Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010
SEÇÃO TEMÁTICA
Sonho, crueldade e criatividade: reflexões sobre a experiência do ator no teatro
Dreaming, cruelty and creativity: the actor's experience in theater
Pedro Mourthé KosovskiI; Maria Inês Garcia de Freitas BittencourtII
IAtor; Psicólogo; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIDoutora em Psicologia Clínica; Professora Assistente do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
RESUMO
Este trabalho, que tem por foco a experiência da representação no teatro, propõe uma reflexão sobre a criação no trabalho e na vida do ator. Busca-se estabelecer um diálogo entre as ideias de Winnicott referentes à criatividade e as ideias de Antonin Artaud sobre o teatro. Enfatizamos particularmente a importância da agressividade e o papel da dimensão onírica nas origens da criatividade, tal como se depreende das contribuições destes autores. No que se refere à obra de Winnicott, estas questões são enfocadas na sua relação com os conceitos de transicionalidade, brincar, experiência cultural e "viver criativo" e em Artaud é destacada a proposta de um "teatro da crueldade".
Palavras-chave: teatro; criatividade; agressividade; sonho.
ABSTRACT
This study's objective is a theoretical discussion about creativity in the actor's work and life. The experience of theatric playing, in the sense Antonin Artaud's "Theater of cruelty", is presented in a dialogue with Winnicott's ideas. The role of aggression in the development of creativity and the concepts of transitionality, playing, creative living and cultural experience, quoted from Winnicott's works, are related to Artaud's propositions. The importance of dreaming experiences, highlighted by both authors, is also considered.
Keywords: theater; creativity; aggression; dreaming.
Nas tentativas da Psicanálise para a abordagem do tema da criatividade, perdeu-se de vista, em grande parte, o tema principal. [...] O tema principal, o do próprio impulso criativo, continua sendo contornado... A criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista.
(Winnicott, [1971] 1975: 100)
INTRODUÇÃO
Este trabalho busca refletir sobre a criatividade na vida e na arte, tendo por foco a experiência criativa do ator no teatro. Propomos um diálogo entre as contribuições de D. W. Winnicott sobre a criatividade e as propostas de Antonin Artaud sobre o teatro. Embora falando de lugares diferentes, o psicanalista e o homem de teatro nos parecem apresentar ideias fundamentadas em intuições bastante próximas. Enfatizaremos particularmente a questão da transicionalidade como lugar da construção da experiência criativa, assim como a função da agressividade e da dimensão onírica nas origens da criatividade, tal como se depreende das contribuições de Winnicott referentes ao brincar, à experiência cultural e ao "viver criativo". Em seguida, buscaremos alguns ecos destas ideias na proposta de Antonin Artaud sobre o "teatro da crueldade". As ideias de Artaud, focando o trabalho do ponto de vista artístico, nos parecem complementares às propostas de Winnicott sobre a vida, contribuindo para o entendimento do processo de criação não apenas na arte do ator, mas também no palco da sua vida cotidiana.
Winnicott nos fornece argumentos para pensarmos a criatividade não apenas no que se refere ao artista, mas também à possibilidade de "pessoas comuns" viverem a experiência de uma vida caracterizada pela capacidade de recriar a realidade, buscando formas de realização mais autênticas, embora em consonância com as exigências do mundo externo, indo além daquilo que o senso comum percebe como "realidade". Esta é geralmente um recorte sobre a vida em seu sentido mais complexo, uma simplificação que busca responder a aspirações de continuidade, estabilidade, inteligibilidade, atuando sobre nós como uma espécie de norteador da subjetividade. A ênfase na concepção racionalista de "realidade" desconsidera o que está nas margens desses limites definidores, o espaço infinito que abriga a possibilidade de o sujeito se sentir efetivamente "existindo". Como diz Clement Rosset (1988: 39), o pensamento racionalista consistiria em "trocar uma vantagem por uma esperança vã, julgar, assim, que o conhecimento que se pode ter da realidade ultrapassa a riqueza da própria realidade".
Para que seja ressaltado o valor da experiência imaginária e suas implicações com o modo de se produzir conhecimento e de se relacionar com o mundo, é preciso atribuir mais valor ao sensível, à experimentação intersubjetiva das coisas. Neste movimento, segundo as palavras de Bachelard (citado por Augras, 1978: 62) "poderíamos perceber que, no reino do imaginário e da fantasia, o dia foi-nos dado para verificar as experiências das nossas noites".
