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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Elogio à irreverência1

 

A praise to irreverence

 

 

Eduardo Rodrigues de Lara

Licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e psicanalista, membro do Departamento "Formação em Psicanálise" do Instituto Sedes Sapientiae e coordenador do Núcleo de Fomento à Filosofia nesse departamento. Coordenador do grupo Estética e Psicanálise com psicanalistas em consultório particular. Clinicamente atua em consultório particular e é coordenador do Grupalavra (AT e psicanálise)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo de uma longínqua pesquisa sobre a identidade desde Eduardo Viveiros de Castro, do dualismo e do perspectivismo em Nietzsche, e do poder do patriarcado e do messianismo em Oswald de Andrade, aproximamos a reverência aos fenômenos da perversão ao fazermos um elogio à irreverência em seu sentido amplo: do humor à crítica da norma. Assim, buscamos refletir sobre a psicanálise instituída e seus mecanismos de formação, bem como sobre as perigosas seduções que o saber apresenta aos psicanalistas e que podem levá-los à traição dos preceitos da própria psicanálise em nome de sua suposta preservação, já que valorados por preconceitos, em sentido nietzschiano.

Palavras-chave: Irreverência. Perversão. Verdade. Valoração. Instituição.


SUMMARY

Starting from a far-reaching research on identity from Eduardo Viveiros de Castro, from Nietzsche's dualism and perspectivism, and from the Power in the sir / slave relationship, from patriarchy and Messianism in Oswald de Andrade, we approach the Reverence to the phenomena of perversion by commending Irreverence in its broadest sense: from humor to criticism of the norm. Thus, we seek to think over the established psychoanalysis and its mechanisms of "formation of a psychoanalyst", as well as over the dangerous seductions that the knowledge presents to psychoanalysts and that can lead them to betrayal the precepts of psychoanalysis itself in the name of its supposed preservation, since valued by prejudices, in the Nietzschean sense.

Keywords: Irreverence. Perversion. Truth. Valuation. Institution.


 

 

A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu. Que é o tabu senão o intocável, o limite? Enquanto, na sua escala axiológica fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias de seu conhecimento até Deus, supremo Bem, o primitivo instituiu a sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso uma radical oposição de conceitos que dá uma radical oposição de conduta. E tudo se prende à existência de dois hemisférios culturais que dividiram a história em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o mundo do homem primitivo. Este, o do civilizado. Aquele produziu uma cultura antropofágica; este, uma cultura messiânica. (Andrade, 1950/2001a, p. 101)

Ele é irreverente! Usa gravata florida no ambiente cinza de um escritório de advocacia; e no Fórum - onde se lê "proibido entrar de bermuda", enquanto faz um calor de rachar - entra de saia rodada. É no mínimo curioso o fato de usarmos o oposto de reverência para designar alguém bem-humorado. Há caminhos interessantes no campo semântico, em que se desliza de um sentido ao outro: reverência derivaria do verbo em latim vereri, ter medo de algo, respeitar; irreverente, portanto, seria alguém que não teria medo ou não teria respeito, o que se estende do corajoso ao mal-educado. No entanto, cotidianamente, grudamos ao termo o humor: irreverente é também aquele que faz graça. Imaginando esse alguém perante uma autoridade, uma norma legal ou os bons costumes, seria aquele que, por sua atitude, daria a possibilidade de recriar a relação com o órgão de controle; daí que em Chistes e sua relação com o inconsciente (Freud, 1905/1995), Freud descreve o palhaço - sujeito espirituoso, com witz - como aquele que dá a volta na censura e reverte o desprazer em prazer, enriquece-se na tragédia.

