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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012
SEÇÃO TEMÁTICA
Língua materna: traumatismo e transmissão
Mother language: trauma and transmission
Angélique ChristakiI; Tradução de Thyago do Valle RosaII
IPsicanalista, Psicóloga em CMPP-BAPU. Professora e pesquisadora na Universidade Paris 7 (CRPMS)
IIDoutorando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Especialista em Psicopatologia Clínica; Mestre e Graduado em Psicologia pela PUC Goiás
RESUMO
A língua materna é, ao mesmo tempo, um encontro constitutivo do sujeito e um lugar de transmissão. Nos casos em que a língua é esquecida, perdida, ou mesmo em que é vivida como um "não lugar" - a partir de situações de extrema violência -, que lugar restaria à transmissão e qual destino para o trauma? Quais são os destinos da fala nas situações em que a língua materna veicula a lei do silêncio como traço de uma violência inesperada e indizível? Mais exatamente, este artigo é uma reflexão sobre o trabalho clínico com uma criança cambojana cujos pais cresceram dentro de um campo de concentração dos Khmers Vermelhos.
Palavras-chave: língua materna; silêncio; violência; transmissão; transferência.
ABSTRACT
The maternal tongue is, at the same time, a constituent encounter of the subject and a place of transmission. In the cases in which this tongue is forgotten, lost or, yet, where it is lived as a "no place" - due to situations of extreme violence -, which place would remain for transmission and which destiny for the trauma? Which are the destinies of speech, in situations where the maternal tongue transmits the law of silence as the trace of an unexpected and unspeakable violence? More exactly, this article is a reflection on the specificity of the clinical work with a Cambodian child, whose parents grew inside a concentration camp of Red Khmers.
Keywords: maternal tongue; silence; violence; transmission; transfer.
INTRODUÇÃO
A fim de conduzir algumas reflexões relativas à temática da língua materna e do traumatismo da transmissão irei, primeiramente, me referir à questão da tradução e, mais precisamente, abordarei a tradução a partir do intraduzível (Altounian, 2005), isto é, a partir da resistência à tradução.
Tentarei destacar, de um lado, o intraduzível como resto da tradução quando se trata de passar de uma língua à outra e, de outro lado, o intraduzível tal qual existe no próprio coração de toda língua, ou seja, o intraduzível como parte de gozo constitutivo e singular no coração da língua materna. Nesse sentido, abordarei o intraduzível como contexto clínico, na análise de uma criança que chamarei Thomas.
NOTA CLÍNICA
Thomas é um garotinho de origem cambojana que conheci há quatro anos. Naquele momento ele tinha três anos e foi levado até mim depois de um diagnóstico de autismo. De minha parte, prefiro dizer que era um garoto silencioso.
A mãe de Thomas me contou que ela e seu marido, o pai de Thomas, viveram a maior parte de suas infâncias dentro de um campo de concentração para crianças dos Khmers Vermelhos no Camboja.
A mãe de Thomas, que fala com dificuldade o francês, explicou que as crianças durante o regime Khmer representavam um perigo para os adultos de sua família, já que eram frequentemente interrogadas de modo disfarçado por pessoas do regime: "Há pessoas que sabem ler e escrever na família, médicos e professores?". Ela explica: "quando as crianças falavam, toda a família podia ser pega".
A figura mais respeitável na família de Thomas, segundo a mãe, era um tio que tinha alcançado uma astúcia incomparável durante o regime Khmer: ele se fez passar por um surdo-mudo e durante anos não pronunciou uma palavra. Toda a família sobreviveu, disse a mãe de Thomas, enquanto, ao mesmo tempo, Thomas pontuou silenciosamente essa fala, mostrando sobre o globo terrestre a Austrália, lugar em que atualmente prospera a família de seu tio-avô.
Quando recebi Thomas pela primeira vez, era difícil dizer que ele não falava de fato; no entanto ele pouco falava, à exceção de algumas palavras que davam a entender que ele se encontrava na fala.