O relato de uma experiência de sonhar (Kosovski, 2008) exemplifica a intuição da força que podem ter os fenômenos ocorrendo nas "margens":
Havia algo ali no sonho que despertava - ao contrário de mim que dormia; havia algo no sonho que acendia uma realidade extrema, uma realidade cruel. E por outro lado a vigília, as repetições aparentemente iguais do cotidiano, a ilusão de continuidade da realidade normal, ganhava um ar difuso, desfocado, como uma ilusão. O sonho era mais nítido, mais real que a própria realidade, pelo menos era assim que era vivido por mim (Kosovski, 2008: s/p).
Na visão de Winnicott, a possibilidade de trazer o sonho para a vida de vigília e encontrar meios de não só expressá-lo, mas de fecundar a própria existência com o potencial que ele contém, cria o sentimento de que a vida é "digna de ser vivida". As convenções estabelecidas sobre a realidade não são apenas produtoras de interdições, mas fornecem também os instrumentos para nossas experiências. Indo ao encontro dessa realidade, a liberdade de criação exerce uma tentativa incessante de alargar suas fronteiras, recriar seus discursos, marcar mínimas fissuras em seus signos. Esse é o aspecto paradoxal das formações culturais. Para criar é necessário apropriar-se das convenções e em seguida perder-se, lançar-se na escuridão, afirmar o imprevisível, o espontâneo e o risco.
Antes de abordarmos a questão do ator, buscaremos, com fundamento nas ideias de Winnicott, refletir sobre a criatividade tal como se manifesta no brincar e na experiência cultural, vinculando-a ao sonho e à agressividade e identificando o espaço intersubjetivo em que ela pode acontecer.
WINNICOTT E A CRIATIVIDADE: AGRESSIVIDADE PRIMÁRIA E TRANSICIONALIDADE
A discussão sobre a criação não é, evidentemente, um tema novo. No campo da estética, da filosofia, muito se discutiu nesse sentido. Quanto ao plano da psicanálise, tem-se em vista um importante legado, constituído pelo modelo do inconsciente. A questão que temos aqui, no entanto, refere-se a dar maior realce à própria experiência criativa, enfatizando a força das imagens do sonho, que consiste em impor-se para nós independentemente de nossa vontade. Enquanto criações elas atuam sobre nós como uma necessidade. No caso do teatro, caberia ao ator ir na sua direção, esse território do risco onde habita a criação. Pesquisar novas linguagens, novas experiências que se aproximem mais da expressão espontânea das imagens oníricas. Buscar trazer a dimensão do ato, do corpo e do gesto como possibilidade de alargar e multiplicar as criações do sonho. Neste sentido, podemos pensar em alguns conceitos encontrados na obra de Winnicott a respeito da "vida criativa comum" como propostas que nos parecem corresponder às proposições de Artaud ([1938] 1999) sobre o teatro, apresentadas mais adiante.
As propostas teóricas de Winnicott ([1951] 1975) sobre o brincar e o viver criativo enunciam estes conceitos vinculados a uma teoria de amadurecimento que tem como centro a questão da necessidade de uma experiência concreta e contínua de relação com um ambiente facilitador, no início da vida, para que o sujeito em construção vá podendo gradativamente se transformar em "um ser que experimenta a si mesmo", na integração das diferentes dimensões do self (psique, soma e mente), tornando-se capaz de viver criativamente dentro das imposições da realidade externa.
No que se refere às origens da criatividade, Winnicott aponta que, nas tentativas de abordagem da questão empreendidas pela psicanálise, perdeu-se de vista em grande parte o tema principal, tendo-se privilegiado apenas "observações secundárias e terciárias em detrimento do que poderia se chamar de primário" (Winnicott, [1971] 1975: 100). O autor ressalta que o tema principal é o do próprio impulso criativo que, embora não possa ser explicado, pode ser relacionado ao viver propriamente dito. Uma original concepção de agressividade, o conceito de espaço transicional e o conceito de uso de um objeto constituem pontos essenciais na obra de Winnicott para a compreensão da questão da criatividade e nos parecem permitir um diálogo com a concepção de teatro abordada neste trabalho.
