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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO LIVRE

 

O neutro1

 

The neuter

 

 

Manoel Tosta Berlinck

Sociólogo, psicanalista, Ph.D. (Cornell University), Professor da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, autor de Psicopatologia Fundamental (2000) e de Erotomania com German E. Berrios (2009), entre outros livros e numerosos artigos

 

 


RESUMO

Este artigo é parte de um projeto de investigação sobre "O método clínico" financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil. Toma em consideração o neutro como recurso retórico, lugar na linguagem que permite a ocorrência da psicopatologia entendida como linguagem (logos) sobre o pathos psíquico. O neutro seria o lugar na língua a ser ocupado pelo clínico.

Palavras-chave: neutro; pathos psíquico; clínica; Psicopatologia Fundamental.


ABSTRACT

This article is part of a research project on "The Clinical Method" funded by the National Council for the Scientific and Technological Development (CNPq) from the Ministry of Science, Technology and Innovation from Brazil. It takes the neuter into consideration as a rhetoric resource, a place in language that allows the occurrence of Psychopathology as a language (logos) about the psychic pathos. The neuter would be the place in language occupied by the clinician.

Keywords: neuter, psychic pathos, clinics, Fundamental Psychopathology.


 

 

Foi disso que vivi - o neutro era o meu verdadeiro caldo de cultura [...]. O neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova.

Lispector, 1964/1998: 102

 

Uma superficial observação do campo das psicoterapias revela a existência de uma multiplicidade de práticas clínicas carecendo de sólida base metodológica. Essa multiplicidade pode ser fruto da singularidade existente na clínica. Porém tal característica não justifica a ausência de rigor e precisão.

As práticas clínicas são, via de regra, regidas por exigências institucionais como, por exemplo, as que ocorrem na saúde mental, na qual a produção é medida pelo número de "atendimentos" realizados por unidade do SUS, muitas vezes sem a ocorrência de um trabalho de pensamento sobre a prática.

Outras vezes, as psicoterapias são regidas por exigências profissionais como, por exemplo, as que ocorrem na psiquiatria, na qual a produção é medida por "atendimentos" acompanhados de prescrição de medicamentos. Cabe, então, ao psiquiatra aplicar um sistema classificatório com base em informações padronizadas e ministrar medicamentos sem uma observação cuidadosa e prolongada do paciente que envolva a intuição, a percepção figurativa e a representação de palavra.

Diante desse quadro, a clínica, ou seja, o caminho percorrido visando o tratamento, a saúde e a pesquisa e almejando a compreensão do pathos psíquico, é voluntarista, irrefletida, mecânica, carente de uma prolongada e sistemática observação clínica e sem uma representação de palavras justificada.

As características e resultado dessa prática são amplamente desconhecidos, pois, no âmbito da saúde mental, por exemplo, os relatórios encaminhados às agências responsáveis são, muitas vezes, meramente formais e, no âmbito da clínica privada, pobres informações existem, dado que praticamente não há relatos de casos que revelem vivências clínicas.

Além disso, nos últimos 60 anos, desde a descoberta dos primeiros psicotrópicos, a literatura médica não registra caso de cura por ingestão dessas moléculas, ou seja, de remissão prolongada de sintomas sem ingestão de medicamentos. São numerosos os casos de estabilização, de inibição de sintomas, o que não é pouca coisa. Porém não há pesquisas que revelem casos de remissão prolongada de sintomas provocada por consumo de drogas psicotrópicas. Ao contrário, suspeita-se que o consumo prolongado dessas drogas leva à dependência e à intoxicação. Quando pacientes realizam programas de desintoxicação, suspeita-se que, na grande maioria dos casos, os sintomas inibidos reaparecem como antes. No entanto, a esse respeito também não há pesquisas.

Esse quadro miserável, desde o ponto de vista da cura, ou seja, da remissão de sintomas sem necessidade de permanente ingestão de medicamentos, precisa ser revelado e, se isso se confirmar, está mais do que na hora de se buscar outros tipos de tratamentos.

Este trabalho faz parte de projeto de pesquisa sobre o método clínico e examina um determinado momento da clínica psicopatológica fundamental, quando o paciente se apresenta pela primeira vez ao clínico e este não lança mão, imediatamente, de um protocolo diagnóstico pragmático, como ocorre frequentemente na atualidade, principalmente na psiquiatria.

