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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Entre a psicanálise e a psiquiatria: a medicalização do trauma na contemporaneidade

 

Between psychoanalysis and psychiatry: the medicalization of trauma in contemporaneity

 

 

Fernanda CanavêzI; Regina HerzogII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Bolsista CAPES
IIProfessora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Os sintomas decorrentes de uma experiência traumática constituem um desafio para os clínicos que destes se ocupam, independente da filiação teórico-clínica. Este artigo objetiva discutir a clínica do trauma, tanto referida ao campo psicanalítico, quanto circunscrita ao discurso psiquiátrico. Pretende-se investigar categorias diagnósticas das quais a psiquiatria lança mão no intuito de compreender o estatuto do trauma neste campo, bem como a proposta clínica que almeja dar conta desta problemática. O objetivo não é apresentar o discurso psiquiátrico como um mero contraponto identificatório à psicanálise, mas problematizar possíveis continuidades e descontinuidades daquele com a clínica psicanalítica. Por fim, pretendese esboçar contribuições do campo psicanalítico para a discussão sobre o trauma e seus destinos na contemporaneidade.

Palavras-chave: psicanálise; psiquiatria; trauma; clínica; transtorno de estresse pós-traumático.


ABSTRACT

Symptoms that occur due to traumatic experiences are a challenge for clinical therapists, regardless of their clinical-theoretical standards. This article aims to discuss the traumatic clinical disorders, as referred to in psychoanalysis as well as in the psychiatric field. It is intended to appraise diagnostic categories which psychiatry uses in order to understand trauma, as well as the clinical proposal for its treatment. Its goal isn't to present the psychiatric discourse as a counterpoint to psychoanalysis, but to identify possible continuities and discontinuities of that discourse with the psychoanalytical clinic. At last, it shall draft contributions from the psychoanalytical field to the discussion of trauma and its destinations in contemporariness.

Keywords: psychoanalysis; psychiatry; trauma; clinic; posttraumatic stress disorder.


 

 

Se persistirem os médicos, os sintomas deverão ser consultados.
Tom Zé

 

INTRODUÇÃO

Embora o tema da violência não constitua novidade para as ciências humanas, muito se discute atualmente acerca dos efeitos desta para os sujeitos, não passando a psicanálise incólume por tais questões. As consequências da violência urbana estão na ordem do dia, como atestam os debates aquecidos em países mais afetados pelas desigualdades sociais, embora seu alcance tenha ultrapassado as barreiras nacionais. Certamente a violência adquiriu outros coloridos depois dos campos de concentração nazistas e, mais recentemente, com o fatídico 11 de setembro, de maneira que o cenário político mundial aponta para o que alguns chamam de estado de exceção tornado regra, como demonstram as afirmações do filósofo italiano Agamben (2003).

As modalidades de padecimento psíquico desencadeadas a partir de uma vivência traumática tornaram-se objeto de estudo da psicanálise com as elaborações de Freud e de seus contemporâneos, como Sándor Ferenczi, por ocasião dos sintomas peculiares desenvolvidos pelos combatentes feridos na Primeira Guerra Mundial. A exigência de conferir ênfase a fatores desencadeantes externos na equação etiológica das neuroses e a impossibilidade de inscrição daquilo que acossava o sujeito abalaram, tal como aparece em "Além do princípio de prazer" (Freud, [1920] 1969), os alicerces da teoria freudiana elaborada por ocasião do tratamento das histerias, eminentemente calcada na suposição de um trauma fantasiado, de cunho sexual.

No tocante à etiologia das neuroses traumáticas, Freud se mostrou ambivalente quanto à inclusão de uma natureza sexual do trauma. Fazendo eco à postura hesitante de Freud, os sujeitos de nossa época não cessam de apontar para o que S. Zizek, em conferência proferida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em outubro de 2008, designou como desejo de morte, em lugar de uma problemática referida ao investimento libidinal. Esta situação nos leva a circunscrever a problemática do sujeito pós-traumático na série das configurações de padecimento psíquico incitadas pela cultura atual, a qual vem assumindo características predominantemente traumáticas (Birman, 2006; Herzog, 2008).

