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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

Inveja, na paz e na guerra

 

Envy, in peace and war

 

 

Eva Maria Migliavacca

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Professora titular aposentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo faço uma reflexão a respeito do sentimento de inveja em momentos de paz e em estado de guerra. Para tanto, uso elementos da ficção e da realidade dos fatos. Utilizo um conto de Machado de Assis e parte da história de Alexander Yersin, que sintetizou a vacina contra o bacilo da peste. Somado a eles, incluo referências ao saque de obras de arte perpetrado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Diferentes aspectos da dinâmica da inveja, sobretudo como definida por Melanie Klein, entrecruzam-se nessas três fontes. A história de Yersin e o enfrentamento dos nazistas por parte dos "Monuments Men" inspiram pensar em antídoto e contraponto à virulência invejosa.

Palavras-chave: Inveja. Machado de Assis. Alexander Yersin. Nazismo. Monuments Men


SUMMARY

In this article I reflect on the sentiment of envy in times of both peace and war. To do so, I take elements from fiction and from reality. I refer to a short story by Machado de Assis and biographical details of Alexander Yersin, one of the discoverers of the bubonic plague bacillus. Added to these, I refer to the looting of art works by the Nazis during World War II. Different aspects of the dynamics of envy, especially as defined by Melanie Klein, intertwine in these three sources. The story of Yersin and the the way the Monuments Men confronted the Nazis inspire us to think of an antidote and counterpoint to the virulence of envy.

Keywords: Envy. Machado de Assis. Alexander Yersin. Nazism. Monuments Men


 

 

Há um conto de Machado de Assis com o título nada convidativo "Verba testamentária". Começa-se a lê-lo um pouco por inércia e um pouco pelo prazer de continuar a ler a sequência de contos publicada naquele volume. Como acontece com certa frequência em escritores de primeira linha, o interesse aumenta a cada frase e, sem perceber, fica-se inteiramente capturado pelo texto (Pirandello ainda é imbatível nisso, pelo menos em seus contos). "Verba testamentária" faz parte desse grupo.

O início do conto traz a última vontade de Nicolau B. de C. quanto às providências a serem tomadas para seu funeral. Ele determina que seu caixão deva ser fabricado por certo Joaquim Soares, que, logo se vem a saber, é um péssimo operário em seu ofício. Honrado, Joaquim realiza a determinação do falecido, recusa remuneração e só pede a cópia da verba, para pendurá-la em seu estabelecimento. A sociedade se espantou com o desejo do morto, justificou-o como sendo um ato de magnanimidade, mas o assunto causou rebuliço, ou, como diz Machado, "reboou por muitos dias na imprensa da Corte, donde passou à das províncias", até ser esquecido - como costuma acontecer. Machado não pretende restaurá-la, pois "a vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito. Obra de lápis e esponja". No entanto, pega a pena para mostrar o que chama de "uma das maiores curiosidades mórbidas deste século". E conta a vida de Nicolau.

Desde tenra idade Nicolau manifestou atos que mostravam um "vício interior, alguma falha orgânica". Ele perdia completamente o controle e corria a destruir os brinquedos de outros meninos, assim que os via. Quanto mais caro e bonito o brinquedo, mais forte seu ímpeto; dava socos e pontapés também no infeliz dono do brinquedo. Não atacava os iguais ou inferiores aos seus, mas os melhores nunca escapavam. Qualquer criança que se destacasse em alguma coisa era alvo de seus ataques. Não apenas os brinquedos, roupas também. E as caras dos meninos bonitos saíam arranhadas, quebradas. Ninguém compreendia e não houve corretivo, por mais severo que fosse, que mudasse o "fato mórbido, oculto e desconhecido" que corroía o menino.