A clínica psicopatológica fundamental é aquela que ocorre aquém (ou além) da descoberta dos psicotrópicos e dos sistemas classificatórios pragmáticos como o CID e o DSM. Neste âmbito, em que as características de cada manifestação sintomática estão classificadas e caracterizadas, não há espaço e tempo para a fala psicopatológica do paciente. Não há, pois, lugar para a ocorrência da psicopatologia - discurso (logos) sobre o pathos psíquico.

A clínica psicopatológica fundamental, por levar em consideração a subjetividade, muitas vezes é confundida com a psicanálise. Entretanto, ela pretende ir além (ou aquém) da indispensável contribuição freudiana, pois reconhece que não há um único saber capaz de dar conta do pathos psíquico.

Nessa atividade, desde a Grécia antiga até a atualidade, o paciente se apresenta ao clínico como eminentemente enigmático, surpreendente e perigoso, ocupando sempre um lugar na linguagem (logos).

Há, pois, no paciente, um agir e um padecer. Como observa Lebrun (2009), esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma potência bem distinta.

Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual a ação é a atualização; o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma. Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa de sua modificação em outra coisa que não ele mesmo. A potência que caracteriza o paciente não é um poder-operar, mas um poder-tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma forma nova. A potência passiva está então em receber a forma. Em segundo lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido - ao passo que o agente, na medida em que sua atividade própria está em comunicar uma forma, não é essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que ele deve mover-se para agir sobre o paciente, mas não como agente porque ele também é um ser que contém matéria. O paciente como tal é que é, por natureza, um ser mutável, caracterizado pelo movimento (Lebrun, 2009: 12-13).

Ora, na psicopatologia fundamental, o clínico e o paciente mal se distinguem, já que ambos são pacientes e agentes. Aqui, tanto clínico quanto paciente querem dizer lugares mutáveis e evanescentes e não constituem um paradigma. Não se trata, entretanto, de uma análise mútua. Guardando seus lugares, o clínico se deixa afetar pelo paciente e este é afetado pelo clínico. A circulação do afeto (pathos) é que garante a natureza psicopatológica da clínica.

Ocorre, entretanto, que o clínico, graças a um longo e penoso processo de formação, acredita saber o que se passa com o paciente logo em seguida às primeiras palavras por este pronunciadas. Entretanto, mesmo crendo em sua formação, o enigmático, surpreendente e perigoso continua presente e gera inquietação e angústia. O resultado desta situação incômoda frequentemente lança o clínico numa precipitação psicoterapêutica, impedindo uma observação detalhada e cuidadosa do paciente (Berlinck, 2009).

Como evitar, então, que a clínica se constitua em um paradigma em que clínico e paciente se opõem buscando um sentido?

Frequentemente isso é impossível. O clínico ocupa posição institucional que solicita precipitação. Este é o caso, por exemplo, da clínica realizada no serviço público, na qual a produtividade é uma exigência. Ocorre, também, na clínica particular paga por companhias de seguro articuladas à indústria farmacêutica. Rapidez e precisão diagnóstica são requisitos de toda clínica pressionada institucionalmente. Nesses casos, não se trata de ocupar um lugar na língua que possibilite a fala sobre o pathos psíquico.

Na clínica particular, em que o grau de liberdade é supostamente maior, também há exigências imaginárias capazes de promover inquietação e angústia no clínico e uma precipitação diagnóstica. A própria formação do clínico pode ser um desses fatores.

Um bom exemplo dos constrangimentos que ocorrem na clínica psicopatológica é o caso do Dr. Jefferson de Lemos narrado por Margarida de Souza Neves (2010).

Desde maio de 1912 estavam sob os cuidados do Dr. Jefferson os que, diagnosticados como epiléticos, estavam internados no Hospital Nacional de Alienados, instituição que a pena arguta de Lima Barreto (1920/2004) qualificou de Cemitério dos vivos.

O doutor Lemos dirigia dois pavilhões do Hospital, o Pavilhão Griesinger, no qual ficavam as mulheres que haviam recebido o diagnóstico de epilepsia, e o Pavilhão Guislan, "seção de epiléticos homens", na terminologia adotada pelo Hospital.