Desse modo, é possível afirmar que o mal-estar na atualidade decorre de uma vulnerabilidade ao trauma, já que se observa a derrocada de mecanismos de simbolização de outrora, os quais funcionavam como defesa ante a catástrofe (Birman, 2006). O que está em questão para a psicanálise são as condições de sua própria práxis, cuja constituição remonta à possibilidade de apalavrar o mal-estar. É, portanto, a partir deste impasse que os fenômenos engendrados pelo encontro traumático tornam-se objeto de estudo para a psicanálise.

Este aspecto desafiador dos sintomas decorrentes de um trauma impõe questões igualmente contundentes ao discurso médico. As raízes da noção de trauma são identificadas no campo da medicina física como uma lesão provocada por agentes externos em um organismo. Todavia, a clínica médica precisou dispor de novas tramas conceituais para lidar com a dimensão psicológica envolvida em uma ocorrência traumática, de maneira que critérios diagnósticos se modificaram ao longo dos anos, assim como a abordagem a este tipo de sintomatologia.

Das neurociências às psicoterapias, a psicopatologia do trauma é tratada nesta perspectiva de modo a silenciar os sintomas, seja através de tratamento medicamentoso ou de psicoterapias que prometem, por exemplo, melhores habilidades neurais (Peres, Mercante & Nasello, 2005). A título de ilustração, esboçamos uma tese corrente no campo das neurociências, sustentada a partir de descobertas calcadas em neuroimagens. Estas afirmam que a dificuldade de integração da memória traumática é decorrente, dentre outros fatores determinantes, do volume diminuído do hipocampo ou de níveis mais baixos de cortisol (Peres, Mercante & Nasello, 2005). O hipocampo é um dos componentes do sistema límbico, o qual está associado à regulação dos processos emocionais, ao passo que o cortisol é um hormônio produzido pelas glândulas suprarrenais, secretado em resposta ao estresse (Machado, 2000).

O modo como os fenômenos decorrentes de enfrentamento traumático vêm se tornando objeto de estudo por parte da medicina é especialmente interessante, pois parece refletir o lugar reservado pela cultura contemporânea ao mal-estar. Com efeito, é inquestionável a difusão do discurso médico-psiquiátrico e o seu correlato repertório medicamentoso, como atestam matérias veiculadas na mídia de massa.

Vale mencionar de antemão que não faz parte dos objetivos do presente trabalho investigar o discurso médico-psiquiátrico e suas transformações como um mero contraponto identificatório à prática psicanalítica, mas compreender suas condições de emergência e analisar sua relação com esta última. A partir disso, pretende-se, por fim, delinear a contribuição que a psicanálise tem a oferecer na discussão sobre o trauma e seus destinos na atualidade.

 

O TRAUMA NO DISCURSO MÉDICO-PSIQUIÁTRICO

A noção de traumatismo é herdeira dos campos da medicina e clínica cirúrgica, remontando às consequências de ferimentos ou lesões causados por um choque mecânico, ou seja, por uma violência de origem externa. A palavra trauma vem do grego e está associada à noção de ferida e ao ato de furar. Esta filiação não se dá sem consequências, uma vez que suas raízes pressupõem uma marca visível aos olhos do médico e manipulável por este.

No campo psiquiátrico, a figura do trauma é representada por diferentes categorias diagnósticas cujas nomenclaturas, assim como os critérios diagnósticos, podem variar conforme o manual utilizado (Kapczinski & Margis, 2003). As duas grandes iniciativas no tocante à universalização dos diagnósticos são a Classificação Internacional de Doenças (CID), que está em sua décima versão, e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (do inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM), em sua quarta versão.

Dentre estas categorias estão a Reação Aguda ao Estresse (RAE), o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e a Alteração Permanente de Personalidade após Experiência Catastrófica. O foco desta exposição será a segunda categoria diagnóstica, ainda que as demais possam ser tangenciadas. Isso porque os critérios diagnósticos e as discussões suscitadas por este transtorno estão na ordem do dia no campo médico, que se vê às voltas com a crescente taxa de pacientes com suas manifestações. OTEPT foi inserido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) em sua terceira edição, que data da década de 1980. Trata-se, desse modo, da formalização relativamente nova de um diagnóstico no campo da medicina (Oliveira, 2007), novidade esta que traz algumas implicações para a investigação aqui proposta, como veremos a seguir.

