). Construção da subjetividade e novas configurações familiares. Debates atuais sobre as funções paterna e materna. Trabalho apresentado na SBPSP, no evento COWAP, São Paulo. [ Links ]
Freud, S. (1976a). Sobre a psicoterapia. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 263-278). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905). [ Links ]
______. (1976b). O ego e o id. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 11-83). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923). [ Links ]
Freud, S. (1976c). A interpretação dos sonhos. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4, pp. 1-360 ). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900). [ Links ]
Jones, E. (1989). Carta de Freud para a mãe de um homossexual. In E. Jones. A vida e a obra de Sigmund Freud. (J. C. Guimarães, trad., Vol. 3, pp. 201-202). Rio de Janeiro: Imago. (Carta escrita em 9 de abril de 1935). [ Links ]
McDougall, J. (1997). As múltiplas fases de Eros: uma exploração psicanalítica da sexualidade humana. (P. H. B. Rondon, trad.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Platão. (2012). O banquete. (E. Bini, trad.). São Paulo: Edipro. [ Links ]
Endereço para correspondência:
JURENICE PICADO ALVARES
Avenida Dr. Bernardino de Campos, 562/602
11062-002 Santos SP
tel.: 13 3237-0092
jurenice@uol.com.br
Recebido 07.06.2017
Aceito 23.08.2017
1 Trabalho primeiramente elaborado em 2016 para atividade da comissão cultural do Núcleo de Psicanálise de Santos e Região (NPSR), a qual coordena desde 2015, e apresentado na APM/ Santos em 22.10.2016. Foi revisado e ampliado em 2017 e apresentado na mesa Comunidade do Comitê Mulheres e Psicanálise/Cowap-IPA, intitulada Violência Cultural e Desenvolvimento Psicossexual, no XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Fortaleza, Ceará, 04.11.2017.
2 Linguagem dramatúrgica: ideias contidas na obra. O ofício de elaborar um texto com o objetivo de transportá-lo para o palco. Recuperado em 03.07.2017, em: http//pt.wikipdia.org.wiki/Dramaturgia.
3 Linguagem cinematográfica: conjunto de planos, ângulos, movimentos de câmera e recursos de montagem que compõe o universo de um filme. Cada item exerce seu papel na totalidade do que é um filme. Recuperado em 03.07.2017, em: http://cinemahistoriaeducação.wordpress.com.cinema.../linguagem-cinematográfica. onde Gerda é convidada a expor suas obras, e na Alemanha, em Dresden, cidade em que Einar se submeteu às cirurgias.