Segundo Neves (2010), o doutor Lemos era, portanto, o alienista responsável pelos "epiléticos" adultos, e sua tarefa era tão mais difícil quanto mais escassos eram os instrumentos da medicina da sua época para lidar com a epilepsia, conhecida como "o grande mal" quando acompanhada das crises convulsivas que médicos e leigos chamavam de ataques ou acessos.

Considerada então uma doença mental, a epilepsia, dramática em suas manifestações, era nas primeiras décadas do século XX particularmente cercada de preconceitos médicos e sociais. Alguns desses preconceitos eram herdeiros da milenar associação da doença à possessão diabólica. Outros eram veiculados pela ciência médica que, na época, afirmava ser inata e incoercível a tendência ao crime e à violência dos epiléticos. Outros ainda eram fruto do constrangimento dos doentes e de seus familiares, uma vez que o diagnóstico pesava como uma condenação, pois a doença era vista como herança maldita, evidência da degeneração, do vício, das taras e da vida desregrada (Neves, 2010: 2).

Além do cotidiano desgastante nas enfermarias do velho Hospital da Praia Vermelha, o doutor Jefferson de Lemos enfrentava outras dificuldades. Era, além de médico, um positivista ortodoxo e convicto, conhecedor profundo dos escritos de Augusto Comte e seu devoto seguidor.

Sua inabalável fé positivista levava-o a buscar a "harmonia" como ideal para a vida dos indivíduos e das sociedades. Lidar cotidianamente com pacientes cuja patologia implicava, em momentos de crise severa, a perda da consciência e o completo descontrole do corpo era lidar com a sempre inesperada quebra de toda a harmonia no plano individual (Neves, 2010).

Seu objetivo confesso era, portanto, a fidelidade "ao incomparável mestre" - Comte - "e à admirável doutrina" - o positivismo - e não ao tratamento e à compreensão da epilepsia.

O desconcerto em relação à epilepsia, que parecia escapulir à ciência, traduziu-se em algumas das terapias indicadas como, por exemplo, aquelas previstas na primeira tese brasileira sobre o tema, apresentada em 1859 pelo doutor Francisco Pinheiro Guimarães por ocasião de um concurso de provimento de cátedra para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Pinheiro Guimarães (1859) preconizava, como medida preventiva, uma estranha dieta alimentar capaz de evitar as crises que consistia em evitar carnes negras, ovos, massas, fritadas, pato, porco, carnes salgadas, enguia, arraia, caranguejo, lagosta, alcachofra, aspargos e salsa, além de prescrever alguns tratamentos radicais para as ocasiões de crise, tais como dar um tiro perto do ouvido do paciente de forma a assustá-lo com o ruído e com a possibilidade de ser ferido ou morto; ou ainda jogar o "epilético" em um rio durante a crise e, nos casos de "febre intermitente artificial", aquela provocada por fins terapêuticos em intervalos regulares, deixar o enfermo em crise nu, no frio e, depois, muito agasalhado, em um ambiente superaquecido. Quanto aos procedimentos a se-rem utilizados no "tratamento sistemático", aconselhava o uso, além das "sangrias, purgativos, vomitivos e exutórios", de algumas drogas com base em substâncias vegetais como a Valeriana, a Beladona e a Artemísia, ou em compostos químicos como o óxido de zinco e, principalmente, o nitrato de prata, ainda que este último tivesse um efeito colateral indesejado, pois sua utilização contínua fazia com que a pele do doente adquirisse um tom azulado. Pinheiro Guimarães sugere ainda a possibilidade de tratamentos cirúrgicos, tais como a obliteração das artérias epicranianas, a cauterização da faringe ou dos nervos, e mesmo a castração, segundo ele "duas vezes utilizada na medicina com bom êxito", mas não recomendável porque bárbara (Pinheiro Guimarães, citado por Neves, 2010: 76).

Os pacientes do doutor Jefferson, ainda segundo Neves (2010), estavam, graças a Comte, livres do circo de horrores dos tratamentos previstos para a epilepsia pelas teses médicas. O doutor Lemos sabia que Augusto Comte havia recusado a ingestão de qualquer medicamento por ocasião da doença que o levaria à morte. Assim, o tratamento adotado por ele obrigava seus enfermos, fundamentalmente, a um regime alimentar. Eles eram privados de carnes de todo tipo, obrigados a alimentar-se exclusivamente de uma comida insípida, tinham que abandonar o café, poderiam ser forçados a comer menos e, eventualmente, eram submetidos a uma sangria.