Thomas fica silencioso e, mais particularmente, eu diria que Thomas submete a língua a uma "silenciação". Porém, embora essa palavra me pareça a mais apropriada para traduzir a relação que Thomas mantém com a língua, fiquei surpreendida ao descobrir que ela não fazia parte da língua francesa. Na verdade, trata-se da tradução literal de uma palavra de minha língua materna que pode querer dizer em francês "deixar alguma coisa sob silêncio", mas essa palavra reenvia literalmente, dentro de minha língua materna, às reticências, isto é, ao sinal gráfico de pontuação constituído por três pontos.
Ora, os três pontos em um escrito representam o buraco de onde emana a voz do narrador; é também o lugar dentro do texto que acolhe o não dito, o lugar que evoca em silêncio, lugar que sugere silenciosamente, mais do que narra. Permite, assim, à representação tomar corpo e se carregar de afeto. Aqui está o que me evoca o silêncio de Thomas1.
Nesse sentido o silêncio de Thomas se distingue e se espelha naquele de seu tio-avô, tanto mais que ele tem lugar no coração de um laço de confiança, laço transferencial que não exige dizer, tampouco se confessar, mas que suporta a legitimidade de um não dito.
Assim, o que fica em silêncio, no caso de Thomas, distingue-se da lei do silêncio que golpeia a língua de origem, língua que tem como interlocutor a língua da violência, a língua do interrogatório, dos campos, das torturas e não a língua como lugar íntimo dos mal-entendidos e dos equívocos, isto é, da violência inerente ao encontro com a língua. A questão que me coloco é: como fazer ressoar a língua da violência em violência da língua? Isto é, como criar uma ressonância entre esta violência inaudita e um traumatismo que teria ocorrido? No fundo, eu me perguntei como as violências da história, aquelas que concernem a um povo, um país, uma língua, como elas poderiam, para além de toda constituição de testemunho, contribuir para dar memória ao trauma singular e gerador do subjetivo.
ATAR A LÍNGUA AO CORPO
Mas, então, o que isso pode querer dizer, dar memória ao traumatismo? Proponho que isso possa querer dizer ligar a língua ao corpo. Assim, é em torno deste desafio clínico na análise de Thomas, em torno dessa nuvem, que vou tentar trazer alguns elementos. Se Thomas não fala ou pouco fala, ele escreve, e a escrita é uma atividade particularmente lúdica. Ele exprime, além disso, um interesse todo especial pela escrita, tanto quanto um vivo prazer em escrever e me fazer escrever.
Numa sessão em que Thomas ficou silencioso, em que nenhuma palavra ou atividade veio animar o tempo da sessão, tive a ideia de pegar um pedaço de massa de modelar e de escrever modelando algumas letras. A primeira palavra que escrevi foi seu nome, depois seu sobrenome e, em seguida, meu nome e sobrenome. Parei então. Ele me fez sinal para continuar, mas respondi que gostaria de continuar com a condição de que fosse ele que enunciasse a sequência.
Depois de um tempo de tergiversação e de negociação, ele pronunciou uma palavra a fim de que eu a escrevesse, dando-me um pequeno pedaço de massa para eu modelar a primeira letra. Não tendo claramente a palavra, já que seu sotaque cambojano dificultava minha compreensão, eu lhe pedi para repetir. Ele repetiu mas isso não me esclareceu em nada. Finalmente, me lancei através de uma escrita incerta e, já que eu não tinha identificado a palavra, comecei a transcrever essa palavra incompreensível letra por letra, perguntando-me sobre o que essa palavra poderia querer dizer e a qual língua poderia pertencer.
Quando Thomas viu a letra K, primeira letra que eu vinha tinha colocado sobre a escrivaninha, a cólera se apoderou dele, e ele gritou: "Não, um C". Com efeito, a primeira letra desta palavra poderia ser um K ou um C. Só depois me dei conta de que a questão não se colocava para mim, já que a letra C não fazia parte do alfabeto de minha própria língua de origem, contrariamente à letra K. Assim, minha escolha parecia, naquele momento, se apoiar sobre o alfabeto de uma língua que não era nem aquela da origem de Thomas, nem aquela que falávamos na sessão.