Ele mesmo padecia dores cruéis, sem que a família percebesse. Muita pancada tomou Nicolau, inutilmente. A solução foi trancá-lo em casa, onde ficou recluso por alguns meses. Foi um alívio, pois Nicolau era simplesmente um anjo de doçura e obediência. Após aqueles meses, foi à escola. Apesar de certo controle exercido pela vara do professor, Nicolau mergulhou em rixas, sangue, ódios, ninguém se salvava. Aos trancos e barrancos aprendeu alguma coisa, mas nada metódico, tendo que desistir de qualquer universidade. Pois o menino se tornou homem, a duras penas, mas seu mal o acompanhou vida afora. Adulto, não atacava mais os outros, mas sofria violentamente diante de alguém mais gentil, de uma roupa vistosa, de gestos admiráveis. Mordia os beiços, sangrava-se com os dentes, cambaleava, babava, chutava os cães da casa, batia a cabeça, espancava os escravos, comia mal. Tentou vida na política, mas ao ver um ministro sendo festejado, cambaleou, não conseguia sequer olhá-lo, ficou vesgo, doíam-lhe as pupilas, ficou verde. Fugiu. Só não sofria quando em casa com amigos - os mais antipáticos e medíocres da sociedade. Ficava bem em sua companhia, mesmo reconhecendo sua vulgaridade. Não sofria, emprestava-lhes dinheiro, aceitava os mimos, suportava-os. Chegou a casar-se com bela moça prendada. Não demorou em surgirem conflitos com as graças da mulher. Só não aconteceu a separação porque a moça faleceu prematuramente. Após outras tentativas de convívio em sociedade, Nicolau sucumbiu. Foi ficando cada vez mais recluso e mergulhado na solidão. Só isso o acalmava um pouco. O cunhado e a irmã concluíram que a moléstia de Nicolau era "um verme do baço que se nutria da dor do paciente, uma secreção especial produzida à vista de certos fatos, situações ou pessoas". "Se pudéssemos lhe dar um baço novo...", dizia o cunhado. Impossível. Nicolau vivia continuamente verde, vesgo, padecendo atrozmente. A ribanceira era inevitável, não suportava aplausos no teatro, não podia fazer certas visitas, não lia bons livros; passou a vestir-se em andrajos mesmo podendo pagar os melhores alfaiates; despediu um excelente cozinheiro após magnífico jantar. A secreção do baço se perenizou e o verme se reproduzia aos milhões, "teoria que não sei se é verdadeira, mas, enfim, era a do cunhado". Adoeceu. Rejeitou remédios dos melhores médicos. Morreu. Abre-se o testamento e lá está a verba testamentária encomendando o caixão. "Joaquim Soares? - bradou atônito o cunhado. Mas os caixões desse sujeito não prestam para nada..."

Nesse conto, do qual fiz pálido resumo, Machado de Assis faz o retrato de um personagem. Como todo personagem literário, em especial em um conto, fica destacado um ponto, há um recorte, é parcial e serve ao objetivo pretendido. Nesse aspecto, "Verba testamentária" é simplesmente primoroso. Possui seu lado cômico, tragicômico, amargo, induz a reflexão, mas é sempre um retrato parcial, que não contempla a totalidade de uma personalidade - se é que isso seria possível na literatura. Desperta o riso, mas também certo amargor, pois, mesmo sendo uma ficção, contém dolorosa verdade a respeito da condição humana; num texto literário, apreciamos, mas no dia a dia esquecemos. Pelo menos até que novas relações sejam estabelecidas, novas associações, novos insights.

Quando se trata da vida real, entramos em seara mais escura. Se vamos para extremos, o escuro fica impenetrável. Quando "Nicolaus" ocupam posições de poder, a escuridão se espraia e atinge a muitos, que ficam impotentes para dela escapar. Evidente que um emaranhado de motivos e explicações, por mais completos que sejam, sempre são insuficientes para se compreender certos eventos. E perto de algumas feras em pele humana, Nicolau só desperta compaixão e simpatia.

Recentes publicações contam o saque das obras de arte perpetrado sob a batuta abominável de Hitler e os nazistas, seus asseclas, dos quais os judeus foram as principais vítimas, ainda que não as únicas. Certamente também não só vítimas no que diz respeito ao roubo de obras de arte, mas limito esse texto a esse aspecto. Provavelmente não existem nem substantivos nem adjetivos suficientemente precisos para descrever o que se passou durante a Segunda Guerra Mundial. Talvez Jan Karski (2015), testemunha ocular de alguns daqueles horrores e que publicou um dos primeiros depoimentos denunciando o tratamento dado aos judeus pelos nazistas, seja quem melhor se aproxima, quando, em conferência pronunciada em 1981, diz que "a humanidade cometeu um segundo pecado original. Esse pecado assombrará a humanidade até o fim do mundo" (p. 8)1.