Há algum tempo vem me ocupando o temor de talvez estar escutando os seríssimos Bem e Mal encarnados disfarçadamente no discurso psicanalítico, ou melhor, dos psicanalistas, do meu e meus colegas: ali, escondido no surto de melhorar alguém - como se sofrer não diferisse muito de ser ruim - ou em pensamentos a partir de pressupostos de que "a psicose é pior do que a neurose", e que, portanto, um psicótico seria pior do que um neurótico, o que é ainda mais temerário. Vai que alguém vem com a ideia de uma câmara de gás... Não estaríamos, com a moralização e hierarquização da patologia, próximos demais de uma semente totalitária, de uma perversão da psicanálise, ou, no mínimo, de uma traição? Afinal, a psicanálise nasceu destemida, corajosa, mal-educada - irreverente? - em relação à moral vigente: haveria de ter-se aberto o entendimento de que a patologia estaria muito além de uma doença enquanto encarnação do mal no paciente para um debruçar-se do analista sobre o sofrimento do Outro; haveria de promover o retorno do recalcado cultural - o corpo e o sexual - e de, por isso, enfrentar o susto da identidade cultural diante desse seu novo Outro estranho: a psicanálise e a medicina - encontro regado de medo do extermínio e de expectativa de crescimento. A criação desafiou o gosto de seu próprio criador a empreender um campo de conhecimento que apontava para fora do que era considerado o campo do conhecer: a ciência e o ideal Iluminista - sem dúvida, uma boa dose de criatividade capitalizada pela irreverência... Seria mesmo? Bem, ao menos a questão estava posta. Assim é que perguntamos sobre a traição de seu próprio projeto quando a moral lhe invade pelos corpos dos psicanalistas que reverenciam a psicanálise com seus prejuízos - preconceitos e perdas - para serem bons, corretos, obedientes segundo uma régua institucional: a norma (Saleme, 2008). A formatação invadindo sua formação e sua atuação - pervertendo ou corrigindo (?) sua ética diante do estranho, estrangeiro; diante do Outro. Menos grave seria se isso prevalecesse somente durante o percurso de formação institucional, mas é na atuação clínica que se espalha(ria)m todos os estilhaços da bomba. Porém, a formação e a clínica, a forma e a ação, uma não vive sem a outra; e, como veremos, a questão pode estar, além delas, em uma tal Weltanschauung. Um palavrão complicado...

Esse discurso de pré-juízos seria debitário a quê? A que(m) ele reverencia? Sem dúvida essas são questões de base para a presente reflexão que merecem maior atenção e vêm sendo elaboradas muito mais cuidadosamente em outro trabalho, no prelo. Nos limitaremos a dizer, para este texto, que cumprem o papel de deixar evidente a relevância de problematizarmos a hipótese de a própria reverência e seus tentáculos serem manifestações perversas em um percurso analítico - transferencial e formativo - com a luz incidindo sobre o psicanalista que se considere em formação ou não. Nós os consideraremos todos nesta condição: o que é oposto à morte não é a vida, mas o nascimento; a vida é o que está entre, é o processo de tornar-se morto, estanque, formado, findo. Não é possível estar vivo e formado ao mesmo tempo.

Para tal empreitada, e sem um exemplo clínico, só poderíamos nos referir à perversão enquanto estrutura ou enquanto fenômeno, que durante sua erupção traz alguns elementos em relevo aos olhos de alguém. Por razões que não cabem aqui, optaremos por este último modo de abordagem e passaremos a examinar aspectos da perversão em paralelo com a postura da reverência em alguns eixos que consideramos importantes: no primeiro plano, a relação Eu/ Outro e a fixação e o conservadorismo em choque com a criatividade; no segundo plano, a Lei, a norma instituída. Oswald de Andrade, Piera Aulagnier e Maria Helena Saleme, enquanto provocadora da questão, farão parte explícita do diálogo. Ecos de Nietzsche, no mínimo, serão ouvidos, pois são ruidosos, bem como os de Viveiros de Castro. A ver... É possível e provável, por exemplo, que tenhamos que fazer aqui uma espécie de transgressão do conceito de perversão e mesmo de patologia, se "transgredir é uma ética da criação" (Saleme, 2008).

