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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

O corpo, a subjetividade e a psicossomática

 

Body, subjectivity and psychosomatics

 

 

Lazslo Antonio Ávila

Professor adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto; Livre Docente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto; Membro da Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP); Membro do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME)

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir algumas das significações múltiplas e contraditórias do corpo humano. Inicialmente, apresenta-se a polissemia do corpo através de suas manifestações em diversificadas áreas do conhecimento e/ou meios culturais. Então, algumas situações clínicas são analisadas desde a perspectiva da psicossomática de orientação psicanalítica. O corpo vivo fornece o significado biográfico que é necessário para uma melhor compreensão das doenças enquanto experiências pessoais passíveis de intervenção psicoterapêutica. Finalmente, a complexidade das relações entre o corpo e a subjetividade é demarcada.

Palavras-chave: corpo; psicossomática; subjetividade; cultura; psicanálise.


ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss some of the multiple and contradictory meanings of the human body. First, the polysemy of the body is presented through its manifestation in several fields of knowledge and / or cultural means. Then, some clinical situations are analyzed from a psychosomatic psychoanalytically-oriented perspective. The living body provides the biographical meaning which is necessary to better understand diseases as personal experiences, able to be submitted to psychotherapeutic interventions. Finally, the complexity of the relationship between body and subjectivity is acknowledged.

Keywords: body; psychosomatics; subjectivity; culture; psychoanalysis.


 

 

Embora a Psicologia seja tradicionalmente encarada como a ciência da mente, o corpo do indivíduo é alvo primordial das pesquisas psicológicas, considerado o enraizamento de qualquer processo psíquico na materialidade corporal. Contudo, esse mesmo objeto somático é certamente o objeto central para inúmeras outras disciplinas. O corpo se apresenta como um campo de exploração e indagação para todas as chamadas ciências humanas, bem como para diversas áreas das ciências naturais. É também objeto de um grande número de atividades culturais não vinculadas à ciência. Trata-se, portanto, de um objeto múltiplo, complexo, aberto a uma diversidade de perspectivas e sujeito a uma ampla gama de representações. O corpo é, poderíamos dizer, um objeto transdisciplinar por excelência, local de entrecruzamento obrigatório para múltiplas disciplinas, um objeto multifacetado e marcado pela complexidade.

A história do corpo, desde a Renascença até os nossos dias, foi apresentada recentemente em três alentados volumes por renomados pesquisadores, franceses na sua maioria (Corbin, Courtine & Vigarello, 2008). Neles se pode acompanhar a complexa evolução, ao longo do que se denomina de período moderno, das conceituações sobre o corpo, tornando-o objeto de diferentes abordagens, visando "o homem vivo, o homem em carne e osso". Também na França, o filósofo Michel Foucault (1977, 1984) empreendeu uma laboriosa análise dos usos do corpo enquanto palco e cenário dos avatares da sexualidade.

A questão do corpo comparece de inúmeras formas na contemporaneidade: o corpo é interrogado, em medicina, pela fisiologia, pela anatomia, pela genética e outras diversas especialidades médicas. Mas o corpo também é de enorme interesse para a antropologia e para a etnologia, na medida em que o corpo, seus ritmos e interações compõem os primeiros fatos culturais. O corpo tem uma dimensão social traduzida em sua materialidade econômica e nas instâncias sociais em que o corpo é regulado e instituído. É legislado pelo Direito e apreendido diferentemente em suas distintas áreas. É lido pela semiótica, pela linguística, pelas teorias da comunicação. É objeto da arte, das múltiplas artes, desde a literatura, passando pela pintura, escultura, até o design, com a necessária inscrição em teatro, televisão e cinema. Enfim, o corpo é matéria-prima para inúmeras dimensões de experiências e de representações, tanto por parte das ciências como das práticas culturais.

Neste artigo vamos explorar um alvo bem definido: o corpo enquanto lócus do sofrimento na forma das doenças psicossomáticas, buscando entender como a experiência vivencial da doença, analisada enquanto fato biográfico, pode nos conduzir a modelos de compreensão do corpo enquanto "corpo psicológico", ou "corpo para a mente" (Ávila, 2007, 2010), bem como auxiliar na estruturação de uma forma particular de psicoterapia. Antes, porém, vamos prosseguir a exploração da polissemia do corpo em alguns de seus campos de manifestação.

