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Ide
versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020
EDITORIAL
João A. Frayze-Pereira
Editor
Em continuidade à reflexão iniciada anteriormente sobre "o valor da vida", neste número da Ide reunimos outros trabalhos dedicados ao mesmo tema. São artigos que, segundo perspectivas diversas, envolvem a articulação da psicanálise com a estética e a arte, propondo uma aproximação com a beleza da vida. E a pergunta que evocam é a seguinte: como a psicanálise pode se aproximar da vida, considerando a sua complexa beleza?
Ora, muitos são os psicanalistas contemporâneos que articulam arte, estética e psicanálise. Meltzer, Winnicott, Julia Kristeva, Joyce Mac Dougall, Giuseppe Civitarese, Christopher Bollas, entre outros, de modos diversos, propõem essa aproximação. Nesse sentido, Meltzer é contundente ao escrever:
É claro que o método, com sua intimidade, privacidade, ética, atenção, tolerância, postura não julgadora, continuidade, abertura, prontidão implícita ao sacrifício por parte do analista, compromisso em reconhecer erros, senso de responsabilidade em relação ao paciente e sua família - tudo que está incorporado no fazer um exame do processo transferência-contratransferência - todas estas facetas, ligadas por um esforço sistemático, inequivocamente tornam o método um objeto estético. (1995, p. 45)
Numa outra perspectiva, conceitualmente bem fundamentada, Bollas (1992) propõe uma reflexão sobre a dimensão estética do chamado método psicanalítico, entendendo-o como indissociável do processo psicanalítico, ao pensá-lo segundo a dialética construção-destruição. E, compreendido o método dessa maneira, isto é, como "objeto estético" e/ou como "processo estético", faculta-se ao analista a possibilidade de tratar o paciente com atitude semelhante à adotada para a apreciação de uma obra de arte. No contexto dessa reflexão, lembro a pergunta formulada por Winnicott: "um analista pode ser um bom artista, mas [...] que paciente deseja ser o poema ou o quadro de outra pessoa?" (1993, p. 476). Ora, é evidente que o paciente não é mesmo uma obra de arte no sentido de uma forma sensível exposta às leituras que a consagrarão como objeto no campo artístico. E também é óbvio que nenhum analisando é criado por seu analista como obra sua. No entanto o que ele suscita no decorrer do processo psicanalítico, como se fosse uma obra de arte diante do seu outro - o psicanalista enquanto espectador e não como artista -, é uma interpretação. E, além disso, se ampliarmos essa perspectiva, seria possível pensar que, no limite, qualquer pessoa poderia ser vista e interpretada como obra de arte. Mas em que medida? Lembro Michel Foucault, que indaga:
O que me espanta é que em nossa sociedade a arte só tenha relação com os objetos, e não com os indivíduos ou com a vida; e também que a arte seja um domínio especializado, o domínio dos especialistas, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que um quadro ou uma casa são objetos artísticos, mas não a nossa vida? (1984, p. 331)
Para que sentido apontam essas interrogações?
Obviamente, a ideia de "fazer da vida uma obra de arte" não significa apelar a qualquer forma frívola ou ornamental de esteticismo. Ao contrário, "fazer da vida uma obra de arte" é um trabalho que exige deixar surgir a multiplicidade do ser que nos constitui e reconhecer nela uma forma capaz de dar fundamento e coesão às suas múltiplas expressões. Trata-se de uma forma que se aproxima de uma espécie de "poliedro de inteligibilidade" cujos lados se expandem indefinidamente em muitas direções. Essa é uma interpretação possível. Em todo caso, entre a escuta daquela fala do filósofo e o que ela nos dá a ver, instala-se o exercício do pensamento. Mas o que seria pensar? Quanto a isso, Foucault é explícito - pensar é problematizar. Diríamos nós, em psicanálise, pensar é interrogar. Certamente, como descreve Deleuze (1988, p. 124), o trabalho do pensamento perturba o filósofo, pois pensar é fazer com que o ver atinja o seu limite próprio e o falar atinja o seu, de tal forma que os dois estejam situados num campo comum que os relaciona um ao outro, distinguindo-os. Pensar é, portanto, aquilo que se faz no entremeio do ver e do falar.
Ora, se Foucault é aquele que tem paixão pelo ver, ainda segundo Deleuze (1988, p. 60), o que o define, acima de tudo, é o discurso, além da visão. Quer dizer, olhos e voz são termos que balizam o pensamento de um filósofo implicado que jamais deixou de ser um vidente na matéria sobre a qual discorre e problematiza, ao mesmo tempo que marcou a filosofia com um novo estilo, a forma do entre-dois, entre o ver e o falar, as duas coisas num ritmo duplo. E quem desejar ver esse "novo estilo" como arte, articulando-o com a psicanálise, para evitar qualquer equívoco ou abstração conceitual, novamente lembro Meltzer, que escreve:
se a prática da psicanálise é uma arte, como eu acredito firmemente, e suas descobertas são as da ciência descritiva, é essencial que ela seja feita por indivíduos que possam pensar por si próprios. Isto significa solidão, incerteza e um sentido inescapável de perseguição incipiente por parte do grupo - as pessoas que pensam igual e podem dizer "nós" em vez de "eu". (1995, p. 268)
Pensar por si próprio - trata-se de uma postura radical no sentido de um distanciamento de qualquer modelo predefinido e, portanto, da ideia clássica de método que pressupõe a exterioridade entre sujeito e objeto do conhecimento, pressuposto ainda vigente na ciência, o qual levou Merleau-Ponty a defender a proposição de que "a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las" (1964, p. 9). Mas, se comparado a Meltzer que, intuitivamente, aproxima a psicanálise da arte, é Bollas quem explicitamente se afasta da postura cientificista e relaciona experiência estética e experiência psicanalítica. E com essa articulação permite-nos pensar o fazer clínico como "trabalho lúdico" (Bollas, 1992, p. 30), cujo movimento se ajusta à matéria com a qual trabalha, isto é, a "poética da estrutura psíquica", a "experiência interior que transforma a desordem em uma estrutura", ou seja, a "experiência estética" (1992, p. 65) que acontece no instante em que a pessoa se sente enigmaticamente atraída e envolvida por um "objeto evocativo" que a expressa. Ora, é esse movimento de atração e de envolvimento que podemos testemunhar nos escritos reunidos neste número da Ide, motivados por obras e autores diversos - da arte à literatura e desta à psicanálise. São escritos que, valorizando a vida como obra de arte, evocam a notável afirmação utópica de Dostoiévski: "a beleza salvará o mundo".
Finalmente, neste momento em que encerro o meu percurso como editor da Ide (2015-2020), resta-me dizer que cuidar desta revista foi para mim uma experiência privilegiada, realizada com muito prazer. E agradeço a todos que colaboraram comigo nesse processo.
Referências
Bollas, C. (1992) Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter Ltda. [ Links ]
Deleuze, G. (1988). Foucault. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Foucault, M. et al. (1984). Michel Foucault, un parcours philosophique. Au-delà de l'objectivité et de la subjectivité. Paris: Gallimard. [ Links ]
Meltzer, D.; Williams, M. H. (1995). A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Merleau-Ponty, M. (1964). L'oeil et l'esprit. Paris: Gallimard. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1993). Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. [ Links ]