Para quem "a alegria é a prova dos nove" (Andrade, 1928/2001b), deve ser tranquilo estar aqui, em um elogio à irreverência. Mas Oswald sabia também falar sério, academicamente. Obviamente, em 1950, quando se submeteu à prova para ingressar no quadro de professores da Faculdade de Filosofia da usp com a tese ácida e criativa ressoando A crise da filosofia messiânica (Andrade, 1950/2001a), viu a regra da prova ser modificada. Provavelmente porque os avaliadores (que atribuem valores) teriam notado que ele, Oswald, ameaçava modificar geral e por dentro - a regra e a prova. Oswald não pôde em 1950, e nunca poderá no Brasil. O transgressor é o próprio recalcado, barrado na portaria. Pensar uma possível relação entre a reverência e a perversão com Oswald de Andrade: ele transgrediu a condição brasileira enquanto a do colonizado diante do Outro colonizador e abriu as portas ao enriquecimento da "identidade" nacional recolocando o corpo em foco, por via do qual permaneceriam circulando entre nós resquícios da antropofagia como Weltanschauung, uma visão de mundo de traços Tupi; em que radicalmente sequer cabe pensarmos em termos de "identidade", mas de movimentos de diferenciação e singularidade. O ritual de devoração antropofágica parte da premissa da alteridade: a de que o Outro, o estrangeiro, o estranho, tem tanto valor que suas características podem enriquecer o que seria uma identidade; ele não é visto sob um olhar ameaçador, e por isso não é exterminado, dominado, comido por gula ou fome, mas devorado justamente para que o deglutidor incorpore e incremente suas características. O estrangeiro tem muito valor! O estranho tem muito valor! O Outro tem muito valor! E aí se mescla a esse caldo cultural o Ocidente2 - com sua civilização - que seduz os modos de constituição à identidade e na oposição entre o Ser (Bem) e o Não Ser (Mal)3. Essa colagem do Ser ao Bem é que é o prejuízo, o preconceito Ocidental; e é moral porque atribui valor. Guia a uma postura defensiva diante do Outro/estranho/estrangeiro que só pode ser seu escravo ou seu senhor. É domesticar ou ser domesticado: a linha mestra da relação Eu-Outro, no Ocidente, onde a identidade Eu é a chave.

O Outro justamente é o que não é. Como não é o Eu, passa a ser o Outro; e enquanto ameaça o que é - a identidade, o Bem - deve sofrer um olhar de desvalor, representando o Mal. O Mal, secretamente identificado com o Outro, deve ser dominado e exterminado e descartado. Haja vista a xenofobia de hoje e o imperialismo de sempre, um Outro assim não é incorporado. E não porque os ocidentais são do Bem, mas porque ele evoca e revela o conflito interno do sujeito moderno e Ocidental: é o Eu diante do desejo, a França oficial diante do Islã, o jesuíta diante dos pelados "índios" e - trabalhemos para que não se realize - o psicanalista confrontando a loucura. Há maneiras e maneiras de se confrontar. O psicanalista Tupi confrontaria ficando de "frente com"; mantém ambos, enriquecendo-os. O psicanalista messiânico confronta como na Primeira Guerra Mundial: luta contra, extermina; mantém-se, mata o Outro, e ninguém cresce, só ele permanece. Esse modus operandi de conservar-se, rejeitar o novo, e, portanto, a finitude e o apodrecimento da carne, parece ter estreita relação com a perversão: como se para manter algo tivesse que rejeitar o tempo, pois o que virá ameaçará com o estranho inesperado encarnado em Outro corpo.