Em primeiro lugar, existe o corpo físico, o corpo enquanto organismo, tal como apreendido pelas ciências da biologia e suas subáreas da biofísica e bioquímica e tal como manipulado pelas práticas da medicina (corpo 1); além deste, existe o corpo vivido, o corpo experienciado, corpo pessoal de cada indivíduo (corpo 2); existe também o corpo imaginarizado, representado pela arte, traduzido nas artes plásticas, no cinema, na propaganda (corpo 3); existe ainda o corpo real do outro, pensado, tocado, fantasiado por cada sujeito, mas alheio a ele (corpo 4); existe o corpo concebido pela psicanálise, corpo trabalhado pelas pulsões, território do Id (corpo 5); mas também existe o corpo trabalhado pelas práticas diversificadas da fisioterapia, da massoterapia, da ioga, da acupuntura, da bioenergética, da educação física, do esporte, etc (corpo 6); de forma própria existe o corpo vivenciado e assistido da dança (corpo 7); em uma esfera distinta existe o corpo trabalhado pela religião, pela religiosidade e pela mística (corpo 8) e, possivelmente, existem corpos ainda desconhecidos e misteriosos (corpos 9, 10, 11...).

O corpo 1 é o da ciência biológica e da prática médica. É um corpo objeto. Corpo conhecido a partir da patologia, corpo sede de doenças. Corpo conhecido antes na sala de anatomia e depois no consultório. Corpo que é conjunto de sinais e de sintomas. Corpo que é base para os exames, fonte de informação diagnóstica, alvo do ataque dos agressores externos (vírus, bactérias, envenenamentos) e dos agressores internos (maus funcionamentos, deterioração, envelhecimento). Corpo que morre. Corpo que deve ser socorrido antes que morra (o que acontece inevitavelmente). Esse corpo já mereceu o comentário sarcástico do filósofo iluminista Voltaire (1694-1778): "Os médicos inoculam drogas que não conhecem em corpos que conhecem ainda menos" (citado por Olival, 1998: 137). Mas os médicos continuam explorando esse corpo e o conhecem cada vez mais, pelo menos enquanto máquina complexa. Conhecem também cada vez mais os remédios e as cirurgias com os quais o modificam, o alteram, o conformam, o salvam e às vezes o liquidam. Essa mesma medicina que já salvou milhões de seres humanos que morriam em grandes epidemias e ainda hoje se interroga sobre o que é e como tratar a mera gripe. Esse corpo 1, corpo que nos aflige quando adoecemos, às vezes queremos que seja simplesmente bem tratado e aliviado de seus padecimentos. Às vezes vamos ao médico apenas como pacientes, no sentido passivo da palavra (Lebrun, 1987), e só queremos parar de sofrer no corpo. Nessas horas, suspendemos nossa relação pessoal com nosso corpo e o entregamos de boa vontade para que o médico faça dele o que for melhor, o que nos cure, o que nos livre do que nos atormenta. Mas, como alerta Jean Clavreul (1983: 43-44), "a doença, adquirindo um estatuto científico, separa-se cada vez mais do que o interessado sente dela". A medicina, com seu enorme desenvolvimento e aparato técnico, se apropriou do corpo do doente e desse modo provou que "podia prescindir de toda consciência pessoal de um estado mórbido, e mesmo de toda demanda. Esta, quando existe, não tem, de qualquer maneira, lugar algum no discurso médico, para o qual o doente não é senão um demandante, um pedinte" (Clavreul, 1983: 44-45). O corpo 1 já não é próprio. É levado pelo sujeito ao médico, e no médico ele é reinaugurado sob um novo olhar: passa a ser o corpo doente, corpo entregue ao cuidado alheio, corpo para ser tratado. Mas, como todo médico sabe à exaustão, o sujeito humano muito raramente permanece nessa condição de objeto. Logo se rebela e essa rebeldia pode tomar a forma da recusa do tratamento, da manipulação da relação médico-paciente, do não acompanhamento das dietas, da cronificação dos sintomas e muitas outras formas de dizer não à reificação. O sujeito se recusa a desistir de seu próprio corpo.