O diagnóstico do referido transtorno é controverso, embora haja um consenso quanto à presença da seguinte tríade sintomatológica para a configuração do quadro de TEPT: revivescência, evitação e hiperexcitabilidade do sistema nervoso simpático ou hiperestimulação autonômica. A revivescência pode se dar por meio de memórias intrusivas ou pesadelos, a evitação se refere a tudo que esteja direta ou indiretamente relacionado à experiência traumática e a hiperexcitabilidade se faz notar pela reatividade fisiológica frente a indícios que remetam ao evento traumático, dificuldade para conciliar o sono e irritabilidade.

O paciente pós-traumatizado é acossado por tamanha ansiedade - o que concorre para um quadro importante de isolamento social - na tentativa de evitar não só novas ocorrências traumáticas como as reações que o sentimento de ameaça pode ocasionar. Por isso o TEPT é amplamente associado a outros transtornos, não sendo raro o seu aparecimento na versão comórbida. Este transtorno é geralmente associado a quadros de depressão maior, transtorno de ansiedade generalizada, abuso de substâncias e transtorno do pânico (Berlim, Perizzolo & Fleck, 2003). As semelhanças deste quadro com aquele descrito por Freud por ocasião do tratamento do pequeno Hans (Freud, [1909] 1976), um caso de histeria de angústia, não escapam ao leitor familiarizado com os textos freudianos.

Todavia, tendemos a aproximar as manifestações do TEPT ao quadro descrito por Freud como neuroses atuais, de modo que os sintomas fóbicos seriam índices de um desdobramento dos sintomas decorrentes do encontro traumático. Não se trata de presumir apressadamente um diagnóstico que soaria falacioso nos termos psicanalíticos desta problemática. Por enquanto, o que importa é esclarecer como aproximamos tais sintomas de um campo de análise inicialmente banido do campo da psicanálise pelo próprio Freud. Isso devido à separação das neuroses atuais da classe das psiconeuroses, nas quais Freud identificava de maneira inequívoca uma significação simbólica, que remetia à mais tenra infância, passível de ser interpretada e tratada pela psicanálise.

Em contrapartida, a determinação da neurose atual, como o próprio nome sugere, seria explicada a partir de fatores atuais. É importante apenas mencionar que o próprio Freud não descartava a possibilidade de encontrar fatores infantis dentre os determinantes da neurose atual (Freud, [1917] 1969). Entretanto, tal "descoberta" nunca se deu efetivamente em sua obra, de maneira que não privilegiaremos na etiologia desta neurose uma determinação exclusiva a ser encontrada na infância do sujeito, o que não significa que a história do mesmo deva ser desconsiderada.

Como anteriormente indicado, o próprio Freud demonstrou resistência em dar relevância aos fatores atuais dentre os determinantes de uma neurose em detrimento de um trauma infantil, de origem sexual. Fato curioso é a resistência que ainda hoje se encontra no movimento psicanalítico em considerar acontecimentos traumáticos que não sejam explicados sob a égide de uma determinação sexual e, em última instância, enredados por uma trama edípica (Mendlowicz, 2006).

Do mesmo modo, não são raros os discursos apaixonados por parte de psicanalistas que de saída se opõem ao tratamento medicamentoso proposto para os mais diversos transtornos psiquiátricos, dentre os quais o TEPT. Como demonstrou Pereira (2005), a possibilidade de encontrar nos psicofármacos uma resposta completa e definitiva para o sofrimento humano colocaria em xeque a clínica psicanalítica, estruturada como um discurso sobre o sujeito e seu desejo. Ainda assim, prossegue Pereira (2005: 19), "a psicanálise ganharia em não se esquivar de tal debate mas, ao contrário, deveria nele encontrar novas questões que revigorassem seu próprio discurso e reiterassem suas próprias exigências".