Sim, é justa a luta pela sobrevivência, manutenção e preservação da vida: e assim há ambiguidade na resistência; resistir… Assumindo o perigo de, com isso, girar em falso em uma roda-viva morta. Preservaremos uma psicanálise morta? Se a questão é a sobrevivência, parece que Oswald aponta que viver a vida em vida vem pela alegria, criatividade, antropofagia como visão de mundo, irreverência; que a transgressão estaria a seu lado, e não do lado da perversão, como se pensa. A mãe de pênis seria mais além do supersupervisor e uma instituição "Messias", dona da verdade. Formada, completa. Perversão é reverência elevada ao cubo. Uma prisão disfarçada de segurança. Deveríamos formar aqui, no Brasil, uma espécie de síntese entre a tese Tupi-antropofágica e a antítese Ocidental-messiânica: modos radicalmente opostos de lidar com a existência, com estilos de vir-a-ser e, portanto, com o Outro: a primeira está na linha da singularidade e da alteridade; e a segunda, da identidade. Aceitarmos as preconcebidas teses ocidentais de nos localizarmos entre o ser Messias ou messiânico já nos colocaria no lugar do servo. A reverência como forma de preservar a pureza da psicanálise, da boa filosofia, trai o próprio projeto; e abriremos franquias de pensadores de um tal primeiro mundo - portador do Bem - corporificadas em instituições e em nossas próprias mentes? Deixaremos de crescer e de contribuir com o crescimento do Outro e de todos? De jogar o jogo competitivo? Ilusão pensar em exploração, em pagar débito com "os fiadores": assim, em nome da vida, ironicamente, morrem todos! E com corpos conservados intactos em éter. O débito, então, está em relação à identidade, em ser algo, e ser algo do Bem: tais categorias, uma vez instituídas, cobram ser preservadas. Ao psicanalista esta é a questão primordial: para utilizarmos modos de existência que escapem ao modo ocidental, podemos pensar que o psicanalista deve ser como o índio, que nem entende-se como "sendo-o", já que "ser índio" é exatamente um interminável e minucioso exercício de diferenciação (Viveiros de Castro, 2006, https://pib.socioambiental.org), de devir; é o oposto de estar formado. É vida, e não nascimento. O psicanalista deve ser aquele que não responde à questão "O que sou Eu?", mas que eleva o problema contra ela, anunciando que ela é, antes, um aglomerado de respostas preconcebidas, e não uma pergunta.

Proliferar a vida - a mais exata concepção da criação - ou eternizá-la parece mesmo ser uma questão moral, como já anunciava Nietzsche em Além de bem e de mal (1886/2005). Desloquemos o eixo da vida, da reverência para a irreverência. A perversão e a morte em vida via reverência passam pelo uso do Outro exatamente naquele eixo senhor-escravo: para o regresso ao mesmo, uma espécie de movimento estático. Um ciclo vicioso. Se a diferença é o que cria uma tensão criativa, é o Outro a encarnação da diferença enquanto alteridade, representante da possibilidade do enriquecimento de um Eu, que, por outro lado, faz-se na identidade e dificilmente vislumbraria escapar do que o fundamenta. Falta-lhe ouvir: a vida é devoração pura. A antropofagia nos uniria enquanto visão de mundo em algum lugar dos traços mais vividos e vívidos do que a memória: lugar que, quiçá, é o corpo.

Há uma diferença importante, mesmo que sutil: o messiânico é aquele que ama obedecer, reverenciar uma lei ou norma instituída como boa; já o fenômeno perverso parece reverenciar uma norma idealizada e fora da ordem moral instituída, e talvez por isso surja aos olhos dos outros como libertário. Mas ambos se prendem em grades de condomínio, matam-se pela preservação da vida.

E por uma crítica da reverência vamos chegando a um elogio à irreverência. Criticar e analisar uma postura dita psicanalítica não é destruí-la (a psicanálise), mas, sim, (re)investi-la de seu próprio projeto irreverente. Pois uma supervisão, enquanto Super, é conservadora; ela é irreverente quando é alter-visão: um novo olhar valorativo de um Outro; antropofagia em ato. Um viés de escuta estrangeiro (e por isso potencialmente enriquecedor) quando se crê com "o saber" é conservador; enquanto "Outro-saber" enriquece, quebra o ciclo. A insistência em ocupar o lugar de morte criativa sob o nome "aluno" é conservadora; a devoração do conhecimento é enriquecedora. E já se torna claro que a hierarquia está em todos esses tópicos e que passa sob a valoração: uma moral. E, portanto, a reverência seria o próprio lugar do morto, valorado de Bem. O medo perpetua o fazer certo, à risca, sem mudar, para perpetuar. Obedecer para reservar a psicanálise, preservar, conservar, servar. Res - do latim, coisa. Servar - do português, ser escravo. Não é verdade, mas serve para a irreverência...

