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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020
EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE
Em tempos de pacto com o diabo nas veredas mortas: o valor da vida de Riobaldo
In times of pact with the devil in veredas mortas: the Riobaldo's life value
Nabil S. Almeida Ali
Mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Psicanalista em formação no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Travessia: recepção estética de Grande Sertão: Veredas (em vias de publicação)
RESUMO
Este artigo buscou na literatura brasileira e universal uma personagem de João Guimarães Rosa que, como nenhum outro, conecta-se com o tema deste volume, "O Valor da Vida": Riobaldo, do livro Grande Sertão: Veredas. A narrativa do jagunço lança o leitor em um mundo imaginário sem precedentes, em que, da recriação e recomposição da palavra ao próprio sentido do que seja o bem e o mal, o convida também para o aprofundamento de se saber a história da própria origem da brasilidade. A importância de se saber da vida do jagunço revela-se como exercício árduo e corajoso de se realizar o próprio percurso da travessia em auxílio clamado pelo narrador para que ele consiga rememorar, reviver, se comover, elaborar e sentir. A apresentação desse ser sensível em roupagens rústicas e muitas vezes cruel é reveladora do sentido ontológico da própria natureza humana.
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Psicanálise. Riobaldo. Vida.
SUMMARY
This article sought in Brazilian and universal literature a character of João Guimarães Rosa who, like no other, is connected with the theme of this volume "The Value of Life": Riobaldo, from the book Grande Sertão: Veredas. The jagunço's narrative launches the reader into an unprecedented imaginary world in which from the recreation and recomposition of the word to the very meaning of what is good and evil it also invites him to go deeper into knowing the history of the very origin of Brazilianness. The importance of knowing the life of the jagunço is revealed as an arduous and courageous exercise of carrying out the journey of the crossing in aid called by the narrator for him to be able to remember, relive, to be moved, elaborate and feel. The presentation of this sensitive being in rustic and often cruel clothes is revealing of the ontological sense of human nature itself.
keywords: Psychoanalisys. Riobaldo. Life.
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é apontado pelos críticos (nacionais e internacionais) como uma das maiores obras-primas escritas no século XX. Na longa pesquisa que realizamos sobre a recepção estética de Grande Sertão (Ali, 2018), observamos que os leitores da obra tiveram trechos de suas vidas ou vivências projetados na narrativa do protagonista do livro, o jagunço iletrado que se tornou culto ao longo da vida e que possivelmente representa um dos personagens épicos mais bem construídos pela literatura universal no qual se forja - lançando mão da recriação da linguagem - o ser humano ontológico. Verificamos que os leitores que se investiram de "coragem" para realizar a "travessia" tiveram, nessa obra, muitas vezes suas próprias vidas ressoadas pelo jagunço-narrador e, sem dúvida, promoveram uma recepção estética idiossincrática, pessoal, relacionada às suas vivências, nada padronizada, surgida em momentos diferentes da leitura da obra. Em outras palavras, a revisão da própria vida feita pelo narrador foi em certa medida uma trilha aberta, com caminhos diversos, para que os leitores da obra transcendessem conceitos e ações humanas ensinados em cursos de graduação de maneira tecnicista e seca e também refletissem sobre aspectos da ideologia, notados por Chaui (2007), compondo boa parte do nosso senso comum.
Ao se falar da vida de Riobaldo, precisamos antes de qualquer exercício ajudá-lo a entender a sua própria vida como o próprio jagunço-narrador conclama o leitor para esse exercício denso e tenso, no qual o leitor terá de ser capaz de se organizar a si próprio durante o atravessamento da obra que em muitos aspectos relaciona-se com o atravessamento de nossas próprias vidas. Por isso mesmo, o começo do livro e o seu transcorrer não obedecem a uma cronologia, e em muitas passagens o leitor é convidado ao mergulho das idiossincrasias, reflexões e digressões do jagunço para a composição de um corpo psíquico único do jagunço também constituído pelo imaginário e pelas projeções narcísicas do leitor, que, inevitavelmente, terá de alcançar memórias de suas próprias experiências vivenciadas para "comportar" Riobaldo que, como veremos adiante também, pode ser interpretado como aquele que baldeia o rio (a vida).