Retifiquei a letra K e continuei esta escrita sem bem saber onde chegaria. Em seguida, eu tinha entendido alguma coisa que poderia ser o ditongo "ou". Ora, desde que escrevi a primeira letra "o", lágrimas começaram a cair dos olhos de Thomas, e muito rápido a tristeza se transformou de novo em cólera. Ele agarrou a letra "o" e a transformou em "u", abrindo suas bordas. Eu acabava de me dar conta de que não tinha ainda entendido e de que continuava apoiada sobre os fonemas de minha língua materna para chegar ao fim desta escrita. Mas o "u" como fonema também não existe na minha língua materna: o "o" e o "ou" existem, mas o "u" como fonema intermediário não existe.
Era a primeira vez que eu via Thomas encolerizado, uma cólera que se transformou em uma expressão de ódio; ele se precipitou sobre mim e me beliscou, com o rosto crispado de fúria.
Minha surpresa era sem precedente, já que eu não esperava isto. O que foi que causou afetos tão dolorosos e tão fortes em Thomas, ele que é uma criança de uma doçura extrema, calmo e que, por temperamento ou pela cultura, foi sempre muito moderado na expressão de seus afetos? O que é que o colocou nesse estado? E por que as letras o faziam sofrer tanto?
O QUE SE PASSOU?
"A introdução da escrita é uma sorte de desmaternalização da língua", disse Lacan (1966: 252). Ele fala de desmaternalização da língua materna na escola como um processo pelo qual se aprende a ler e a escrever. Para além das ressonâncias que Lacan dá ao que ele diz, saber escrever e ler durante o regime Khmer não é somente um assunto de educação ou de alfabetização, é uma questão de vida e morte que não comentarei aqui.
Suponho que uma desmaternalização da língua se opera no andar das sessões, sendo que eu não posso entender intimamente sua fala cambojana, que atravessa em filigranas o francês que nós falamos. Sem poder entender intimamente o sopro cambojano, ao não poder entender o sopro da língua, que dizer, ao não entender conforme ao gozo de sua língua materna, opera-se uma desmaternalização da língua, uma sorte de des-gozo materno. No curso deste des-gozo alguma coisa está em vias de se desconstruir, de se perder, e suponho que isso seja extremamente doloroso para Thomas.
Mais particularmente, este des-gozo se opera dentro desse caminho que vai do dito ao lido, passando pelo ouvir dizer e o escrever; durante essa caminhada se opera uma sequência literal, cuja colocação em ato faz ressoar um mal-entendido. Um mal-entendido que, Thomas percebe, realiza-se nesse caminho da boca à orelha. Um mal-entendido que o deixa louco de raiva e cólera, cuja percepção o deixa violento, uma violência que sai de seu encapsulamento e se torna endereçada.
Destacando as bordas da letra, pontua-se que minha escuta desmaternalizante significa para ele um mal-entendido. Ele pontua esse mal-entendido a partir do intraduzível das letras e a partir da passagem das letras e dos fonemas de uma língua à outra2.
Assim, mesmo se a letra caminha da boca de Thomas até minha orelha, passando pela minha mão, atingindo seu olhar e tomando corpo na sua orelha como um mal-entendido de minha parte, uma separação está em vias de se realizar.
Ao abrir a letra, aparece para ele e para mim toda a questão de "lalangue" e do mal-entendido que a atravessa. O mal-entendido fundamental de "lalangue", mas, também, o mal-entendido como alguma coisa de acidental, um ressoando dentro do outro. Assim, a violência deste mal-entendido ressoa como violência da língua, mas, ao mesmo tempo, esta violência inerente à língua se distingue da língua da violência, como violência encravada na língua de origem.
Se a língua da violência como língua de origem aprisiona Thomas dentro de uma violência silenciosa, foi preciso passar por uma terceira língua, outro lugar de nuvens e mal-entendidos, de equívocos vividos, a fim de que, dentro de sua língua de origem, nessa língua petrificada pela violência, a "lalangue" (Lacan, 1975) possa ressoar, mesmo que por um instante, como violência de um mal-entendido.