Na esteira desta proposta, para além de demonizar as categorias diagnósticas erigidas pela psiquiatria contemporânea e a incontestável difusão mercadológica de psicotrópicos, cabe atentar para os determinantes deste cenário e, especialmente, para o modo como os sujeitos respondem aos mesmos. Nesse sentido, entendemos que, se há um elemento a ser problematizado pela psicanálise no caráter pragmático cada vez mais atribuído à psicopatologia hoje, este se refere à desqualificação da subjetividade do paciente em jogo na construção dos seus sintomas e na clínica que se propõe tratá-los.

Este aspecto pode ser observado a partir da dificuldade encontrada pelos clínicos no estabelecimento do diagnóstico de TEPT, tarefa sujeita ao chamado viés confirmatório (Oliveira, 2007). Este diz respeito ao diagnóstico apressado quando o profissional sabe que se trata de alguém que experimentou um trauma e apresenta alguns dos sintomas elencados nos critérios diagnósticos. Neste caso, aquele que passou por um episódio passível de desencadear um trauma estaria inexoravelmente colado ao transtorno, de maneira que o evento traumático teria muito mais peso do que os demais fatores determinantes do TEPT, como a natureza do trauma ou o tempo de exposição ao evento estressor (Kapczinski & Margis, 2003).

Em linhas gerais, o modo como se responde ao trauma estaria desconsiderado ou, pelo menos, não seria de grande relevância. Por vezes as características do paciente são evocadas, como, por exemplo, quando se entende que a idade de vivência do evento traumático determina a gravidade dos sintomas e o prognóstico do caso. De acordo com esta leitura, as diferentes faixas etárias seriam correlatas das distintas maneiras de resistir ao traumatismo. Também neste caso a resposta do sujeito ao evento estressor não seria singular, mas atrelada a uma suposta etapa do desenvolvimento do sujeito, sendo esta determinante principal para avaliar a vulnerabilidade do paciente.

Sobre este aspecto, Fédida (1998) aponta que a participação da subjetividade do sujeito no desencadeamento de suas crises é desconsiderada na descrição dos quadros nosográficos, de modo que "é mais importante que o diagnóstico seja 'confiável' do que sofisticado, do ponto de vista da elucidação dos elementos em jogo na constituição daquela condição psicopatológica específica" (Fédida, 1998: 14). A título de exemplificação, a categoria do CID-10 de Alteração Permanente de Personalidade após Experiência Catastrófica congrega transformações persistentes explicadas a partir da magnitude do trauma sofrido. Neste tipo de alteração, "o estresse deve ser tão extremo que é desnecessário considerar a vulnerabilidade individual para explicar seus profundos efeitos na personalidade" (OMS, 1993: 204). Ou seja, o sujeito pode ter sua personalidade alterada devido à intensidade do trauma, não importando suas características singulares até a ocorrência do evento estressor.

Argumentando sobre o crescente processo de vitimização dos sujeitos, Eliacheff e Larivière (2007) afirmam que o diagnóstico de TEPT elimina toda subjetividade, uma vez que há um esforço para compreender o transtorno como uma "reação normal" frente a um acontecimento traumático. Assim sendo, a singularidade é descartada graças à normalização dos sujeitos na contemporaneidade. Segundo os autores, o objetivo deste processo é garantir indenizações para as vítimas por terem sido lesadas, já que estas não teriam tido nenhuma participação ou responsabilidade pelo ocorrido e, o que é ainda mais questionável, pelos sintomas desenvolvidos.

Por hora vale destacar que, em consonância com esta perspectiva, os índices de pacientes diagnosticados com TEPT crescem a passos largos, fazendo jus às mais diversas formas de violência que nos acometem: desde a violência urbana ao alarde que gira em torno de catástrofes naturais e temíveis efeitos do aquecimento global, da instabilidade preconizada por um mercado neoliberal flexível a ameaças terroristas expostas em jornais, ao lado de mortes causadas pela gripe vilã, contadas uma a uma diariamente. A iminência do trauma vem de todos os lados, a todo o momento. O aumento significativo de situações a serem englobadas sob a égide do TEPT pode ser verificado inclusive nas modificações sofridas pelos manuais diagnósticos.