A agressividade constitui um tema que Winnicott abordou em diferentes momentos de sua obra, dando-lhe um status inovador em relação às concepções clássicas da psicanálise. Tomando como ponto de partida de seu pensamento as contribuições de Freud e Melanie Klein, Winnicott reconhece a importância de propostas destes autores, como a ideia de fusão dos impulsos eróticos e destrutivos, mas recusa a ideia de uma pulsão de morte. Porém a sua originalidade está em postular a existência de uma agressividade primária que se confunde com o movimento da própria vida. Sua concepção de amadurecimento implica a ideia de que, sendo o ambiente favorável, o bebê caminha na direção de uma integração psicossomática, tornando-se cada vez mais potente e necessitando cada vez mais experimentar sua força, lidando com uma crescente capacidade de reconhecer acontecimentos e objetos.
Ao refletir sobre o desenvolvimento afetivo primário, Winnicott ([1945] 1969) observa que durante os estágios iniciais o bebê passa por um estágio de "impiedade primitiva". As manifestações ditas "agressivas" (o comer, o devorar, o morder) são exercidas nos momentos de excitação:
a coisa importante a assinalar a respeito dessa agressividade instintual é que embora cedo se torne algo que possa ser mobilizado a serviço do ódio, é originariamente parte do apetite, ou de alguma forma do amor instintivo. É algo que aumenta durante a excitação e seu exercício é altamente prazeroso (Winnicott, [1945] 1969: 45).
Estas manifestações apresentam-se "sem compaixão" (ruthless) em função da imaturidade do bebê, que não lhe permite avaliar as consequências dos seus atos espontâneos:
A criança normal encontra prazer numa relação impiedosa com a mãe, que se manifesta sobretudo na brincadeira, e precisa da mãe porque apenas ela poderá tolerar sua relação impiedosa, mesmo na brincadeira, pois isto a esgota. Sem este jogo com a mãe, só resta ao bebê esconder este self cruel, dando-lhe vida num estado de dissociação (Winnicott, [1945] 1969: 45).
A experiência da "impiedade" da agressividade primária é, então, a condição de base para uma futura vida saudável, sendo necessário um longo caminho para que o indivíduo se torne gradualmente capaz de se sentir responsável pelos resultados da impulsividade sobre o outro (inicialmente a mãe) e sobre si mesmo, transformando seus impulsos em atos simbólicos adequados não apenas à realidade compartilhada, mas também à realidade das aspirações íntimas do self.
Por meio do conceito de uso de um objeto, Winnicott ([1969] 1975) destaca a função fundamental do outro na construção subjetiva de cada indivíduo, cuja maturidade se relaciona com a capacidade de chegar à criação simbólica. O complexo processo envolvido na passagem da relação de objeto (que cria o objeto subjetivo) para o uso do objeto, situado fora da área de controle onipotente, é condição para a percepção do objeto como fenômeno externo, com o qual podem ocorrer relações enriquecedoras para a experiência existencial.Trata-se de uma mudança de status do objeto que implica uma destruição, pelo sujeito, desse objeto, que precisa, porém, "sobreviver para poder ser usado, contribuindo para o sujeito de acordo com suas propriedades" (Winnicott, [1969] 1975: 126). A destruição desempenha um papel essencial na criação da realidade, colocando o objeto subjetivo para fora do sujeito. O paradoxo envolvido na criação inclui o fato de que a criança deve atacar o objeto, mas este precisa resistir, de modo que apesar do desejo da criança não possa haver destruição. "Neste ponto de desenvolvimento que examinamos aqui o sujeito está criando o objeto no sentido de descobrir a própria externalidade, e há que acrescentar que essa experiência depende da capacidade do objeto de sobreviver" (Winnicott, [1969] 1975: 127).
O sonho, a brincadeira e, mais tarde, a arte e todas as produções culturais serão as indispensáveis e preciosas ferramentas para uma realização simbólica capaz de promover sentimentos de autenticidade: Winnicott ([1969] 1975: 98) pondera que "tanto as pessoas esquizoides quanto as extrovertidas que não podem entrar em contato com o sonho sofrem a mesma insatisfação consigo mesmas". Mas será necessário um longo processo de amadurecimento, uma sofrida transição dos estágios primitivos de ilusão e onipotência, até a possibilidade de aceitação e relação com o mundo do não-eu.