O corpo 2 é este corpo que o sujeito tanto preza. É como se fosse seu próprio Eu. O corpo próprio tem enorme valor narcísico: não queremos desistir e nos desfazer da menor parte dele; por exemplo, recuamos com horror diante da ideia da mínima amputação de uma parte de nossos corpos. Esse corpo-pessoa é extremamente amplo: consideramos parte de nosso corpo coisas que vão além da nossa pele - é o próprio eu, com suas extensões, as coisas pessoais e os objetos próximos, os familiares, o nome próprio. Qualquer agressão àquilo que considero muito meu me agride em meu eu, me agride em minha corporalidade. Uma ofensa moral dói no estomago, no fígado. Uma ignomínia pode matar com um infarto ou com um acidente vascular cerebral. Uma alegria muito grande também pode matar. Meu corpo é tudo aquilo que eu acho que me faz, me constitui. Meu Eu é tudo aquilo que eu ponho dentro das minhas fronteiras, e, primeiro entre todos, está o meu corpo. Mas esse corpo é muito além da biologia, ele é tudo aquilo em que o que eu sou se expressa. Se o médico que me atende não o personaliza, possivelmente o tratamento não dê certo. E, mesmo se interromper meus sintomas, mas não tiver conseguido uma conexão com minha pessoa que permita integrar a doença com a totalidade dos significados que a mesma ganhou na minha vida, eu posso continuar "doente", sem ter a doença (Ávila, 2002, 2004). Foram estes misteriosos casos que deram origem à psicossomática psicanalítica.

O corpo 3 existe na Cultura, ele é fruto da cultura, das particulares injunções no espaço-tempo de cada formação social concreta, cada sociedade e, dentro desta, de cada um dos seus subgrupos particulares. Falemos muito brevemente dessas dimensões. O corpo da Arte é iconográfico: comparem-se as representações de beleza feminina na arte rupestre (a gorda Vênus de grandes tetas e amplos quadris, símbolo da fertilidade, representada há 40 mil anos), as brancas matronas do Renascimento, as anoréxicas belas da moda dos últimos 30 anos, a beleza clássica na estatuária greco-romana, a beleza da mulher negra e da japonesa, o que é belo para o esquimó ou para o carioca de Ipanema. O belo é continuamente reinventado. O corpo, em todas as suas dimensões, é imaginário e imaginarizado. Ser criança, adolescente, adulto ou velho não é questão de biologia, é fato de significação cultural. O corpo que trabalha (Dejours, 1987; Friedman, 1972) ou o corpo do lazer são distintos, tanto no sentido vivencial quanto no representacional.

O corpo 4 é do outro. Esse corpo-outro nos fascina, nos questiona, nos intriga, nos instiga. Será que o outro, a outra sente o mesmo que eu? O que é a experiência de si mesmo para o outro? Ele é como eu? Quando eu desejo, sou desejado? O que é desejar e ser desejado? O corpo do outro é misterioso, e o outro provoca em meu corpo coisas também misteriosas. Emana do outro um poder. Além da esfera do desejo sexual, há também os mistérios do encanto, da empatia, da antipatia, do nojo, da emulação, da confiança e desconfiança, da ascensão de um sobre o outro, da subordinação, da simetria, da correspondência, ou não. O corpo do outro é fonte e alvo, fonte de desejos, alvo de agressão, por exemplo. É um corpo como o meu, tão conhecido e desconhecido como o meu.