Para não arriscarmos cair na compreensão de outra face totalitária, vamos evidenciá-la. Ela é um Outro deste texto: não se trata de ir matando os mestres e na forma de um contra-ataque colocá-los em ato na posição de mortos que outrora teríamos ocupado naquela conhecida concepção etiológica de a-luno, sem luz, pois isso seria ainda uma prisão na relação com o Outro, um modo de manter a lógica do senhor-escravo. Mas, sim, de colocar em análise a própria reverência, o lugar de morto, para não "vir ao caso" matar. Libertar-se disso. Libertar o Outro. A experiência se relaciona com a transmissão de um saber, assim como "o saber" se relaciona com o lugar do poder. Retirar todo o valor do Outro é ficar lutando pela preservação, conservação e manutenção de uma identidade estática - um Eu analista -, que só se defende de ir ao único território para onde ele poderia crescer: o Outro é um país! É nesse sentido que se compreende a servidão enquanto voluntária: o mestre pode querer mandar, o servo pode querer obedecer. Mas para compreendermos mais profundamente a perversão e colocarmos em evidência um novo campo para pensarmos a traição da psicanálise em seu projeto e toda e qualquer patologia, temos também, e principalmente, de nos libertar da crença reverente à palavra, essa "coisa" na qual nos iludimos de captar um fenômeno, nas suas profundezas que guardam estreita relação com a já exposta concepção de identidade. A patologia é um fenômeno, não é uma coisa; ela não está no sujeito ou no objeto; não é o Carlos que é perverso nem o médico que o nomeia já que, "quando falas de Pedro, falas mais de ti que de Pedro". Pathos é, antes de tudo, movimento; ser afetado por; ligação afetiva, ou seja, se há um fio entre Eu e o Carlos, pathos é o fio. É o entre Carlos e o doutor. Logos também é um movimento; movimento à razão, processo do conhecimento. PathoLogos. Patologia: ela está na relação. É a relação que manifesta uma patologia, ou melhor, na relação que podemos observar a tal erupção do fenômeno, e a palavra que a nomeia é uma tentativa de abarcá-lo: relação histérica, perversa, obsessiva. Entre o olho que vê e o objeto inventado que é visto. A palavra é, sim, um instrumento importante desse Logos, como possibilidade de pegar o problema em mãos. Mas a palavra, sem dúvida, não basta. É preciso transgredi-la, recuperá-la de uma ideia estática para arriscar-se na arte de mergulhar na surpresa, permanecer no incerto território, pesquisando o que é esse entre. A transferência já é isso, e parece um bom meio e palavra para pegar a Pathos e onde o Logos pode ver uma luz e sombra a ser investigada. A palavra é só nome, há que poetizá-la. Criar, brincar, esgarçá-la. Um elogio à irreverência! Pois dizer que "Mônica é histérica" pode ser demasiado afilhado da tal moral platônico-cristã, banhada de Bem e de Mal, uma psicanálise messiânica, jogando no Outro o "não Bem", seu estranho. Serve a que(m)? Segundo a análise oswaldiana, a identidade que nomeia o Mal - a patologia como doença - no Outro o faz para identificar-se com o Bem: a crença é que há algo bom, verdadeiro, correto e, por acaso, igual a mim - é a isso que a pergunta/resposta tem débito impagável. Tupi or not tupi? That is the question! O não ser é abrir ao Outro que virá e mudará o como estou. Alteridade, antropofagia, irreverência, criatividade; ou servidão, reverência e morte? Eis as questões...