No início da aplicação do referido diagnóstico, a população de pacientes acometidos era majoritariamente constituída por combatentes de guerra, situação que se modificou consideravelmente nos últimos anos (Souza, 2007). Atualmente as situações agrupadas em torno deste transtorno são tão heterogêneas que alguns pesquisadores reivindicam mais especificidade para o diagnóstico do mesmo, ao passo que outros lutam pela inclusão de novas categorias diagnósticas (Wittchen, Gloster, Beesdo, Schöfeld & Perkoning, 2009) em torno do mesmo transtorno.

A terceira versão do DSM caracteriza o TEPT nos termos de uma doença psiquiátrica deflagrada a partir da exposição direta ou indireta (quando o paciente é apenas testemunha) a situações que envolvam ameaça à integridade física ou, em casos mais extremos, risco de morte. Dessa forma, os sintomas podem se desenvolver sem que o sujeito1 tenha sido a vítima direta da situação traumática. A última versão deste manual traz uma nova diretriz diagnóstica, preconizando que o sujeito deve ter respondido ao evento traumático com medo, impotência ou horror. Trata-se da inclusão do modo como a resposta ao evento foi dada dentre os critérios diagnósticos, o que parece atribuir mais peso aos determinantes do sujeito em relação à natureza do trauma.

No que diz respeito a um possível estressor desencadeador do TEPT, o DSM IV apresenta o fato de o sujeito ter ouvido falar a respeito de alguma ocorrência traumática, configurando-se enquanto uma vítima secundária. Esta inflexão parece fértil, em especial por revelar um espaço consistente concedido no discurso médico à influência da linguagem no desenvolvimento de um transtorno psiquiátrico decorrente de um trauma. Nesta perspectiva, observamos um deslocamento da importância do trauma per se, da natureza deste, para a maneira como o paciente lida com o ambiente que o cerca. De todo modo, é inquestionável que uma inflexão como esta concorre para que um número maior de sujeitos adquira "passe livre" para receber o diagnóstico.

Esta breve exposição da celeuma instaurada no campo psiquiátrico fornece pistas a respeito do campo minado que é a discussão deste transtorno hoje. Ainda que esta categoria diagnóstica esteja ensaiando seus primeiros passos na clínica psiquiátrica, já atrai para si olhares como uma questão de saúde pública. Isso porque muitos estudos têm relacionado o TEPT a gastos suntuosos efetuados tanto no campo da assistência em saúde, como do sistema previdenciário, uma vez que inúmeros funcionários são afastados de seus empregos devido aos sintomas aqui descritos, corroborando a tese acima evocada (Eliacheff & Larivière, 2007).

Esta problemática remete inevitavelmente aos chamados ganhos secundários da doença, já evocados por Freud como benefícios obtidos pelo eu através dos sintomas (Freud, [1917] 1969). O transtorno de estresse pós-traumático tem constituído um desafio efetivo para médicos peritos, aos quais é atribuída a responsabilidade de decidir se o paciente de fato sofre em decorrência de seus sintomas, o que entravaria o retorno ao trabalho, ou se destes se utiliza para boicotar a reabilitação funcional. Destarte, tornou-se corriqueiro testemunhar relatos que expõem tais pacientes como "preguiçosos" que reivindicam para si um benefício ao qual não teriam a princípio direito.

Esta discussão é extremamente antiga, sendo que até mesmo Freud, diante da suposição de simulação dos sintomas da neurose de guerra, fez questão de sublinhar que apenas uma pequena parcela dos pacientes simulava a doença para se livrar dos horrores do combate por ocasião da Primeira Guerra Mundial (Gay, [1923] 1989). Importante é notar como a responsabilidade nesse caso fica atribuída ao médico. É como se o sujeito fosse relegado ao papel de coadjuvante de sua própria história, sobre a qual médicos, sindicalistas, psicólogos e advogados devem debater para decidir os destinos do trauma para a vítima em questão. E o psicanalista?

 

PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA: CONTINUIDADES OU DESCONTINUIDADES?

As relações entre o discurso psicanalítico e o discurso médico são complexas e remontam à própria origem do método psicanalítico. Este foi concebido por Freud, um médico neurologista que tentou dar conta de sintomas histéricos que escapavam à compreensão da medicina de sua época.