O corpo 5 é um corpo que nasceu das investigações da psicanálise. Freud (1905/1995) o concebeu como anterior ao Eu, como sede das pulsões. Mas Freud hesitava, ora o ancorava no "rochedo do biológico" (Freud, 1938/1995), inacessível e incognoscível, ora o considerava como um corpo recriado pelo narcisismo (Freud, 1914/1995), configurado pelo desejo, desenhado pelas injunções do superego e do ideal do ego. Um corpo que se definia pelas complexas relações entre o Eu, a realidade e um corpo de pulsões (Freud, 1915/1995). Esse corpo foi o primeiro enigma da psicanálise, com a conversão histérica (Freud, 1893/1995). Depois interrogou Freud na forma das neuroses atuais, a estase da libido produzindo sintomas (Freud, 1896/1995). Posteriormente modificou a teoria e a prática da psicanálise quando se introduziu o narcisismo (o Eu e seu corpo são objeto da pulsão amorosa). Ainda depois, a pulsão de morte vem arrebatar todo o modelo e reconfigurar a tópica psíquica (Freud, 1920/1995, 1923/1995). Com a pulsão de morte, Freud tanto reencontra a natureza, portanto o corpo, quanto se propõe a ir mais além. O corpo é amálgama de vida e morte; a psique é tanto corpo quanto símbolo. A técnica da psicanálise pensa o corpo a partir da palavra. Mas o corpo, como tal, pura corporalidade, sempre demanda uma atenção específica, a psicossomática psicanalítica (Alexander, 1950; Groddeck, 1984, 1992).

O corpo 6 também é múltiplo. A fisioterapia ocidental vê o mesmo corpo que o médico e o biólogo. Mas esse é um corpo que deve ser reabilitado. É principalmente um corpo vivo, embora doente. Está em mau funcionamento. Deve ser corrigido. É um corpo para a técnica manipulatória. Deve retomar sua funcionalidade. É anatomia e fisiologia, é reabilitação. O corpo do paciente é o mesmo que está nos manuais, os ajustes são circunstanciais. Completamente distinto é o corpo da acupuntura, do Do-in, das técnicas chinesas, japonesas, coreanas, indianas ou tibetanas que estudam há milhares de anos um corpo definido a partir de energias, de canais de circulação, de princípios elementais (não elementares). Um corpo de pontos e fluxos. Um corpo com outra engenharia. Diferente também era o corpo que Reich (1949) via e aquele corpo visto e trabalhado pelos massoterapeutas; um corpo diferenciado para as técnicas do Reiki, outro corpo para os renovadores das técnicas físicas no Ocidente. Cada visão, cada técnica com um modelo de corpo, uma vivência distinta de terapêutica. Esses corpos não coincidem entre si.

O corpo 7 é o da dança com suas muitas expressões: balé, cirandas populares, folguedos, dança de salão, danças tradicionais e contemporâneas, dança do Quarup na Amazônia, danças com diferentes sentidos, em diferentes contextos culturais. Um único exemplo extraordinário é o Butoh, dança milenar japonesa. Kazuo Ohno o reviveu, quando estava quase extinto. Apresentou-se em muitos países e deixou seguidores no Brasil. Kazuo Ohno agonizou aos 102 anos com sua morte sendo filmada, porque seu corpo continua tradução de algo a ser transmitido. A dança do Butoh é uma dança da morte e da vida. Morte e vida são parceiras de uma dança cósmica, e assim foram dançadas por ele, por seu filho e outros bailarinos. Recente exposição no SESC o apresentou, mas o extraordinário recurso da fotografia e da filmagem só aumenta a tragicidade de sua mensagem: eterniza o que apenas passa. A vida dura apenas o tempo de um passo.