Essa ressonância é também um instante de separação, à medida que uma perda está em curso de se completar dolorosamente no caminho pulsional da boca à orelha. Entre o que ele diz e o que eu escuto, entre o que eu escrevo e o que ele lê, ele pontua, com raiva e cólera, com tristeza e decepção, com agressividade, com choros e lágrimas, que nós não falamos a mesma língua, que a língua materna que constitui o encontro mais fundamental para o ser falante nos separa, e o afeta. A violência da constatação não é sem consequências, já que ele se precipita para me beliscar, me agredir. Na sessão seguinte e durante várias sessões em diante, desde que ele chega ao limiar da porta de entrada, e antes que chegue à minha escrivaninha, sua primeira preocupação é verificar que o lugar exato em que ele me beliscou continua no mesmo lugar. Ele verifica isso com a mão esquerda, enquanto que, simultaneamente, com a mão direita, verifica que seu sexo continua bem preso. Depois de um tempo de verificação rápida, aliviado, ele começa a sessão.
Esse breve extrato clínico não resume a complexidade do trabalho clínico, nem seus momentos de impasse. Mas parece-me importante notar que, se o caminho do des-gozo envolve uma perda como uma aposta, essa aposta não está ganha de antemão, mas ela abre para a possibilidade da introdução do prazer, que, como um espaço transicional, como um espaço de jogo de línguas, poderia sustentar o demasiado pleno gozo da língua materna.
O caminho do des-gozo, da desmaternalização, é pontuado por um mal-entendido que metaboliza o silêncio em afetos, mas esses afetos são o efeito de uma tradução, isto é, eles são o efeito da construção de um vínculo entre a língua e o corpo que marca dolorosamente o sujeito. Esse "dolorosamente" é já o sinal de uma perda que está em curso de se realizar e que não traduz a intraduzível relação com o corpo da mãe, a intraduzível relação com a letra, no próprio centro da língua materna, mas que está em vias de simbolizar a perda de um gozo que poderia abrir em direção ao que pode fazer vínculo. E, se traduzir é construir um elo entre a língua e o corpo, essa tradução se apoia sobre um resto, isto é, sobre aquilo que resiste a toda tradução, sobre o que não se traduz, mas que se torna o motivo de uma transmissão.
Para concluir, eu diria que, nesse breve exemplo clínico, as letras fazem passar de uma língua à outra o que, entretanto, não se traduz. Essa passagem é também uma transmissão, uma transmissão que concerne ao trauma, não o trauma transgeracional, mas o trauma como traço e como tempo, que darão eventualmente sua chance ao a posteriori. Essa transmissão se delineia a partir da marca silenciosa sobre a matéria, marca que desvela o mal-entendido como traço do sexual, fazendo, assim, ressoar a língua da violência, mesmo por um instante, como violência inerente à língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Altounian, J. (2005). L'intraduisible: Deuil, mémoire, transmission. Paris: Dunod. [ Links ]
Gomez Mango, E. (2009). Un muet dans la langue. Paris: Gallimard. [ Links ]
Jacobson, R. (1976). Six leçons sur le son et le sens. Paris: Minuit. [ Links ]
Lacan, J. (1966). Séminaire livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (1975). La troisième, intervention au congrès de Romme 1974. Lettres de l'école freudienne, 16. [ Links ]
NOTAS
1 Desta escuta para além das palavras Edmundo Gomez Mango (2009: 59) escreve que: "O analista escuta obliquamente, através e transversalmente, o curso das palavras e dos pensamentos fragmentados, interrompidos, que se entrecruzam dentro da densidade da língua. Ele é sensível à cor, à sombra e à luz das palavras, que exprimem o afeto dentro da entonação da voz".
2 A diferença da matéria fônica das letras se deixa entender como uma impossibilidade de fazer coincidir, de uma língua à outra, a multidão numerosa das nuances fônicas (Jacobson, 1976).
Recebido em 25 de junho de 2011
Aceito para publicação em 18 de fevereiro de 2012