Marcando a importância de uma ponte entre a realidade externa e o mundo interno para que o indivíduo possa lidar com o princípio de realidade, Winnicott ([1951] 1975) propõe considerar-se uma "terceira parte da vida", uma área intermediária, de experimentação, lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa de manter as realidades interna e externa separadas ainda que inter-relacionadas. Partindo da pergunta "onde se encontra a brincadeira?", foi formulado o conceito de espaço transicional como um lugar de interseção entre o real e o irreal que abriga a função simbólica, dinamizada pela imaginação. Este espaço se encontra, diz ainda o autor, "na interação entre nada-haver-senão-eu e a existência de objetos e fenômenos fora do controle onipotente" (Winnicott, [1951] 1975: 139). A criatividade se relaciona com "a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao bebê, e que na vida adulta é inerente à arte e à religião, mas que se torna marca distintiva de loucura quando um adulto exige demais da credulidade dos outros" (Winnicott, [1971], 1975:15) e implica a capacidade de transitar pela orla, que se define como:
uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas (Winnicott, [1951] 1975: 15).
A experiência da criatividade é definida por Winnicott ([1971a] 1975: 95-98) como uma sensação de que "a vida é digna de ser vivida". Em contraste, existe um relacionamento de submissão à realidade externa em que o mundo é reconhecido apenas como algo a exigir adaptação. É possível distinguir neste sentido duas formas de viver patológico, a dos "introvertidos", que se mantêm fora de contato com os fatos da vida, e a dos "extrovertidos", que se sentem alheios ao sonho, vivendo simulacros de existência.
Herdeiro do sonhar e do brincar, o viver criativo está fundamentado numa condição de "amorfia" a partir da qual todos os sentidos podem ser criados, como afirma ainda Winnicott ([1971b] 1975) no artigo "Sonhar, fantasiar e viver". Capaz de abrir-se ao mundo e de inventar a si mesma na conjugação da dimensão imaginária com a aceitação do princípio de realidade, a subjetividade criativa conquista a possibilidade de narrar sua história, conferindo, assim, sentido à própria vida. Ampliando posteriormente o conceito de fenômenos transicionais, Winnicott propôs o termo experiência cultural, com ênfase no termo experiência e marcando o paradoxo inerente à criação dentro da cultura:
a tradição herdada, o fundo comum da humanidade para o qual indivíduos e grupos podem contribuir e do qual todos nós podemos fruir se tivermos um lugar para guardar o que encontramos. [...] Interessa-me, contudo, como tema paralelo, o fato de que em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição. Inversamente, aqueles que nos oferecem uma contribuição cultural jamais se repetem, exceto como citação deliberada, sendo o plágio o pecado imperdoável do campo cultural (Winnicott, [1967] 1975: 138).
A teoria da criatividade em Winnicott implica então, essencialmente, a instauração de uma terceira área de experiência que acolhe o sonho e a agressividade primária e os transforma em ato dotado de sentido simbólico. Embora respeitando a afirmação de Winnicott ([1967] 1975: 98) de que é preciso "separar a ideia de criação das obras de arte", propomos um diálogo com a ideia do "Teatro da crueldade" de Artaud, para depois questionar como seria possível pensar na experiência vivida pelo ator de teatro em termos winnicottianos.
O TEATRO DA CRUELDADE DE ANTONIN ARTAUD
Considerar o teatro como uma função psicológica ou moral de segunda mão e acreditar que os próprios sonhos não passam de uma função de substituição é diminuir o alcance poético profundo tanto dos sonhos quanto do teatro. Se o teatro, assim como os sonhos, é sanguinário e desumano, é, muito mais do que isso, por manifestar e ancorar de modo inesquecível em nós a ideia de um conflito extremo e de um espasmo em que a vida é cortada a cada minuto, em que tudo na criação se levanta e se exerce contra nosso estado de seres constituídos (Artaud, [1938] 1999: 105).
De início apresentamos a noção de cruel em Artaud para mais adiante discutirmos suas ideias sobre um teatro da crueldade. É importante frisar que a origem etimológica de cruel é a palavra cru. Artaud não propõe o cruel como destrutividade, sadismo, ou impulso sanguinário: "Não cultivo sistematicamente o horror. [...] E com isso reivindico o direito de romper o sentido usual da linguagem..." (Artaud, [1938] 1999: 118). Trata-se, portanto, de um sentido diferente e mais amplo. Para Artaud (como para o bebê winnicottiano), "tudo que age é uma crueldade" (Artaud, [1938] 1999: 95). Ele a define também como:
apetite de vida, rigor cósmico, necessidade implacável, turbilhão de vida que devora as trevas, o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é o permanente. Obedecer à necessidade de criar, um apetite de vida cego, capaz de passar por cima de tudo, visível em cada gesto, em cada ato (Artaud, [1938] 1999: 119).