O exemplo do doutor Jefferson de Lemos está muito longe de ser diferente dos exemplos clínicos de ontem e de hoje. Diante do doente, o clínico é assolado pela inquietação e pela angústia e lança mão de "conhecimentos" adquiridos em sua formação. Ocorre que tais "conhecimentos" são, via de regra, eivados de preconceitos, levando-os à precipitação diagnóstica e à medicação inadequada.

Como se proteger, repetimos, da inquietação e da angústia que assola o clínico toda vez que se defronta com um paciente?

Clínicos famosos possuem recomendações a esse respeito. Pinel (1801/2007), por exemplo, refere-se às condições favoráveis para a manifestação sintomática do paciente. Freud, por sua vez, fala de uma abstinência silenciosa do clínico concedendo a livre associação ao paciente durante o tempo necessário para uma observação denominada "escuta". Kraepelin se refere ao tempo necessário para que a doença se manifeste plenamente. Binswanger, tanto no caso Ellen West (1977) como no de Aby Warburg (2007), é extremamente cuidadoso com o tempo necessário para a manifestação psicopatológica, como se cresse que é a própria existência assistida pelo clínico a responsável pelo tratamento.

Nessas recomendações há sempre uma referência ao tempo para a compreensiva manifestação lógica do paciente: a lógica de seu pathos. Esse tempo não é o da inquietação e da angústia do clínico, mal silenciadas pelo seu conhecimento a priori.

Na clínica psicopatológica fundamental, em que clínico e paciente necessitam do tempo e do espaço para colocar em palavra (logos) o sofrimento (pathos) psíquico, ocorrendo, assim, a própria psicopatologia, qual seria o lugar, na língua, a ser ocupado pelo clínico?

Há um lugar (topos) na língua que pode ser ocupado pelo clínico de forma a reduzir e até evitar a inquietação, a angústia e a precipitação diagnóstica e proporcionar um caminho em direção ao discurso (logos) sobre o pathos psíquico, ou seja, à psicopatologia? Se lugar (topos) houver, eis a hipótese deste trabalho, ele seria o neutro.

Como se sabe, há línguas em que o neutro é uma figura explícita: o latim, o alemão, o inglês e, em menor grau, o espanhol. O português não possui esse lugar explícito. Entretanto, os que falam o português com frequência criam artifícios linguageiros para expressar o neutro (Lauand, 2010). Isso, porém, cria questões complexas para a clínica na língua portuguesa.

Segundo Lauand (2010: 1), "as línguas que dispõem do neutro contam com um poderoso recurso de pensamento, sem o qual se tornam inacessíveis amplas regiões do real". Para esse autor:

o neutro puxa para a abstração, a totalidade, a indeterminação e não tem nada que ver com "seres concebidos como inanimados" e nem tampouco é uma "terceira opção" para aqueles que não decidiram ainda se são masculinos ou femininos. Masculino e feminino só se opõem ao neutro enquanto determinação; não enquanto "gênero" ou sexo (Lauand, 2010: 1).

Nesta perspectiva, o neutro é indeterminado: sem forma, sem figura e sem limites.

O neutro não pode ser confundido, desde logo, com a indiferença. Esta é um dos destinos possíveis da pulsão enquanto o neutro é um lugar proporcionado pela língua ao falante, é o lugar que proporciona ao falante a condição de falante, ou seja, provoca a linguagem.

O neutro afasta o clínico da pronúncia de enunciados performativos. Para haver um enunciado performativo, é preciso que haja certo contexto, mais ou menos estritamente institucionalizado, um indivíduo que tenha o estatuto requerido ou que se encontre numa situação bem definida. O enunciado é performativo na medida em que a própria enunciação efetua a coisa enunciada; o performativo se consuma num mundo que garante que o dizer efetua a coisa dita (Foucault, 1982-1983/2010). Por exemplo, quando o médico afirma "isso não é nada" para um paciente com uma queixa, este deixa de ter "algo" (um obscuro, surpreendente e perigoso) para se queixar não só ao médico que diz isso, mas a todos os clínicos.