Riobaldo, o narrador-personagem, tem poucas lembranças de sua infância, exceto por parcas e afetivas recordações com a mãe e, aos quatorze anos, lembra-se com precisão do encontro com "o Menino", que é Reinaldo e que virá a ser Diadorim, sua recordação emocional derradeiramente mais poderosa do que todas as outras. Quando sua mãe falece, Riobaldo é criado e instruído por histórias do cangaço contadas de seu padrinho Selorico Mendes. O padrinho é nessa juventude a duplificação da travessia do personagem que, ao mesmo tempo que passa a ter contato com as letras e com as histórias, também aprende a lidar com armas e com as suas artes. Sobre Selorico Mendes, dirá Riobaldo: "Queria que eu aprendesse a atirar bem, a manejar porrete e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira [...]. Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola" (Rosa, 1956/2019, p. 108). Riobaldo toma bastante gosto pela educação formal e pela vocação para os estudos, o que já o situa como pertencente a duas classes sociais, digamos assim. Mais adiante, Riobaldo será professor em uma fazenda e se apresentará ao fazendeiro Zé Bebelo como "sou moço professor" (Idem, ibidem, pp. 122-123). Paradoxalmente, a condição de letrado o colocará agora nos conflitos que são simulacros de guerras, no sertão: "Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida. Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade" (Idem, ibidem, p. 130). Ao viver em fuga, anos mais tarde Riobaldo reencontrará "o Menino" adulto. Galvão Nogueira (1972, p. 79) diz que nesse momento inicia-se "sua carreira de jagunço" apropriado de suas letras abandonadas. Ao longo do tempo, pactos, não pactos e incertezas de pactos marcarão a vida do narrador: com Deus, com o diabo, com Zé Bebelo, com o Hermógenes, com o Joca Ramiro - todos estiveram nos pactos ou nos combates de Riobaldo... com o "Menino" também estabelecerá um pacto: de que quando estivessem a sós, o "Menino", que era Reinaldo, seria agora Diadorim. E com este, o pacto de amor, de jagunça-gem, de compromisso pela vingança do pai de Diadorim - Joca Ramiro -, tido por Riobaldo como o maior e mais correto homem que conhecera. Mas o pacto de casamento foi com Otacília, ainda que Diadorim estivesse presente em suas memórias mesmo quando o personagem se deleitava com outras mulheres.
O narrar - o fazer um texto com o concurso do interlocutor letrado - é objeto de reflexões frequentes por parte de Riobaldo. Tem-se por bom narrador, capaz de avaliar a exata importância de cada passo que relata. Em seu critério, uma boa narração deve dar conta do peso diverso que cada passagem da vida tem; assim, o que importa narrar com pormenor e detidamente é aquilo que foi relevante como experiência. Pouco importa a extensão no tempo ou a multiplicação das peripécias; nem mesmo a linearidade de sequência deve ser respeitada. Em suma: o que determina o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto. (Galvão, 1972, p. 86)
O valor da vida de Riobaldo é em si o valor da vida humana e suas contradições entregues a Deus e ao diabo, e sua narrativa, no sentido psicanalítico, como observou Meneses (2010) ao apontar que a narrativa se desnovela tal qual um fluxo elaborativo de um paciente que teria o leitor como seu analista-ouvinte e que, como já dissemos, contribui sobremaneira para a organização das experiências do próprio leitor. Mais adiante nos aprofundaremos nesse aspecto elaborativo que irrompe mais como mecanismo catártico que os de associação livre, nos termos propostos por Freud. Antes, precisamos nos ater a aspectos históricos e sociais da personagem que compõem sua vida, para sabermos de onde se abstrai o seu "valor". Galvão (1972) nos traz a reflexão de quem seja o sertanejo típico, historicamente constituído no Brasil: um homem pobre do interior, com vida rústica, que construiu uma maneira própria para lidar com a dominação e a opressão vigentes - com leis, tradições e costumes que nem sempre obedecem a institucionalidade percebida nos centros urbanos. Mas, como dirá o próprio narrador, "o sertão é o mundo", como bem apontou Freud em O mal-estar na civilização; sabemos que a realidade, mesmo nos grandes centros, sobretudo no Brasil, também é regida pelas leis paralelas de uma espécie de sertão.