Com efeito, os sintomas histéricos eram refratários aos métodos convencionais e, ainda que a remissão dos mesmos pudesse ser observada temporariamente graças ao tratamento hipnótico, logo eles retornavam ou reapareciam com outras roupagens (Freud, [18931895] 1969). De maneira correlata, as buscas por uma inscrição anatômica das histerias fracassaram. Era preciso dar um passo além de explicações calcadas em um determinismo fisiológico, assim como aventar um método de envergadura similar àquela dos sintomas histéricos para a sociedade da época. Quer dizer, era premente se voltar justamente para o que permanecia às margens do discurso da ciência moderna.

Freud não só concentrou seus esforços para lançar luz aos mecanismos dos sintomas histéricos e elaborar um método capaz de tratá-los como acabou denunciando os efeitos de uma sociedade repressora e da medicina que a esta estava associada. A pesada mão da moral sexual moderna foi elencada dentre os fatores determinantes dos sintomas neuróticos (Freud, [1908] 1969), moral da qual não escapavam os médicos que se propunham tratar as histerias. É o que nos mostra Freud ao expor opiniões de médicos partidários da "causa da histeria" na ocasião de seus estudos, associando, por vezes em tom pejorativo, a histeria a fracassos na vida sexual de tais pacientes (Freud, [1914a] 1969). Sobre este aspecto, coube a Freud extrapolar os limites das "fofocas de salão" e extrair de comentários pejorativos a importância da sexualidade no mecanismo de formação dos sintomas histéricos.

Em última instância, é possível afirmar que Freud deu voz às histéricas silenciadas pelo método hipnocatártico. Seu método, até então em fase de elaboração, trazia a originalidade de deixar falar livremente as pacientes, que deveriam relatar os seus sintomas, independente dos mais diferentes tipos de resistência que pudessem vir a entravar este processo (Freud, [1893-1895] 1969). Ao contrário dos costumes de sua sociedade, o método freudiano preconizava que a fala fosse desprovida de qualquer crivo moral que pudesse interrompê-la.

Como sugere Mezan (1985), por mais que a constatação da nocividade da repressão dirigida à sexualidade e a utilização de um método que se propunha garimpar o desconhecido da mente não cheguem ao estatuto de um projeto político estruturado por Freud, "é verdade que certas indicações mostram sob quais linhas ele concebe, ainda que fragmentariamente, uma sociedade menos coercitiva" (Mezan, 1985: 499). Nesse sentido, se os trabalhos iniciais de Freud evidenciam um médico ansioso na busca pela remissão sintomática nos curiosos casos de histeria (Freud, [1893-1895] 1969), este furor pela cura logo cede passagem à importância concedida aos sintomas como uma produção particular que muito diz a respeito do sujeito.

Isto quer dizer que o sintoma não mais deveria ser considerado um corpo estranho do qual o sujeito desejava e podia se livrar o quanto antes. Ao contrário, as investigações freudianas revelam o sintoma como uma formação substitutiva surgida no lugar de um desejo que não poderia se manifestar enquanto tal devido a entraves morais. A partir de tais formulações os estudos de Freud tiveram desdobramentos devido a impasses clínicos e reviravoltas teóricas (Freud, [1914b] 1969; Freud, [1920] 1969). Todavia, por mais que novos conceitos tenham sido incluídos no arcabouço clínico-conceitual da psicanálise, a concepção de sintoma acima mencionada passou praticamente incólume pelas reviravoltas teóricas. Quer dizer, independente dos determinantes e dos diferentes aspectos do sintoma neurótico, este continuou a figurar como uma produção do sujeito que tem uma função para este. Diferente da abordagem neurológica, ponto de partida de Freud, o método psicanalítico traz para a cena principal a subjetividade do paciente, centrando o tratamento na palavra.