Num enunciado performativo os elementos dados na situação são tais que, ao pronunciar o enunciado, segue-se um efeito conhecido de antemão, regulado de antemão, efeito codificado que é precisamente aquilo em que consiste o caráter performativo do enunciado. Ao passo que, ao contrário, no neutro, que se aproxima daquilo que Foucault (1982-1983/2010) denomina de "parrésia", qualquer que seja o caráter habitual, familiar, quase institucionalizado da situação em que ela se efetua, o que faz o neutro é a introdução, a irrupção do discurso determinando uma situação aberta, ou antes, abrindo a situação e tornando possíveis vários efeitos que, precisamente, não são conhecidos. "O neutro não produz um efeito codificado, ele abre um risco indeterminado" (Foucault, 19821983/2010: 32).

O neutro não se desenrola numa demonstração, por mais neutra que esta seja, pois quem enuncia a demonstração não corre nenhum risco. O enunciado do neutro não abre nenhum risco se ele for encarado como um elemento num procedimento demonstrativo. Aí não há neutro. A pronúncia do neutro (dentro ou fora de um procedimento demonstrativo) constitui um acontecimento irruptivo, abrindo para o clínico um risco não definido ou mal definido. É, portanto, em certo sentido, o contrário do performativo, em que a enunciação de algo provoca e suscita, em função do código geral e do campo institucional em que é pronunciado, um acontecimento plenamente determinado. O neutro é um dizer eruptivo que desencobre e que abre para o risco: possibilidade, campo de perigos, ou em todo caso eventualidade não determinada. O neutro coloca o clínico à beira de um abismo, espaço onde pode surgir o enigmático surpreendente.

Neste sentido, o neutro se aproxima da definição oferecida por Roland Barthes (2003: 16-17): "O neutro é aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de neutro tudo o que burla o paradigma. Paradigma, por sua vez, é a oposição de dois termos virtuais dos quais um é atualizado para se falar, para se produzir sentido".

Para Barthes (2003), o paradigma é o móbil do sentido; onde há sentido há paradigma e onde há paradigma (oposição) há sentido. Assim, o sentido assenta no conflito (escolha de um termo contra o outro), e todo conflito é gerador de sentido: escolher um e rejeitar outro é sempre sacrificar ao sentido, produzir sentido.

Tomás de Aquino - cujo pensamento filosófico e teológico explora muito as possibilidades do neutro - explica: "O gênero neutro é informe e indistinto; enquanto o masculino (e o feminino) é forma-do e distinto. E, assim, o neutro permite adequadamente significar a essência comum, enquanto o masculino e o feminino apontam para um sujeito dentro da natureza comum" (Aquino, 1265-1273/2006, I, q. 14, a. 1).

Para a compreensão do fundamental pensamento sobre o neutro realizado por Tomás de Aquino, que influenciará profundamente, por exemplo, toda a filosofia de Martin Heidegger (1977/2010) e, também, a psicanálise de Jacques Lacan, seria necessário um longo e complexo desvio pelas teses características do autor da Suma teológica e não é esse o objetivo deste texto.

Entretanto, com Tomás de Aquino apreende-se que o neutro se aproxima de um lugar, de um topos, e se afasta do gênero frequentemente associado, como faz Freud com a atividade e a passividade. O gênero é, como a indiferença, um efeito da pulsão e esta, sendo dinâmica, não guarda um lugar (topos).

Assim, a clínica possui, como sua primeira exigência, a relação com o enigmático surpreendente e tal relação só é verbalmente possível se o clínico ocupar o lugar do neutro na língua, ou seja, se afastar de todo paradigma.

O corpo enigmático, surpreendente e perigoso denominado paciente, apresentando-se ao clínico, é o fundo, a natureza de onde brotam intuições, sinais, figuras e palavras em direção a uma compreensão, uma interpretação (Verstehen). Natureza é entendida, aqui, como o que faz surgir e abriga. A natureza, que Heidegger denomina também Terra, é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e infatigável.

A metáfora da lavoura talvez sirva para esclarecer essa situação. O corpo, chamado paciente, apresentando-se ao clínico seria, assim, uma natureza, uma Terra onde qualquer manifestação está prestes a ocorrer. O corpo enigmático, surpreendente e perigoso denominado paciente é, pois, realista e está necessariamente incluso no ato de conhecer. Neste sentido, o intelecto apreende-se como objetivo imediato da realidade/corpo, isto é, do que antes de qualquer conhecimento já é em si mesmo. Na clínica há, pois, inicialmente, uma apreensão direta, intuitiva do que é inteligível no corpo, ou seja, do que ele é, de sua essência. Apreensão confusa e geral no ponto de partida que apenas afirma "algo" que é e logo faz a pergunta do quid: o que é?