Hitler considerava-se um artista incompreendido; na verdade, era medíocre. Decidiu apossar-se de tudo que podia e não podia para compor seu idealizado museu de arte em Linz, sua cidade natal na Áustria. A França foi o país mais espoliado, mas não só. Mesmo as obras de museus de Berlim foram simplesmente confiscadas pelo Führer e seus asseclas, dos quais Goering foi o mais cobiçoso. Grandes e pequenos colecionadores e grandes e pequenos museus foram alvo da sanha nazista. O resultado da guerra é conhecido. Ao ver-se à beira do desastre irreversível, Hitler ordenou que as obras fossem destruídas.

Destruídas, simplesmente. Não só as obras de arte, mas as pontes, os monumentos, os depósitos de víveres, riquezas, comunicações, na Alemanha e fora dela ("Paris está em chamas?"), deveriam ser reduzidos a escombros para que nada restasse. "Todas as instalações militares, de abastecimento, de transporte, de comunicações e de abastecimento de alimentos, assim como todos os recursos dentro do Reich [...] devem ser destruídos", palavras incluídas no "Decreto Nero" de 19 de março de 1945. Se não posso ter, ninguém mais o terá. (Em 30 de abril Hitler se suicida.) O argumento era dificultar o avanço dos aliados. Nada de valor devia cair nas mãos dos inimigos e isso incluía as obras de arte, milhares e milhares de peças de toda ordem, pinturas, esculturas, tapeçaria, objetos de uso diário, joias, talheres, prataria, vasos, roupas, móveis, o que tivesse algum valor artístico, incontáveis objetos preciosos, bilhões em ouro, tudo saqueado e escondido tanto em castelos de contos de fadas quanto em profundas minas escavadas em montanhas.

Já no caminho de exercer pleno poder, Hitler mostrara suas garras. Recentemente o Museu Lasar Segall em São Paulo nos deu uma amostra do que foi a exposição "Arte Degenerada", de 1939, organizada sob as ordens da mente distorcida de Hitler. Fotos e vídeos dão uma ideia da riqueza que cobria as paredes. Artistas de primeira linha desordenadamente amontoados. Simultaneamente, foi feita uma exposição em local próximo sobre a "Grande Arte Alemã", na mesma cidade, no mesmo ano. Na primeira, a "Degenerada", pessoas se acotovelavam, enquanto a segunda ficou praticamente "às moscas". Curiosidade mórbida? Secretos sentimentos de reconhecimento do valor das obras e artistas condenados? De qualquer modo, uma prévia do que viria pela frente.

Melanie Klein descreve a inveja como manifestação de impulsos destrutivos de raízes profundas, arcaicas. Associada à voracidade, sempre insaciável, a inveja consiste em uma ânsia pelo bom do outro, entrelaçada com forte desejo de destruir devido à falta de um sentimento básico de satisfação íntima, fruto de frustrações iniciais que desencadeiam ódio e ressentimentos contra tudo o que é bom e belo. O sentimento de dependência do outro e de sua bondade e criatividade é tão intolerável, sob a égide da inveja, que o invejoso busca destruir exatamente essa dependência, espoliando o outro daquilo que ele considera desejável. Se não pode apossar-se, ataca e destrói tudo que deseja para si. Isso inclui o próprio detentor das qualidades invejáveis.

Ainda que elementos dessa descrição possam ser encontrados no saque das obras de arte pelos nazistas, é escusado dizer que reduzi-lo à expressão de um sentimento invejoso seria de uma superficialidade atroz. No entanto, é um elemento possivelmente presente, considerando-se a definição da inveja como um sentimento que não suporta o bom no outro e tende a atacar e destruir aquilo que não pode ter e que ocupa o lugar de um objeto idealizado.