Riobaldo já na meia-idade e tendo obtido ascensão social e certo lustro cultural reúne em sua história as bases sociais brasileiras, como observa Galvão:
É Riobaldo, o narrador-personagem que, tendo uma vida dividida em duas partes - como membro da plebe rural quando menino e quando jagunço, como membro da camada dominante quando jovem e quando velho - tem distância crítica para perceber a ambiguidade da condição do pobre, pacífico ou guerreiro conforme sirva aos interesses de quem manda. (1972, p. 12)
A ambiguidade será uma marca inconfundível na obra, desde a biografia do próprio narrador-personagem e sua narrativa, prossegue Galvão:
O tratamento de uma matéria como essa em termos de novela da cavalaria prende-se a dois fatores. Um, a sobrevivência verificável do imaginário medieval no sertão brasileiro, ou seja, na tradição oral, seja no romance de cordel. Outro, o pendor irresistível que têm os letrados brasileiros, dentro e fora da ficção, para representar o sertão como um universo feudal. O primeiro fundamenta, portanto, a verossimilhança; o segundo entra em tensão com aquele por veicular representações que servem a propósitos de dominação. Novamente, aqui, a ambiguidade.
A composição do romance repousa na seleção de um monólogo que introduz, ao nível da narração, uma dupla perspectiva, que é a do narrador-personagem. Este se move entre dois polos, narrando o vivido ou vivendo o narrado, conforme seja naquele passo predominantemente narrador ou personagem, sendo sempre ambos. São essenciais para o narrador-personagem duas definições de si mesmo, que são as linhas de seu destino: a que fez dele um letrado irrealizado e que o tornou um jagunço. Como letrado é que tenta a empreita de transpor seu passado em texto, um passado de jagunço, em que o letrado se frustrou. É assim que o texto se constrói ao mesmo tempo como narração e como reflexão sobre o que é o texto.
A ambiguidade, princípio organizador deste romance, atravessa todos os seus níveis; tudo se passa como se ora fosse ora não fosse, as coisas às vezes são e às vezes não são. Como, todavia, esses pares não chegam a constituir-se em opostos, antes vivenciando-os o sujeito alternadamente sem que a tensão entre eles engendre o novo, não se pode falar em contradição mas apenas em ambiguidade. Riobaldo, fonte do texto, no presente da narração reocupou seu lugar na ordem, tão fazendeiro quanto fora seu pai, e com seu próprio grupo de moradores fiéis garantindo suas divisas.
(Idem, ibidem, pp. 12-13)
A ambivalência também será evidenciada em Deus e no diabo, nos sentimentos de malignidade/bondade; nas hesitações entre ser ou não ser líder do seu grupo... mas sem dúvidas, de todas as ambivalências, a sexual - além de ser disparadora de inúmeras crises e entregas/não entregas - comporá uma das histórias de amor mais profícuas da literatura de língua portuguesa: o amor de Riobaldo por Diadorim permeado por uma grande tensão erótica decorrente da relação entre os dois e às interdições dessa relação que assume diferentes expressões e contratos: são amigos, são companheiros de travessia, são amor erótico violentamente contido, são conflitos, são saudades mesmo quando estando juntos. Riobaldo diz que "Diadorim é minha neblina", o que será compreendido por Meneses como metáfora para a visão psíquica embaciada do jagunço ao se apaixonar por um homem. O corpo de Diadorim surgirá como contemplação, como arrependimento ou sentimento de culpa; a esse respeito, Meneses refere-se ao próprio nome "Riobaldo", que estaria relacionado a uma profundidade represada (o "baldo"), e seu conteúdo antes obscuro irrompe em clarificações rememoradas. Riobaldo é o rio baldeado, o rio represado, a própria metáfora da travessia contida em tantas obras de João Guimarães Rosa, em que o rio tantas vezes é remetido à própria travessia da vida:
Mas como em Guimarães Rosa nada é unívoco, como Deus é o Diabo, como Diadorim é dom de Deus e é Diá, também baldo tem outra acepção dicionarizada contraditória: barragem ou parede para represar... as águas de um açude. Daí a palavra "balde" = recipiente. Aqui também se verificaria uma relação, no nível dos nomes, entre os dois protagonistas: Riobaldo, que carrega o sema da falha, da inutilidade, do vazio, Riobaldo é aquele que... represa águas. Da correnteza de um rio. Explico: há um momento no romance em que Diadorim comenta a similaridade sonora entre os nomes "Riobaldo" e "Reinaldo". Ora, em Reinaldo, a primeira parte do nome (a que não rima com Riobaldo), rei, pode remeter ao verbo grego réo = correr: (lembe-mo-nos do panta rei = tudo corre, de Heráclito). E como já disse, em Guimarães Rosa nada é por acaso, é significativo que na passagem em que Dia-dorim lhe revela que não se chama Reinaldo (em que rei = que corre). Na realidade, se se for desprezar o aspecto mais propriamente formal (concordância de sons, rima), pode-se, no nível etimológico, verificar um outro profundo acordo entre esses dois nomes, entre duas personagens: se Riobaldo é o rio "vão", também pode ser aquele que como açude, represa... as água desse outro rio, que "corre bem". (Meneses, 2010, p. 73)
Riobaldo seria aquele que traz contingência, que baldeia, que retém Diadorim. Ali (2016) aponta para o corpo "abjeto" de Diadorim, no sentido de como Robert Schwarz (1965) define corpo insólito: que se aproxima de Deus e do diabo, cujas ambivalências se entrelaçam entre sinestesias corporais e subjetivas e que atravessam o masculino e o feminino. A recriação da natureza, também ambivalente, soturna ou lírica, muitas vezes entrelaça-se na própria construção da imagem psíquica atribuída a Diadorim, permeada de repulsão e desejo, como se fosse o "redemoinho" do narrador: "Dor do corpo e dor da ideia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio" (Rosa, 1956/2013, p. 37).
A vida de Diadorim, enlevada e erotizada pela narrativa, é duplamente um corpo psíquico elaborado pelo jagunço, que necessita lançar mão de suas próprias memórias erótico-afetivas para que a personagem seja elaborada e percebida idiossincra-ticamente pelo leitor da obra. A narrativa da vida de Diadorim por Riobaldo é a expressão de uma de suas facetas emocionais mais marcantes, que inexoravelmente remeteria ao leitor percepções insólitas de sua própria natureza afetiva.
Riobaldo é também a vida de vários corpos amorosos, e alguns muito difusos, como o corpo desejante pelo insólito, mas que também esteve em gozo erótico e afetivo com Otacília (com quem se casou) e Nhorinhá, seu grande amor de satisfação carnal. O corpo do jagunço também é o de abusador de outras tantas mulheres, conforme sua própria narrativa.
Galvão (1972), aprofundando o que já dissemos, assinala as múltiplas percepções sociais atravessadas por Riobaldo, que, como narrador, alterna "horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data" (Rosa, 1956/2013, p. 115). As horas de mais recente data de Riobaldo são sentidas pelo fazendeiro, cuja ascensão social, porém, não minimizou a importância das horas antigas, que ficaram muito mais perto. As horas antigas são as do jagunço, vivente da lei construída paralelamente à lei dos centros urbanos - a lei do mais forte -, ainda que isto seja perfeita alusão objetiva das leis vivenciadas por nós mesmos, nos centros urbanos. A ambiguidade aqui se ressalta com o sertão como um mundo à parte, mas sendo caleidoscópio do mundo real em todas as suas faces. O sertão é ele próprio o símbolo do infinito deitado representativo do presente que reaviva o passado e que retorna ao presente, que adquire força para transcender ao futuro em movimento contínuo. E jagunço, nas palavras de Riobaldo, "jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia [sic] com perda nem derrota - quase que tudo para êle é o igual. Nunca vi. Para êle a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final" (Rosa, 1956/2013, p. 55). A narrativa de Riobaldo - sua vida, pois - ao abordar o sertão também o faz com o imaginário do sertão e do sertanejo, similar às histórias de cavalaria cujo mundo idealizado "faz parte indissolúvel da matéria tratada no romance. Não entra de fora, mas de dentro, por via da experiência do narrador (Idem, ibidem, p. 61).