Artaud inicia um de seus textos sobre a crueldade da seguinte forma: "Perdeu-se uma ideia de teatro" (Artaud, [1938] 1999: 96). É possível observar neste enunciado que suas propostas para um teatro da crueldade esbarram inevitavelmente em uma concepção dominante naquela época: o teatro realista, o teatro psicológico. O teatro era considerado um duplo da realidade dominante. Cabia à cena simplesmente imitar com a maior verossimilhança possível a realidade burguesa. O teatro, utilizando-se de suas técnicas de ilusionismo, simulava uma ilusão de realidade, na qual o espectador não passaria de um voyeur. Em sua materialidade, o teatro era disfarçado em favor de uma representação, que deveria criar a ilusão no espectador de que aquilo não era teatro e, sim, realidade cotidiana. Da mesma forma, as forças de criação do teatro eram disfarçadas em favor do drama, de uma história a ser contada.
Enriquecendo a compreensão do texto de Artaud, Derrida (2002) em A escritura e a diferença, dedica um capítulo ao "teatro da crueldade e o fechamento da representação", pontuando que o que se revela a partir daí é a crítica de Artaud à concepção de Arte como mimesis, que é, na arte, a forma mais ingênua de representação
- arte imitativa da vida, arte como cópia da realidade, como duplo da realidade. A experiência teatral encontra-se neste caso limitada, reduzida à mera reprodução das convenções sociais, dos gestos bem controlados, da linguagem articulada.
De forma inversa, a experiência artística apresentada por Artaud deve expandir-se para além das convenções, deve pesquisar, experimentar novas linguagens, novas possibilidades de existência, deve ser considerada como um espaço autônomo em relação à realidade dominante. E, portanto, em suas experimentações, deve alargar, ampliar os limites bem definidos da realidade. A arte aqui é o motor que faz com que as instituições, costumes e hábitos de uma determinada sociedade se transformem, mesmo que imperceptivelmente: "é aqui que o teatro, longe de copiar a vida, põe-se em comunicação quando pode, com as forças puras" (Artaud, [1938] 1999: 92). E continua: "Não sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas creio que o teatro utilizado num sentido superior e o mais difícil possível tem a força de influir sobre o aspecto e a formação das coisas" (Artaud, [1938] 1999: 89).
Destacamos que esses textos, escritos por volta de 1933, foram produzidos no momento em que o cinema ganhava muita força, impondo ao teatro certa crise de identidade. Qual é a função do teatro se o cinema pode com suas tecnologias retratar mais fidedignamente a realidade? Era preciso reinventar o teatro, criar uma nova função para este. Nessa mesma época Artaud assistiu e teve contato com o teatro oriental, especificamente o teatro de Bali. O teatro oriental de forma geral, diferentemente do ocidental, guarda em seus espetáculos um traço marcante de experiência-ritual, na qual os gestos, o corpo, as imagens predominam sobre a palavra, o drama e a "psicologia". O teatro e a dança não estão separados na cultura oriental. Essas influências são determinantes para o teatro da crueldade.
O teatro realista ou psicológico, que se contrapõe ao teatro da crueldade, tem no texto sua única respiração. Cabe ao diretor apenas transpor as palavras para a cena tentando ao máximo valorizá-las, e aos atores apurar suas dicções e falar o texto mais claramente. Derrida (2002) acentua que, se pensarmos o teatro como um corpo, é possível afirmar que o teatro realista-psicológico tem seus órgãos muito bem definidos: o autor, o diretor, o ator, o espectador, cada qual com sua função. E, de certo modo, todos os órgãos submetidos ao Autor, pela soberania do texto teatral. O acontecimento teatral, imediato, que se produz a partir de um encontro real, está aprisionado por um texto, uma representação fechada, ideal, um princípio exterior que ordena e esvazia a experiência teatral imediata. As palavras, no sentido do texto teatral escrito fora do acontecimento presente entre ator e espectador, são o único motor da experiência teatral empobrecida. A proposta de Artaud, como pontua Derrida (2002), é justamente desorganizar os órgãos do corpo do teatro realista e para isso se propõe assassinar o Deus-autor. O teatro, liberto da soberania do texto, afirma o que há de imediato, perigoso e arriscado em seu acontecimento: o ato teatral.