A partir de uma visada distinta, a importância dos sintomas histéricos também não escapou à observação do filósofo Michel Foucault. Ao criticar o entendimento de que os sintomas seriam passíveis de tratamentos, Foucault ([1974] 2006) os apresenta como fenômeno de luta. Nesta perspectiva, a histeria seria mais uma forma de resistência erigida face ao poder psiquiátrico e menos um indício de doença para a qual deveriam se concentrar esforços visando à cura. Foucault, referindo-se ao movimento de contestação do saber psiquiátrico dominante surgido na década de 1960, afirma que os histéricos seriam os "verdadeiros militantes da antipsiquiatria" (Foucault, [1974] 2006: 325).

Independente da compreensão acerca do sintoma, tanto em Freud quanto em Foucault este é positivado: no primeiro, por se tratar de uma produção subjetiva que carrega em si a verdade do sujeito, isto é, que muito diz a respeito de seus desejos e mecanismos de defesa. No caso do segundo autor, por ser um fenômeno que resiste às imposições de poder próprias ao campo psiquiátrico. Ambas as formas de considerar o sintoma escapam à tentativa de silenciá-lo, distinguindo-se da posição que pode ser adotada pela clínica psiquiátrica ainda hoje.

É possível afirmar que o método psicanalítico e o psiquiátrico comportam perspectivas distintas acerca do sintoma. O objetivo último de uma análise não reside na eliminação de sintomas, sobretudo de sintomas preestabelecidos por manuais diagnósticos prontos a serem verificados em interrogatórios classificatórios. Entretanto, a maneira como a psicanálise foi incorporada no Brasil deu margem para que os dois métodos se confundissem, ocasionando consequências importantes para a clínica psicanalítica ainda hoje.

A difusão da psicanálise em nosso país conta com uma particularidade crucial para a circunscrição do tratamento dispensado aos traumatizados, seja a partir do discurso psiquiátrico ou de uma determinada forma de conceber a clínica. Isso porque, como demonstra Birman (1988), a incorporação do saber psicanalítico no Brasil se deu principalmente através da instituição psiquiátrica nos idos dos anos vinte e trinta. Isto quer dizer que a representação social deste método está atrelada, de saída, às técnicas terapêuticas utilizadas pela psiquiatria para a contenção da loucura em suas mais diversas manifestações.

Ainda segundo o autor, o pontapé inicial da inserção social da psicanálise em nosso país não produziu qualquer impacto ou lançou questionamentos à racionalidade médica inerente à terapêutica psiquiátrica, de modo que esta apreensão da psicanálise "silencia a originalidade do seu saber e anula a sua diferença face ao saber médico" (Birman, 1988: 9). A partir desta provocação, cabe problematizar as possíveis continuidades e descontinuidades da chamada clínica do trauma no âmbito da experiência analítica e aquela desenvolvida a partir de fundamentos médicos e psiquiátricos.

Já vimos que a abordagem psiquiátrica da referida clínica prima pela remissão dos sintomas, assim como pelo refinamento de categorias diagnósticas, na tentativa de eliminar o viés confirmatório e criar condições propícias para o estabelecimento do diagnóstico diferencial, dada a recorrência da versão comórbida do TEPT. Uma vez estabelecido o diagnóstico, entra em cena o tratamento medicamentoso, cujo objetivo é minimizar os efeitos dos sintomas relatados pelos pacientes.

E a psicanálise, o que tem a oferecer como contribuição à chamada clínica do trauma? Será que a clínica psicanalítica, em especial a partir de sua difusão como método terapêutico na contenção da loucura, consegue sustentar sua especificidade frente ao saber médico também no que diz respeito à experiência traumática? Como mencionado anteriormente, é comum encontrarmos discursos apaixonados por parte de psicanalistas que se opõem radicalmente a tratamentos medicamentosos.

Além disso, como ressaltam Eliacheff e Larivière (2007), a clínica psicanalítica de sujeitos que passaram por experiências traumáticas pode adquirir o único objetivo de tentar "dar um sentido" ao trauma, o qual já se tornou um verdadeiro jargão psi. Os autores mostram que este tipo de intervenção geralmente concorre para o sujeito se sentir castigado em resposta a uma falta cometida no passado, atentando para a necessidade de se pensar em uma nova forma de abordagem.