Pois, assim, neste caso, tratando da perversão enquanto fenômeno e do que essa forma de abordagem coloca ao centro - e não enquanto "estrutura perversa" -, notamos que ela não é intrinsicamente ligada à maldade; a reverência apaixonada pode perverter relações exatamente pelas vias do Bem. Não há ligação "natural" ou "estrutural" entre a perversão e essas valorações: ela é amoral, não imoral. O elogio à irreverência trata disso. Assim, o conceito central que ganha luz no palco é o de seducere, origem latina da nossa sedução; antes de tudo, desencaminhar, descarrilhar um trem. É tirar do caminho pré-visto. Ligando este ao "caminho normal", da norma, - e aí entra novamente a moral em jogo, dizendo que o "normal" é ditado pelo biológico e, que, sexualmente falando, seria o pênis e a vagina esfregando-se para fins de reprodução - é que podemos compreender a afirmação de que a pulsão é a perversão do instinto. Ela subverte a necessidade biológica para fins do prazer sexual. Ela seducere o instinto. Descarrilha. Perverte. Perversão e sedução... Não é que toda atitude sexual que não seja entre pênis e vagina seja perversa, mas, sim, que toda atitude sexual que ultrapasse o estabelecido fim biológico é perversa, já que seducere o instinto; inclusive aquelas entre pênis-vagina com fins não reprodutores, por puro prazer. Assim, o sexual é a própria força da sedução, do descarrilamento; a própria força que perverte o instinto. Não?

O seu amor, ame-o e deixe-o ser o que ele é. Quero amar meus mestres ao ponto da irreverência, na casa da alteridade. Eles são a prova dos nove da vida psicanalítica justamente por não "serem" mestres, mas "estarem", aceitarem esse peso de morte, esse apaixonamento com fardo de "super". Por serem meios de passagem, corpos, como foram outros a eles, como seremos a outros. Quero amar meus mestres ao ponto de vê-los como outros, sem assassinar suas singularidades e subjetividades; e aceitar os estranhos que ali vivem, deixando-nos crescer todos. Essa relação entre nós todos. Entre. Por uma "psicanálise do entre" e suas reflexões, que a partir da experiência devolva à clínica implicações na transferência, no setting como Weltanschauung, na escuta do que é uma palavra, uma fala, de quem é ou está o autor. Entre o Eu e o Outro, o entre! O encontro. A coisa viva. Uma visão de mundo.

 

REFERÊNCIAS

Andrade, O. de (2001a). A crise da filosofia messiânica. In ______. Obras completas: a utopia antropofágica (pp. 101-147). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1950).         [ Links ]

______. (2001b). Manifesto antropófago. In ______. Obras completas: a utopia antropofágica (pp. 47-52). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1928).         [ Links ]

Freud, S. (1995). Os chistes e sua relação com o inconsciente.In ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 8). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

Instituto Socioambiental. (2006, 26 de abril). No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. [Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro]. Povos Indígenas no Brasil: https://pib.socioambiental.org        [ Links ]

Nietzsche, F. (2005). Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1886).         [ Links ]

Saleme, M. H. (2008). A normopatia na formação do analista. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
EDUARDO RODRIGUES DE LARA
Rua Borges Lagoa, 1065/ 113
04038-032 - São Paulo-SP
tel.: 11 98383.0086
eduardo.rlara@gmail.com

Recebido 08.12.2018
Aceito 16.06.2019

 

 

1 Artigo previamente derivado de dissertação do curso de formação em psicanálise do Departamento "Formação em Psicanálise" do Instituto Sedes Sapientiae. Posteriormente desenvolvido para fins de pesquisa e publicação nos Núcleos de Fomento da Comissão de Projeto e Pesquisa desse mesmo departamento.
2 Ocidente: compreendido como um conjunto de crenças e valorações primordialmente platônico-cristãs.
3 Eu/ Outro, francês/ estrangeiro terrorista, normal/ anormal.

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