O corpo 8, corpo religioso e místico, é completamente outro. No catolicismo tradicional tantas vezes foi apenas sinônimo do pecado, corpo atormentado, castigado, punido, purificado e redimido. Corpo de Cristo e da Virgem. Corpo casto e corpo crucificado. Já foi um corpo queimado na fogueira, como santa Joana D'Arc, assim como foi um corpo estigmatizado pela identificação ao Cristo, como em são Francisco. Tantos santos e mártires têm seu corpo exposto e identificado com a fé: o corpo flechado de são Sebastião, os olhos de santa Luzia, são Brás e a garganta e muitos outros. O corpo foi martirizado e redimido. Milhares de mulheres, algumas vezes histéricas (Mitchell, 2000; Trillat, 1991), outras vezes sofredoras da coreia ou Mal de Huntington (Porter, 1995) e algumas vezes simplesmente por serem mulheres sexualmente livres, foram condenadas à fogueira durante a Inquisição. O corpo já foi tão marcado pelo pecado que muitas das práticas do catolicismo consistiram em tentativas de libertá-lo. Outra libertação buscaram os místicos. O corpo em santa Teresa de Ávila e em são João da Cruz é um corpo-caminho, um corpo que se espiritualiza. Também as tradições orientais parecem se dar melhor com o corpo. O corpo dos budistas reencarna, mas busca se livrar do aprisionamento e do sofrimento da carne. O corpo do iogue parece capaz de superar a própria dor. O corpo do samurai é como uma flor que já desabrochou, está pronto para morrer. Por isso não tem medo. O corpo 8 tem muitos diferentes destinos, mesmo quando morre.

Os corpos seguintes, 9, 10, 11 são abertos: alguns para serem descobertos, outros, talvez, permanecerão desconhecidos. São organizações da experiência humana ainda não pensáveis com os paradigmas atuais.

Eu considero que nós estamos no princípio dos estudos sobre o corpo, que, aliás, foram bastante negligenciados, sobretudo pela filosofia [...]. Assim, o corpo deve ser caracterizado como um operador determinado. Não é qualquer operador. Ele é o operador do quê? Operador de linguagem. Há uma razão, muitos assinalam, entre a escrita e o corpo, entre a linguagem e o corpo. Mas tendemos a ficar sempre no terreno da metáfora, ao pensar, por exemplo, que o corpo é uma inscrição como um papel ou que o corpo escreve no espaço, tal qual ocorre na dança [...] mas o que significa isso? Na verdade, é todo o processo de constituição da nossa civilização que deve ser interrogado (José Gil, citado por Sant'Anna, 1997: 255).

A questão da interação mente-corpo remete às origens da filosofia (Chauí, 2002). O que se denomina hoje como Psicossomática deve ser encarado desde duas perspectivas distintas. Por um lado, foi psicossomática toda a abordagem médica prévia ao nascimento da medicina científica, antes da instauração do método cartesiano (Porter, 1997). Isso porque eram indissociáveis os processos mentais e os corporais, antes das distinções que vieram dar origem às "ciências da natureza", separadas das "ciências humanas", como a psicologia, a sociologia, a história, a antropologia, etc. Por outro lado, estritamente falando, a Psicossomática surge como extensão médica através do psiquiatra Johann Heinroth, em 1828 (Mello Filho, 1992; Shorter, 1995). Com Georg Groddeck (1992), a partir de 1917, a psicanálise passa a ser aplicada aos processos orgânicos, principalmente ao adoecer e suas significações. Ao longo desses quase 100 anos, a psicossomática psicanalítica vem desenvolvendo um amplo conjunto de evidências, demonstrando como os processos inconscientes incidem sobre as funções corporais, produzindo manifestações no organismo, agravando doenças e traduzindo os conflitos psíquicos em sintomas somatizados. Importantes autores psicanalíticos, como S. Ferenczi (1990), O. Fenichel (1981), M. Balint (1975), D. W. Winnicott (2000), J. Lacan (1988), F. Dolto (1988), J. Laplanche (1981), J. McDougall (1991), P. Aulagnier (1985), J. D. Nasio (1993), entre outros, se dedicaram à investigação das conexões entre a mente e o corpo e produziram férteis contribuições tanto para a teoria psicanalítica quanto para a prática psicoterapêutica.