Acompanhando esta leitura, vale indagar se a intervenção de cunho psicanalítico deve se dedicar exclusivamente à busca pelas raízes do trauma e à cruzada contra o tratamento medicamentoso. Sobre este segundo aspecto, Fédida (1998: 35) problematiza a relação entre a fala e o medicamento ao debater o "tratamento do psíquico pelo químico". O autor faz uma advertência para que os psicanalistas não subestimem o uso crescente de psicotrópicos, convidando-nos a pensar criticamente o lugar destes últimos também no âmbito da experiência analítica. Ao buscar as condições através das quais a fala pode ou não propiciar meios de interiorizar a ação de um medicamento, Fédida (1998: 40) chega à conclusão de que "é o conhecimento da ação terapêutica pelo psíquico [...] que é própria para determinar segundo quais incidências intervém uma ação farmacológica".

Assim sendo, mais do que criticar o uso desenfreado de psicotrópicos, Fédida (1998) restitui o lugar da subjetividade nesta problemática, conferindo à fala o lugar de importância que lhe é devido na experiência analítica. Do mesmo modo, é importante retornar à originalidade da experiência analítica proposta por Freud como uma experiência que se dá entre analista e analisando e não de caráter prescritivo, estabelecido de antemão.

Também no tocante a este assunto, é ainda oportuno lembrar que a psicanálise não oferece manuais ou diretrizes diagnósticas prontas a serem confirmadas ou descartadas conforme os relatos sobre sintomas. Nem mesmo o aprofundamento teórico ou anos de experiência são suficientes para engessar a experiência psicanalítica como um espaço imune às novidades e aos tropeços. Analista e analisando são convocados à dinâmica transferencial, esta desprovida de quaisquer certezas: seja no que se refere à determinação dos sintomas ou à expectativa de remissão dos mesmos.

A própria concepção psicanalítica de trauma reafirma este aspecto incerto da clínica, na medida em que a experiência traumática remete invariavelmente para a subjetividade em questão. Ora, Freud aborda a temática do trauma sob diferentes ângulos ao longo de sua obra. No entanto, este sempre aparece estreitamente vinculado ao sujeito e à sua capacidade de resposta. Tal visada se mantém, seja no início das formulações freudianas, nas quais o trauma figura com um caráter sexual e como desencadeador dos sintomas histéricos (Freud, [1893-1895] 1969) ou, com as considerações acerca da pulsão de morte, aparecendo em decorrência de um intenso afluxo de excitações capazes de romper as medidas defensivas (Freud, [1920] 1969).

Dessa maneira, os destinos de uma dada experiência são singulares, não importando aprioristicamente e de maneira absoluta a natureza desta ou até mesmo a idade do sujeito para lhe conferir o caráter traumático. Daí decorre também a possibilidade de contar a história do trauma de maneira própria e se reinventar a partir de uma vivência tão avassaladora. É o que nos sugere o testemunho de Esther Mujawayo, sobrevivente do genocídio ocorrido em 1994, em Ruanda, ao afirmar que:

esses psicólogos [...] não queriam ouvir nosso traumatismo senão sob a forma que eles compreendiam [...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humanitários são pessoas apressadas e, como todas as pessoas apressadas, frequentemente julgam antes de escutar: eles querem soluções rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel, mas que não podem funcionar com humanos, ainda menos com humanos que saem de um genocídio (Coquio, 2004, citado por Seligmann-Silva, 2008: 76).

O relato da sobrevivente alerta para as armadilhas de uma clínica fechada para a novidade do encontro entre analista e analisando; em última análise, de uma clínica que não prima pela subjetividade em questão. Subjetividade também em jogo na formação dos sintomas, quer estes sejam decorrentes de uma vivência traumática ou não, de modo que o sujeito - e só este - é responsável pela formação de seus sintomas. Cabe a nós psicanalistas "restituir ao psíquico todo o seu poder de agir" (Fédida, 1988: 44), seguindo os descaminhos que este encontra para a ação, nem que seja através dos sintomas ou da crença depositada nos psicofármacos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

1 A terminologia médica opta pelo uso do termo indivíduo. Utilizar-se-á o termo sujeito, uma vez que este será tomado ao longo de todo o trabalho a partir da perspectiva psicanalítica.

 

 

Recebido em julho de 2009
Aceito para publicação em dezembro de 2010

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