Ali assinala que os leitores pesquisados de seu estudo sobre recepção estética de Grande Sertão: Veredas, de todas as classes sociais e formações, reconhecem-se na personagem. Um desses leitores, ao se referir a Riobaldo como o personagem que mais o marcou no livro, citará também o interlocutor como personagem - o que talvez explique a grandeza do valor da vida de Riobaldo:
Além do Riobaldo? Pode ser o Riobaldo... Tem também o interlocutor com quem o narrador conversa, que é quase a gente, né? Doutor, usa óculos, e anda com uma cadernetinha... É uma alusão ao próprio Rosa. É uma personagem misteriosa, dá para perceber que, às vezes, Riobaldo está respondendo a uma pergunta que o senhor fez, ele alude a isso. É um personagem para quem é dirigida a fala do Riobaldo: "conto ao senhor o que eu sei, mas ao contar, não sei se sei, mas pode ser que o senhor saiba", mais ou menos isso... Eu acho magnífica essa inversão, eu realmente conto coisas que aconteceram na minha vida que eu não sei se o senhor sabe, mas o que eu realmente quero saber, eu não sei se eu sei. Só contando para o senhor... Tem Diadorim, que o primeiro nome era Reinaldo, Joca Ramiro... Tem figuras muito fortes. Eu me lembrei de uma música sobre Grande Sertão: Veredas que o próprio Guimarães escreve, que me lembra da minha terra natal, o Mato Grosso... Do cerrado, das falas, o sertão... Às vezes ele fala de um tipo específico de armadilha para pegar peixe, eu reconheço isso, pelo meu vô. O meu personagem principal é esse: sou eu afetado pelo Guimarães Rosa... [risos]. (Ali, 2018, p. 43)
Muitos críticos apontarão para uma inverossimilhança contida em um narrador, com percepções mundanas e suas respectivas traduções em um universo de linguagem simbólica tida como revolucionária na língua portuguesa por suas construções ancestrais concomitante a formações frasais presentes somente em outras culturas e tradições idiomáticas. A esse respeito, Hansen dirá:
Riobaldo é inverossímil no seu simulacro de jagunço barranqueiro, se pensado pelo foco de um verossímil empírico, apenas, como representação de uma individualidade humana ou de um tipo particular, regional. Espécie de Macunaíma a sério, por sua boca passa o mito como vontade de fundar uma origem a partir da qual representações imaginárias, formações ideológicas se intertextualizam e, fazendo-se como fala, dão-se como história na estória. A extrema originalidade do texto consiste em que a cultura dita culta é deglutida pelos mitos montados por ela mesma: "Riobaldo é o sertão que se fez homem e meu irmão", como disse Rosa a Lorenz. Ao mesmo tempo, porque supervaloriza a experiência do homem sertanejo do Brasil interior, Rosa a toma como matéria e (des)monta-lhe o imaginário - tanto o do sertanejo quanto o das falas produzidas sobre ele - como experiência de relações de conflitos e dominação, cuja determinação é o modo de produção das áreas geográficas que efetua referencialmente, em primeira instância (nesse sentido, o mito é recurso bastante adequado a seus fins, pois, pela regularidade e repetição de seu tempo cíclico, é apto para conferir realismo às personagens, vivíssimas todas elas, enquanto desloca a mitologia do sertão. (2000, p. 34)
Já que há em Riobaldo uma brasilidade "macunaímica", o valor de sua vida em períodos atuais, deflagradamente reacionários e anticivilizatórios, tem em si também o valor de uma esperança. O velho ex-jagunço e agora fazendeiro que rememora a sua vida para recompô-la, e ao exigir para isso o reiterado esforço para que o leitor o auxilie nas veredas tortuosas da travessia, implacavelmente resgata ao leitor o orgulho pela brasilidade e pela diversidade cultural e ambiental do Brasil. O primeiro grande encontro do leitor, portanto, é com a língua portuguesa revisitada e transpassada em mesclas sertanejas rudes a neologismos cujos significados até então também se encontravam na ambiguidade do leitor em perceber o culto e popular em vórtice, como um demo no meio do rodemoinho.