É a partir da psicossomática psicanalítica, em especial aquela sustentada nas contribuições de Freud, Groddeck, Bion e McDougall, que venho desenvolvendo uma abordagem para os fenômenos psicossomáticos que busca levar em consideração a natureza complexa dessas manifestações. O corpo que adoece é simultaneamente tanto o corpo do indivíduo, portanto experiencial, eminentemente subjetivo, quanto o corpo que será tratado como objeto positivo pelas práticas da medicina, farmacologia, fisioterapia, etc. Esse mesmo corpo está submetido a representações culturais, a dimensões antropológicas e sociológicas, a pressões derivadas do trabalho que esse indivíduo realiza, do seu estilo de vida, e a todo um conjunto de fatores de ordem extracorporal que, contudo, confluem para esse mesmo corpo. Assim, o que distingue a abordagem aqui proposta é a aceitação e busca de compreensão dessa multiplicidade de aspectos, propiciando que a doença possa permanecer sendo vista enquanto entidade nosológica, campo da ação médica, e, ao mesmo tempo, possa ser abordada psicoterapeuticamente, colocando a mente do indivíduo doente, com todos os seus conteúdos simbólicos mediados pela cultura, também como parte do tratamento:

Proponho que o sintoma psicossomático seja visto como um processo em que uma questão subjetiva segue um caminho adverso: ao invés de conseguir aceder à mente, como processo mental, ou seja, representação, esta situação se traduz corporalmente, ou seja, se apresenta como expressão do corpo. O processo somático ocupa o lugar do processo psíquico: no sintoma psicossomático uma questão subjetiva se apresenta, ao invés de se representar (Ávila, 2002: 37).

Através da psicoterapia, busca-se a representação psíquica daqueles processos subjetivos, dados biográficos e experiências existenciais que não encontraram outra maneira de emergir para o sujeito que não seja a de se apresentar na sua própria carne, no corpo que padece. Daí decorre uma nova proposição:

Proponho que se tome o sintoma psicossomático como um capítulo da história do sujeito que não pôde ser escrito psiquicamente e que tomou a forma de um hieróglifo inscrito no corpo. Visto desta forma, sua dissolução equivale a transcrevê-lo: dar-lhe linguagem verbal e representacional na esfera psíquica (Ávila, 2002: 38-39).

A partir dessa transcrição, há uma transformação sintomática: o corpo cessa de apresentar aquela perturbação, e a mente pode se encarregar de seus conteúdos, o que passa a ocorrer no contexto do trabalho psicoterapêutico. Passemos, então, a exemplos psicossomáticos que, devidamente analisados, devem nos permitir construir os marcos referenciais dessa abordagem. O primeiro é uma carta que recebi logo após ter feito uma apresentação na qual o assunto discutido era o das doenças psicossomáticas que se manifestam na vida cotidiana. O missivista escreveu:

Sendo eu igual a muitos por aí, gostaria de relatar uma questão que se reflete fisicamente em mim e eu não tenho ideia de como tratar, como segue: aparecem no meu pé umas bolhas, aparecem somente em um pé, de vez em quando, dentro elas têm uma substância pouco mais densa que a água com uma coloração voltada para o sangue e, se essas bolhas se rompem, elas proliferam aparecendo outras na região circunvizinha. Procurado um farmacêutico, ele me disse que poderia ser tratado com medicamento, mas que tem fundo "emocional", porém os medicamentos não surtem efeitos. Conhecidos de outras localidades se deparam com a mesma informação e têm o mesmo problema que eu. Analisando a situação, consigo atribuir essa incidência de dermatite à repugnância de pisar a pé descalço em lugar considerado sujo, como andar pisando no barro dentro de um rio (onde não vejo onde piso) e pelo piso de um quarto de motel (considero este mais sujo que o anterior). Peço-lhe a gentileza de me fornecer uma pista sobre a qual tipo de somatização esta dermatite se refere. Certo da sua atenção e boa vontade, fico no aguardo da sua resposta.

Essa pequena carta extraordinária é uma manifestação espontânea de uma pessoa que percebe vagamente a conexão psicossomática entre seus sintomas físicos e sua vida mental, sem contudo conseguir alcançar um insight sobre a origem desses sintomas. Desde um ponto de vista psicanalítico é transparente a vinculação das questões morais que lhe são conflitivas com sua exteriorização na forma de um sintoma de somatização. Os rios turvos remetem à "lama", que facilmente metaforiza tudo aquilo que é baixo, sujo, condenável. Ao se associarem, imediata, mas inconscientemente, com o quarto de motel ("ainda mais sujo"), denotam o sujeito como realiza ações (físicas, motoras) que são atos (significativos, com conteúdo emocional e consequências morais); essas situações não ganharam uma clara expressão em seu psiquismo, não se materializaram como "questões" da ordem do embate entre impulsos condenáveis e ações realizadas, e esse conflito escamoteado encontrou a via somática para se manifestar.