Ao descrever a dinâmica da inveja arcaica, Klein introduz a capacidade de experimentar gratidão como seu antídoto. É pela gratidão para com a bondade do objeto e pela capacidade de usufruto dos benefícios que dele se aufere, que a inveja fica amenizada e até neutralizada. O desenvolvimento e crescimento mental seriam a melhor evidência dos efeitos da capacidade de ser grato e preservar o valor daquilo que se compartilha com o objeto. Como maravilhosamente define Milton, pela boca de Satã, que é incapaz de sentir aquilo que diz: "uma alma agradecida, se sempre deve está sempre pagando, que ao mesmo tempo se endivida e salda" (1994, p. 197).

Entretanto, qual seria a contraparte da inveja? Qual a condição ou o sentimento humano que expressa uma relação com a vida por parte do sujeito, que desvela um caráter ou uma personalidade na qual a inveja seria tão mínima que praticamente não seria percebida?

Houve um grupo de homens admiráveis, que infelizmente ficaram e ainda são bem desconhecidos do grande público, os chamados Monuments Men, voluntários que assumiram a tarefa de "salvar o máximo possível da cultura da Europa durante os combates" (Edsel, 2011, p. 20)2, ainda que com recursos muito precários. Graças a eles, uma grande quantidade de obras de arte foi recuperada e restituída a seus museus de origem e a seus legítimos donos. Não todos, porém. Muitos morreram no horror dos campos de concentração, sem deixar herdeiros que pudessem reivindicar seus direitos. Tantas obras ficaram indevidamente semiocultas em museus famosos, que não divulgaram sua posse e não queriam devolvê-las a seus antigos donos (Feliciano, 2013). As injustiças não terminaram com a guerra. Alguns, como Paul Rosenberg e seus herdeiros (para dar apenas um exemplo, dentre tantos), tiveram que recorrer a tribunais para reaver quadros de sua coleção roubada e que ficaram espalhados pelo mundo (Feliciano, 2013). Muitas obras se perderam, ou estão escondidas, ou foram destruídas, sabe-se que muitas foram queimadas, e outras tantas têm paradeiros desconhecidos, perdas irreparáveis de realizações que representam aquilo que o homem tem de bom. Os Monuments Men, e homens de boa vontade depois deles, fizeram frente, na medida do possível e um pouco mais, à indescritível destruição sofrida naqueles anos. Com homens e mulheres (como a notável Rose Valland, do Jeu de Paume em Paris) de 13 países, intrépidos e persistentes, o Monuments merece ser mais bem conhecido e reconhecido, se por mais não for, pela generosidade com que se conduziram.