Riobaldo é um personagem familiar a todos os contextos sociais brasileiros, tal qual o sertão em Grande Sertão repetidamente associado ao mundo. Os dois - personagem e sertão - podem ser reconhecidos nas favelas e nos submundos com suas leis paralelas e, onde sabemos, a lei do mais forte se impõe além de códigos morais e de condutas nem sempre contemplados pelas leis e costumes dos centros urbanos. Mas Riobaldo e sertão também poderiam ser reconhecidos nos centros urbanos onde, mesmo nestes, também impera a lei do mais forte e práticas de jagunçagem "institucionais". Esse corpo psíquico e esse espaço sentido, como evidencia o livro, primeiro nos apresenta o que comumente conhecemos como o sertão brasileiro, o seu interior, sua natureza peculiar, suas características geográficas e espaciais. O sertão e o jagunço brasileiro em redemoinho trans-mutam-se ao longo da obra que, em algum momento, fará com que esse espaço e essa rememoração estejam contidos em seus quartos, em suas salas, em suas fantasias reorganizadas em cima de um cavalo em companhia do jagunço.
Ao mesmo tempo que convida o leitor para um exercício de grande ascese moral, Riobaldo também humaniza as percepções humanas com suas rupturas moralizantes. Ele reúne ao mesmo tempo o amante, o estuprador, o filho, o aluno, o professor, o cabra-macho, o letrado, o iletrado, aquele que tem conflitos com sua sexualidade, o que o tempo inteira e reitera em exercícios originários de códigos rígidos da cultura. A personagem retira de dentro de si Deus e o diabo, ao mesmo tempo que os reintegram em sua elaboração de travessia.
Meneses (2010) atribui ao personagem a conotação de um paciente em análise, mas, resgatando Freud, poderíamos inferir também que Riobaldo seja um sonho do autor, um sonho do João Guimarães Rosa. Talvez seja impossível transpor o divã para a torrencialidade da narrativa que não possui capítulos nem interrupções, além do excerto "o diabo no meio da rua, no meio do redemoinho", que aparece em itálico na obra assinalando uma espécie de ruptura imagética e rememorada pelas lembranças do narrador. Mas, sem dúvida, considerando que a perspectiva narrativa seria a de um sonho épico do autor, suas passagens e vivências pelo sertão o conduziram a um sonho em vigília. Não à toa, em cartas aos seus tradutores, o autor relata que durante a escrita da obra tivera tantas vezes a sensação de estar possuído por outro ser que não ele. Na perspectiva freudiana, o inconsciente Riobaldo também remeteria a uma boa explanação dos conceitos elaborados por Freud em O eu e o id. Com efeito, as representações verbais do jagunço podem sugerir um exercício de elementos pré-conscientes que se tornam conscientes e que requer a escuta acurada do leitor para a sua "tradução". "A palavra é, afinal, o resíduo mnemônico da palavra ouvida" (Freud, 1923-1925/2011, p. 25). Ainda em Freud temos que:
Um indivíduo é então para nós, um Id (um algo) psíquico, irreconhecido e inconsciente, em cuja superfície se acha o Eu, desenvolvido com base no sistema Pcp, seu núcleo. Se buscamos uma representação gráfica, podemos acrescentar que o Eu não envolve inteiramente o Id, mas apenas à medida que o sistema Pcp forma a sua superfície (do Eu), mais ou menos como o "disco germinal" se acha sobre o ovo. O Eu não é nitidamente separado do Id; conflui com este na direção inferior. (Idem, ibidem, p. 30)
Poderíamos parafrasear esse trecho freudiano e dizer que Riobaldo é, então, para nós um algo psíquico, irreconhecido e inconsciente que se lança em um grande esforço, sob seu próprio Eu, para ser reconhecido e ter consciência de suas reminiscências. O grande empenho e auxílio pedido ao leitor conteriam esse esforço de tornarem conscientes conteúdos carregados de pulsões de vida e de morte dançantes como os ventos do sertão. Ao longo da travessia, tanto o Eu quanto o Ideal de Eu, ou Super-Eu, do jagunço também se digladiam em batalhas épicas com as poderosas descargas originárias do seu "isso", ou Id psíquico. O diabo no meio da rua, no meio do redemoinho que é reiterado algumas vezes no livro, tem em si uma definição desse Eu em veredas, em batalhas sangrentas que no fim consegue preservar a vida do jagunço, tantas vezes em risco no decorrer da obra. Ainda em Freud, outro trecho nos chama a atenção para a dança entrelaçada como os ventos do sertão, agora em relação ao Eros e à pulsão de morte:
Ainda não podemos conceber de que modo os instintos das duas espécies se ligam, misturam, amalgamam uns com os outros; mas que isto sucede regularmente em nosso contexto. [...]