A construção sintomática, aqui, é muito clara: o pé (físico, parte do corpo) manifesta um sintoma - bolhas com água e sangue que se espalham (um médico dermatologista possivelmente diagnosticasse uma dermatite factícia, causada pelo ato de coçar-se, infectando as áreas vizinhas a partir de um foco inicial de contaminação). Mas esse mesmo pé é representante psíquico de "onde esse sujeito está andando", ou seja, traduz e manifesta "o que ele anda fazendo". Então, o motel, local onde atos ilícitos, "sujos", segundo ele, ocorrem, fica como a localização, para o sujeito, da origem "física" para seu padecimento. O provável conflito psíquico associado a esses atos fica confinado a uma expressão somática, que é ao mesmo tempo crônica (não pode sarar através de medicamento, porque é psiquicamente determinada) e manifesta/escondida, porque, ao ter se tornado "coisa física" (bolhas, dermatite), já não pode ser encarada como matéria psíquica, pensável, elaborável. Observe-se que o farmacêutico e possivelmente o médico caem na cilada da somatização: tratam das bolhas, mas não atinam com o conflito subjacente, mesmo quando consideram sua origem "emocional". O próprio sujeito, embora sujeito de suas ações, é sujeitado por seu sintoma: sofre, mas não sabe do que sofre (Ávila, 1998, 2004). Seus corpos 1, 2 e 5 não coincidem e não se encontram.

Vejamos agora um caso em que o trabalho psicanalítico pôde esclarecer os sintomas físicos, solucionando as queixas do paciente e melhorando consideravelmente a qualidade de sua vida mental; em troca, o sujeito forneceu uma preciosa síntese de como se "constrói" um sintoma psicossomático. O paciente, com 32 anos de idade, buscou ajuda médica devido a tonturas, dores no peito e taquicardia que perturbavam consideravelmente tanto sua vida pessoal quanto profissional. Seus cardiologistas, após minuciosos exames clínicos e laboratoriais, descartaram a origem cardíaca de seus padecimentos e consideraram seus sintomas como derivados de estresse. O paciente adotou essa concepção e atribuía seus sintomas ao "nervosismo". As teorias do estresse desenvolvidas por Hans Seyle (1965) gozam de ampla aceitação popular, e a medicina contemporânea associa inúmeras doenças a essas conexões cientificamente demonstradas entre as reações do sistema nervoso autônomo e os estímulos ambientais, incluindo os originados pelo estilo de vida do paciente (Mandler, 1984).

Esse paciente era um homem de nível educacional médio que não apresentava nenhum particular sinal de neurose. Era muito bem adaptado ao seu trabalho e não tinha conflitos pessoais significativos. Sua vida familiar, segundo ele, era muito boa, tanto em sua relação com a esposa como com seus filhos. Ele não se mostrava consciente de quaisquer situações produtoras de sofrimento emocional. Poderia ser descrito, nos termos de Joyce McDougall (1991), como um "normopata", com uma vida convencional e bom desempenho profissional e social. Assim, quando sofreu de um mal súbito, com intensa dor no peito e tontura, estava certo de estar sofrendo um infarto. Após as consultas médicas, considerava que algo estava "errado" com ele, mas passou a atribuir esses sintomas a seu "nervosismo". Em sua opinião, esse estado não tinha qualquer relação com sua vida psíquica, mas aceitou vir consultar um psicólogo, dado o descarte da patologia orgânica.

Desde o início do trabalho com ele, todo o esforço foi dirigido para buscar conectar sua sintomatologia física com aspectos de sua vida emocional, embora a investigação progredisse lentamente. Até que um dia, após uma indagação mais minuciosa de determinados aspectos de sua vida, ele soltou uma frase aparentemente casual, que muito me chamou a atenção. Ele disse, literalmente: "O 'nervoso' faz a gente pular o sentido". Instei com ele para desenvolver essa ideia e então ele formulou essa frase: "Quando vem o 'nervoso', a gente pula o sentido. É assim: normalmente a gente, vê, sente, pensa e age. Mas quando vem o 'nervoso', a gente vê e age".