Portanto, no teatro da crueldade, a primazia será da encenação e dos atores. Os espectadores não serão separados, estão no centro da cena, enquanto a encenação se dará ao redor. A linguagem teatral deve abandonar o predomínio da palavra, do diálogo, da linguagem articulada. A linguagem deve se materializar no próprio espaço, nos objetos, nos sons. Deve ser recolocada no próprio corpo do ator não como uma palavra que representa um pensamento ou emoção, mas uma palavra encarnada, que se expressa como um gesto. O que deve prevalecer nesta palavra, mais do que sentidos, são encantações, imagens auditivas. Artaud não abandona a palavra, mas a esta é atribuído um novo sentido: "dar às palavras mais ou menos a mesma importância que têm nos sonhos" (Artaud, [1938] 1999: 107), como ele diz.
Trata-se de fazer do teatro uma função: ativar a sensibilidade, em tempos em que domina um entorpecimento geral, de modo que, "abalando as nossas representações, insufle-nos o magnetismo ardente das imagens e acabe por aqui sobre nós a exemplo de uma terapia da alma cuja passagem não se deverá esquecer" (Artaud, [1938] 1999: 96).
O teatro é o único lugar do mundo e último meio de conjunto que nos resta para alcançar diretamente o organismo e, nos momentos de neurose e baixa sensualidade como este em que estamos mergulhados, para atacar essa baixa sensualidade através dos meios físicos aos quais ela não resistirá (Artaud, [1938] 1999: 91).
Como se pode ver nesta passagem, a crueldade relaciona-se diretamente à noção de ato e gesto. Desmontada a soberania do texto, o teatro estaria livre para ser abordado da perspectiva do ator, aquele que age. O ator se exercita e treina para aprimorar seus reflexos, ou seja, ativar e dilatar seu potencial de expressão e reação a um determinado estímulo. De nada vale o pensamento, ou a emoção não manifesta. Interiorizados, o pensamento e a emoção só teriam um caminho: enquanto impulsos que determinam um gesto, uma expressão imediata, pois "é no palco que se reconstitui a união do pensamento, do gesto, do ato" (Artaud, [1938] 1999: 91). Ou ainda:
Para quem se esqueceu do poder comunicativo e do mimetismo mágico do gesto o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque de qualquer modo há no teatro seres humanos para manifestar a força do gesto feito (Artaud, [1938] 1999: 91).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acostumamo-nos a associar muitas vezes a espontaneidade do ato a algo da ordem do destrutivo: "pense duas vezes, antes de agir". No entanto, o ato é o impulso da criação, o ato quer expressar-se, estetizar-se e não destruir. Diz Artaud: "Mas ninguém se esqueça que um gesto teatral é violento, porém desinteressado" (Artaud, [1938] 1999: 93). O ato de criação é rigoroso em sua expressão, econômico, não precisa ser mais do que é. O gesto nunca se repete, é sempre único e portanto real: "O ator não repete duas vezes o mesmo gesto" (Artaud, [1938] 1999: 7).
Sem o gesto espontâneo, nos lembra Winnicott ([1984] 2005), a capacidade de construir inerente à criação está comprometida. O que acaba provocando um ato sanguinário é justamente a necessidade de contenção e de repressão da dimensão afetiva. Amarrado, amordaçado, por ter que pensar duas vezes, só um ato desesperado para se livrar das amarras, este, sim, ato destrutivo, disperso e ansioso. E nessas condições é importante destacar que a crueldade, em Artaud, é consciência aplicada e não catarse, ou descarga emocional. "Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, nuance cruel" (Artaud, [1938] 1999: 118). Pontua ainda a relação com o sonho: "Trata-se portanto de fazer do teatro, no sentido próprio da palavra, uma função: algo tão localizado e preciso quanto a circulação do sangue nas artérias, ou o desenvolvimento aparentemente caótico das imagens do sonho no cérebro" (Artaud, [1938] 1999: 104). E ainda:
Proponho a volta, através do teatro, a uma ideia do conhecimento físico das imagens e dos meios de provocar transes, assim como a medicina chinesa conhece, em toda a extensão da anatomia humana, os pontos que devem ser tocados e que regem até as funções mais sutis (Artaud, [1938] 1999: 91).