Havendo admitido a concepção de uma mescla (ou junção) das duas espécies de instintos, impõe-se-nos a possibilidade de uma - mais ou menos completa - disjunção desses instintos. No componente sádico do instinto sexual teríamos o exemplo clássico de uma mescla instintual adequada a um fim; no sadismo que se tornou independente como perversão, o modelo de uma disjunção, embora não levada ao extremo. Então se descortina para nós um largo âmbito de fatos, que ainda não foi considerado sob essa luz. Percebemos que ainda que o instinto de destruição é habitualmente posto a serviço de Eros para fins de descarga. (Idem, ibidem, pp. 51-52)
Inegável como Riobaldo nos mostra de maneira tão explicitada como seu Eros e suas pulsões de morte se ligam, se misturam, amalgamam um com a outra e como isso sucede regularmente em todo o contexto da obra e como o leitor é capaz de fazer a disjunção desses instintos. Riobaldo revela-nos seus componentes sádicos e seus instintos de destruição a serviço do Eros para fins de descarga em suas sucessivas batalhas reais e psíquicas.
Finalizando, este breve ensaio pretendeu enlevar o "valor da vida" nesses tempos tão sombrios em que, se o próprio país fosse o Riobaldo, nos pareceria que o Brasil não teria conseguido rever seu pacto com o diabo nas veredas mortas. Parece-nos, atualmente, que o próprio demo encarnado do livro - o Hermógenes - teria vencido a grande batalha final, cujo banho de sangue ceifou a vida de Diadorim - o encanto do alumbramento. Mas, ao contrário, Riobaldo teria também o sentido "de que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia" (Rosa, 1956/2013, p. 624), como termina o livro. Grande Sertão: Veredas é incomparavelmente uma obra que se apresenta como um exercício da vida e da morte que conduzem à esperança e ao amor. E esse amor, revivido na memória, ressuscitado no tempo, tem a energia de prosseguimento da travessia. Na grande batalha final do livro, marcada por uma enorme carnificina e tiros espalhados por todas as direções, quando a destruição parecia impor sua força, surge uma borboleta branca que conseguiu captar a atenção e emoção do narrador na iminência de seu fim. A borboleta branca foi a ruptura frágil, valente e resistente ao massacre. A borboleta branca poderia ser ela própria uma alusão à delicadeza do jagunço que, a despeito de todas as rudezas e dos ambientes inóspitos, nunca deixou de fantasiar. O valor da vida de Riobaldo estaria relacionado ao próprio resgate da brasilidade e das complexidades psíquicas originárias de nossa diversidade com força para se tornar universal. Riobaldo torna o Brasil um cenário épico agregador da potência da palavra universal, da tradição ancestral e contemporânea, do homem ontológico - ambivalente, contraditório, vivente. Sua vida nos ajuda a compreender a nossa própria vida. Seu convite à travessia é no fundo um desafio ao leitor: se este será ou não capaz de reelaborar seu próprio percurso do rio da vida. Se haverá coragem para isso. Se o medo do desconhecido será vencido. Quem teve coragem de realizar o atravessamento teve também a de se recompor em sua própria vida.
Referências
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Correspondência:
NABIL SLEIMAN ALMEIDA ALI
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Recebido 20.09.2020
Aceito 27.10.2020