A chamada vida real abre outras possibilidades. Recentemente foi lançado o livro Peste e cólera (2017), de Patrick Deville, sobre o bem pouco conhecido, fora de sua área, Alexander Yersin. A vida e a pessoa de Yersin podem ser mal contidas em palavras; dizer "admirável" é pouco. Ele era um pesquisador, um explorador e um desbravador criativo e incansável. Dentre tantas realizações, Yersin descobriu o bacilo da peste e desenvolveu a vacina contra a mesma. Yersinia pestis, o nome do bacilo, que o fará ser mais lembrado, mas também as pesquisas sobre tuberculose e difteria, que lhe valeram prêmios e reconhecimento. Franco-suíço, trocou a França, sua pátria de adoção, pela então Indochina, hoje Vietnã, e estabeleceu-se em Nha Trang. Surpreendeu a todos, ao abandonar a brilhante carreira de laboratorista e professor e pesquisador no Instituto Pasteur para lançar-se ao mar e às florestas. Um explorador. Cerca de cinco anos depois de deixar a França, foi chamado de volta por Pasteur para pesquisar o bacilo da peste em Hong Kong, numa das terríveis investidas dessa doença tão antiga quanto aterrorizante e devastadora. Em 1894, Yersin descobre que a peste é transmitida pelos ratos, mas não identifica o vetor da epidemia, a pulga - isso virá um pouco depois, com o pesquisador Paul-Louis Simond. Depois da vacina contra a peste, instalado em Nha Trang, para onde retorna, desenvolve uma infinidade de atividades: pecuária, agricultura, meteorologia, agronomia tropical, etnologia, geologia, cartografia, botânica, medicina, usa os nativos da terra como colaboradores, ensina, forma, informa - hoje pouco lembrado mundo afora, é um herói naquela terra. Mesmo com o fim da Indochina e a instituição do Vietnã, todos os lugares, logradouros e monumentos com seu nome ficaram preservados e em 2014 foi inaugurada uma universidade para a qual deram seu nome. Fazem-se festas em sua homenagem na data de sua morte. Salvou milhares de vidas com suas vacinas e pesquisas. Viajava de Nha Trang para a Europa em várias ocasiões. Avesso a homenagens, não recusava as honras europeias, sobretudo porque isso lhe dava financiamento para continuar seu rumo de pesquisador independente. Em 1914 estoura a Primeira Guerra Mundial: Deville comenta como o século XIX parecia prometer um novo século de descobertas científicas e de progresso, mas que o século XX "tem dezessete anos e já é um verdadeiro delinquente" (2017, p. 166). Yersin viveu a primeira guerra e metade da segunda, até 1943. Ele fica longe, mas sofre seus efeitos, como o resto do mundo. Não estaciona, porém. Um colaborador, Noel Bernard, a quem confia o Instituto Pasteur da Indochina e que mais tarde torna-se seu biógrafo, comenta que Yersin, mesmo estando interessado em certa pesquisa, cede lugar para outro que se apaixone por ela. "Não há certamente muitos outros exemplos de tamanha generosidade. Ele se apaga para oferecer aos outros a liberdade de iniciativa que para ele também é muito importante" (Deville, 2017, pp. 116-117). Suas realizações, porém, falam muito mais alto do que qualquer comentário. Viveu 79 anos. Uma vida que nos faz pensar quanta coisa pode ser feita em uma vida. Um homem que não retinha para si tudo o que compunha seu ser. Ganhou vários prêmios e honrarias. Nunca foi lembrado pelo Nobel.

Citei os Monuments Men e Alexander Yersin por pensar que, mesmo de acordo com Klein, quando apresenta a capacidade de gratidão como antídoto contra a inveja, sua contrapartida é a generosidade. "Generosidade é a virtude do dom", diz Comte-Sponville (2004, p. 97). Nicolau carece dessa virtude até ao âmago. Entre os nazistas e seu chefe, como disse, certamente é virtude desconhecida. Ainda Comte-Sponville, mais à frente: "A generosidade é ao mesmo tempo consciência de sua própria liberdade e firme resolução de bem usá-la. O homem generoso não é prisioneiro de seus afetos nem de si" (2004, p. 105). Cita Descartes: "São inteiramente senhores de suas paixões, particularmente dos desejos, do ciúme, da inveja..." (2004, p. 105). São palavras que, a meu ver, cabem tanto para como são descritos os Monuments Men quanto para Alexander Yersin. Suas ações ultrapassam as do homem voltado para si mesmo e preso a seus interesses e desejos imediatos. É uma virtude, continua o autor, que se torna fonte de alegria e de autoestima para o homem capaz de vivê-la. Não porque ele busca isso, mas como decorrência natural. É interessante ler as cartas que os Monuments Men escreveram a suas amadas esposas, durante a guerra. É possível identificar tais sentimentos com clareza - mesmo em meio à tristeza da destruição moral e física de todo um país e da descoberta de campos de concentração, que levou muitos soldados a não conseguirem comer durante dias e se sustentarem à base de uísque. Yersin também escreveu inúmeras cartas a sua mãe e a sua irmã, esclarecedoras para conhecê-lo e para identificar seu caráter generosamente empreendedor.