Essa pessoa soube captar com incrível precisão o mecanismo através do qual ocorre o eclipse do psíquico. O pensar e o sentir são, por definição, matéria psíquica. Podemos dizer que o ver é da ordem do sensorial, portanto do somático, enquanto o agir é da ordem da conduta, do comportamento, das atitudes. Se o psíquico for excluído, suprimido, reprimido, eclipsado, haverá uma conexão direta entre o nível somático e o nível da expressão no corpo, portanto um sintoma psicossomático.

É interessante que a formulação desse paciente coincide bastante com o modelo de psiquismo que Freud (1900/1995) propôs na "Interpretação dos sonhos". No modelo do "telescópio", apresentado no último capítulo, Freud concebeu o psiquismo como se fosse um aparato dotado de duas aberturas, uma sensorial e a outra motora, com o processo psíquico desenvolvendo-se no interior do aparato. Para Freud, o sonho se processaria como um processo regressivo, vindo da esfera motora para a extremidade sensorial. No caso desse sujeito, as aberturas se comunicariam diretamente, e seus sintomas se derivariam disso. É como se este paciente percebesse, em si mesmo, um curto-circuito que aproximasse o seu plano sensorial do nível motor, ficando o "nervosismo" como consequência dessa junção, e o nível propriamente psíquico do pensar e do sentir se evanesceria, impossibilitado de se representar.

Ao longo de seu processo psicoterapêutico, esse sujeito foi elaborando as conexões entre as diferentes manifestações de sua vida mental e suas expressões psicossomáticas. Seu "coração" passou a ser mais do que um simples órgão, suas sensações físicas, ponto de partida para indagações sobre sua vida afetiva, e assim, aos poucos, sua couraça normopática foi se rompendo. Seus sintomas psicossomáticos declinaram na mesma medida em que ele ganhou melhor acesso a seus pensamentos e sentimentos, tornando-se capaz de elaborá-los. Para seus médicos, ficou apenas a confirmação de sua suspeita de que se tratava de estresse. Mas o que esse caso demonstra é que designar um processo com um nome não significa, nem de longe, solucioná-lo. "Estresse" é um termo de cobertura ampla demais. Por baixo dele podem se ocultar processos psíquicos extremamente elaborados.

O significado fundamental de uma investigação psicossomática é procurar as pontes, tantas vezes perdidas, entre os corpos 1 e 2. A experiência do sujeito com o seu próprio corpo precisa ser explorada com mais profundidade do que apenas examinando o seu corpo enquanto organismo biológico. Ficar doente, estar doente, muito além de seu significado médico (história natural da doença, etiologia, diagnóstico e prognóstico, etc.) é sempre, também, e ao mesmo tempo, "sofrer a doença", ter um fato do maior significado inscrito em sua biografia, vivenciar um processo pleno de significações. O corpo próprio é muito mais do que apenas um instrumento de locomoção e ação no mundo, esse corpo se confunde com o Eu que o vive, na medida em que ambos vão sofrer do mesmo destino desde o nascimento até a morte. A pessoa adoece de corpo e alma; o psiquismo não é uma esfera autônoma, um epifenômeno do corpo: o Eu e o Corpo estão em permanente diálogo entre si e com o mundo - seja na saúde ou na doença.

O corpo é um objeto transdisciplinar por excelência, dado que nenhuma das presentes disciplinas científicas pode esgotar sua compreensão e dado ser o corpo o suporte necessário e inevitável da vida concreta do indivíduo na sociedade e na cultura. Poderíamos concluir parafraseando o famoso dístico: há mais mistério entre a biologia e a psicologia do que sonha a nossa filosofia (e a nossa medicina). O corpo é uma realidade múltipla, profundamente complexa e multidimensional. Precisamos aprender com ele para que possamos melhor nos conhecer.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 05 de agosto de 2011
Aceito para publicação em 04 de maio de 2012