Para Artaud as imagens de sonho, assim como toda poesia, só têm sentido como experiência sensível, "linguagem nua do teatro, linguagem não virtual, mas real" (Artaud, [1938] 1999: 105). Não se trata de metáforas sublimes e distantes do plano concreto: "As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novas falam, mesmo que feitas de palavras" (Artaud, [1938] 1999: 98). É necessário criar modos de expressão que transfigurem e presentifiquem no espaço, nos corpos, objetos, a força contida nas imagens poéticas e oníricas. Fazer o espaço "falar". "E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade" (Artaud, [1938] 1999: 97).
O teatro carrega em si uma força transformadora e ativadora da sensibilidade realmente surpreendente. O potencial de ativar esta sensibilidade cria-se no contato direto corpo-a-corpo, que se dá entre o ator e o espectador, criando-se a obra teatral. Há na comunicação teatral uma polissemia, ou seja, múltiplos sentidos, múltiplas linguagens que se sobrepõem, o texto, a luz, o som, a cena, os atores, os espectadores ao lado, etc. É uma obra coletiva, que nunca se fecha. Esses múltiplos signos da obra-criação teatral compõem algo que deveria fugir de uma representação fechada, de uma obra acabada. É uma arte efêmera. Antes que a obra se feche, que represente algo "verdadeiro", tanto para o espectador como para o ator, ela se acaba, se extingue como se nunca tivesse existido, uma experiência de transicionalidade perpassada pelo imediato, pelo incontrolável, o incapturável.
Poderíamos aproximar este fenômeno daquilo que caracteriza o brincar tal como descrito por Winnicott. Não por acaso, em diversos idiomas a representação teatral é denotada pelo mesmo verbo que define o ato de brincar: em inglês to play, em francês jouer, em alemão spielen, em espanhol jugar... Assim como o brincar (e o sonhar), o teatro se faz no imediato, no imprevisível, no movimento impossível de capturar que caracteriza a transicionalidade. A obra teatral acontece junto com o espectador, num processo que, nos termos usados por Winnicott ([1971] 1975: 74) para definir a relação analítica, poderia se caracterizar aqui também como a "sobreposição de duas áreas de brincadeira". É, portanto, uma obra que se faz e se produz no próprio gesto criativo que a constitui. O ato de criação e a obra se confundem. Entre o ator e espectador a obra se produz apenas como uma sensação, como uma intuição, e nunca como algo definitivo e consolidado. Por mais que se façam ensaios, estes não passam de um projeto, de uma expectativa ideal, ilusória. A obra teatral só se faz quando há um outro, o público, cúmplice e parceiro da brincadeira. Pode-se ler de modo solitário uma peça de teatro; isso talvez seja literatura, mas não teatro.
Esses termos possibilitariam então buscar algumas relações entre a experiência teatral, a brincadeira e a experiência onírica. Trata-se aqui apenas de pensar o brincar/atuar e o sonhar sob o enfoque do conceito de transicionalidade. Os atos teatrais, como os jogos infantis, são sempre experimentações. Tal como o brincar winnicottiano e a experiência de sonhar, a experiência teatral em seu acontecimento espontâneo é manifestação de saúde, entendida aqui como ativação da sensibilidade e relacionamento com suas respectivas produções criativas.
REFERÊNCIAS
Artaud, A. ([1938] 1999). O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Augras, M. (1978). O ser da compreensão. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Derrida, J. (2002). A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Kosovski, P. M. (2008). O real e a escritura do sonho. Trabalho apresentado na Semana de Psicologia realizada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em setembro de 2009. [ Links ]
Rosset, C. (1988). O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Porto Alegre: L&PM. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1945/1969). Development affectif primaire. In: De la pédiatrie à la psychanalyse (pp. 33-47). Paris: Payot. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1951/1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: O brincar e a realidade (pp. 13-44). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1967/1975). A localização da experiência cultural. In: O brincar e a realidade (pp. 133-144). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1969/1975). O uso de um objeto: relacionamento através de identificações. In: O brincar e a realidade (pp. 121-132). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1971a/1975). A criatividade e suas origens In: O brincar e a realidade (pp. 95-120). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1971b/1975). Sonhar, fantasiar e viver; uma historia clínica que descreve uma dissociação primária. In: O brincar e a realidade (pp. 45-58). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1984/2005). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Recebido em 03 de novembro de 2009
Aceito para publicação em 26 de abril de 2010