Como disse acima, generosidade é uma virtude que não tem lugar num caráter como o de Nicolau, de Machado de Assis. Este descreve bem a inveja como elemento destruidor do bem-estar do próprio invejoso. Doloroso sentimento exatamente por isso. Quando a cisão é muito profunda, tudo se volta contra o outro, mas não significa que o ódio deixe de corroer o íntimo de quem ataca. Pois, ao atacar, já está destruída toda bondade que poderia trazer uma alternativa. Esse talvez seja seu pior castigo: carrega o mal dentro de si e o tormento interior é corrosivo. Justamente a bondade é o principal alvo da inveja - não a bondade moral, mas aquela que engloba as qualidades amáveis, criativas e generosas do bom objeto como descrito por Klein. O Nicolau de Machado vai ao extremo: estende o ódio até para depois de morto. Não suporta a ideia de ser enterrado num caixão de boa cepa e feitura, precisa apodrecer em caixão podre. Por mais cômica que essa solução possa ser, também ilustra muito bem a total incapacidade de dar a si mesmo e receber de outrem algo que possa ser retido com suas qualidades admiráveis.

Quando se trata das ações dos nazistas em relação às obras de arte, porém, o aspecto predominante é o ódio que destrói e conspurca tudo o que tem valor. Não há lugar para a gratidão ou para a generosidade. Só o que existe é um movimento de espoliar o outro e apossar-se de seus bens; não sendo possível destruí-los. Como classificar esse movimento? Como assinalei acima, dizer inveja é pouco. Negá-la, contudo, seria excluir um traço que ajuda a descrever uma mentalidade arrepiante, na qual predominam o ataque e a destruição. A voracidade, a espoliação, a destrutividade e a malignidade imperam onde falta a mínima capacidade de empatia e de humanidade com o outro. Feliciano (2013) é mestre em contar tais atos dos nazistas de maneira enxuta e precisa. Ele não se detém em análises de caráter psicológico e muito menos apela para a emoção fácil, sendo ótima fonte de informações.

Todos somos dotados dessas características que compõem a natureza humana. Para o bem ou para o mal, lidamos com e enfrentamos a nós mesmos todo o tempo. Nenhuma análise elimina ou acrescenta qualquer dom ou qualquer falta na mente do indivíduo, mesmo que seja receptivo a ser analisado. Isso sem contar que análise não é panaceia, pois certamente não dá conta de tudo, longe disso. Talvez o que ainda nos acene com uma alternativa à barbárie sejam de fato a consciência e a subsequente disposição a ocupar-nos com aquilo que ela nos mostra de nós mesmos.

Termino com uma citação. Comte-Sponville (2004, p. 113) conclui sua exposição sobre a generosidade com um parágrafo que fala por si:

A generosidade, como todas as virtudes, é plural [...]. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se equidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas, seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade.

 

REFERÊNCIAS

Assis, M. (1960). Verba testamentária. In Contos selecionados (Vol. I, pp. 49-60). Rio de Janeiro: Sedegra.         [ Links ]

Comte-Sponville, A. (2004). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Deville, P. (2017). Peste e cólera. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Edsel, R. M. & Witter, B. (2011). Caçadores de obras-primas. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Feliciano, H. (2013). O museu desaparecido - A conspiração nazista para roubar as obras-primas da arte mundial. São Paulo: WMFMartins Fontes.         [ Links ]

Karski, J. (2015). Estado secreto. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Klein, M. (1961). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Milton, J. (1994). Paraíso perdido. Belo Horizonte: Vila Rica.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
EVA MARIA MIGLIAVACCA
Rua Joaquim Antunes, 767/51
05415-012 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-3177
evamigliavacca@gmail.com

Recebido 05.03.2018
Aceito 28.05.2018

 

 

1 Em junho de 1982, Jan Karski, que não nasceu judeu, mas se autodenomina judeu-cristão e católico praticante, recebeu o título de "Justo entre as Nações", outorgado pelo Instituto Yad Vashen. Em 1994, recebeu a cidadania honorária israelense. Seu livro, publicado em 1944 e só traduzido no Brasil em 2015, é profundamente tocante. Não trata de obras de arte, mas de pessoas.
2 Em 2013 foi feito o filme Os caçadores de obras-primas, baseado neste livro. Representado por atores famosos, poderia ter sido um grande filme, o que não é, mas ainda assim dá uma ideia razoável do que aconteceu.

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