Todo o trabalho clínico consiste, assim, em passar do conhecimento obscuro, confuso, geral e, antes de tudo, afirmativo e interrogativo do real para um conhecimento preciso e claro, próprio ao objeto em foco. A realidade inteligível de um corpo obscuro, surpreendente e perigoso só aparece para o clínico mediante a impressão que esse corpo causa nos seus sentidos e a imagem que os sentidos conservam ou reproduzem dele. A conformidade da impressão sensível com a realidade sensível e material, concreta de um paciente não pode deixar dúvida no clínico, por mais contraditória que ela seja. A hesitação é a expressão de um conflito intrapsíquico. Se isso ocorre, o clínico se encontra descentrado de sua posição neutra, ou seja, não ocorreu ainda a palavra capaz de desencobrir o obscuro. Ocorre, então, o que se poderia chamar de contratransferência, ou seja, uma atribuição de sentido do clínico para o paciente como exigência da manifestação das atribuições de sentido que o paciente transfere para o clínico. Em outras palavras, o clínico deve confiar em sua intuição, sua sensibilidade, em sua capacidade de apreensão figurativa daquilo que se manifesta na clínica. O que importa nesse realismo do sensível é o clínico ser o portador e anunciador do que é um ser, de sua essência e, antes de tudo, do fato de ele existir. Pois o encontro da existência só pode fazer-se para o homem pelo choque do sensível, pelo afeto, pelo pathos e é daí apenas que pode surgir no clínico a ideia de ser. O que é inteligível é a própria realidade do paciente enquanto apreensível pela inteligência. É próprio da inteligência justamente poder estender-se ao que não é e poder tornar-se outra coisa.

Diante do ser que desencobre, a inteligência desencobre a si mesma como não sendo apenas ela, mas também o que não é ela. Assim, no caso do Dr. Jefferson de Lemos, a inteligência não desencobre porque ela sabe: o epilético está diante do clínico positivista, cuja inteligência está obturada pelo saber de Augusto Comte. Não há espaço, na intuição, na sensibilidade, na inteligência do Dr. Jefferson de Lemos, para estender-se ao que não é, para ir além (ou aquém) do positivismo e permitir a desencoberta do ser epilético.

Os seres cognocentes distinguem-se dos que não conhecem pelo fato de os que não conhecem não terem em si mais que sua própria forma, enquanto o cognoscente é de natureza a poder ter também em si a forma de outra realidade (permanecendo ele mesmo). É claro que a natureza do não-cognoscente é mais fechada em si e limitada. Ao contrário, a natureza do cognoscente tem mais amplitude e extensão (Aquino, 12651273/2006, I, q. 14, a.1).

Prosseguindo na metáfora agrária anteriormente adotada, o clínico seria alguém (o lavrador?) que guarda a brotação na Terra. Ele sabe que dessa Terra, dessa natureza (o corpo obscuro, surpreendente e perigoso do paciente) brotam embriões de palavras em direção a uma linguagem.

O clínico-lavrador guarda, então, as manifestações do paciente-natureza, ou seja, aquilo que brota no corpo, suas manifestações significantes.

É, pois, impossível falar do conhecimento sem falar de sua relação com a realidade, com o ser (paciente). Dizer "eu penso" é, também, dizer: o ser (paciente) existe, quer o eu, quer o não-eu, o eu como o não-eu sendo anteriores à consciência que tenho deles: pensar o ser não é fazê-lo advir.

O português, como já foi dito, não dispõe do gênero neutro. O desconhecido surpreendente, por sua vez, não é nem masculino nem feminino. Aquilo, portanto, que pertence ao neutro não tem forma, não é um terceiro gênero oposto aos dois outros e constituindo uma classe determinada de existentes ou de seres de razão. O neutro é aquilo que não se distribui em nenhum gênero: o não geral, o não genérico, assim como o não particular. Ele recusa a pertença tanto à categoria do objeto quanto à do sujeito. E isso não quer dizer apenas que ele ainda está indeterminado e como que hesitando entre os dois, isso quer dizer que ele supõe outra relação, que não depende nem das condições objetivas nem das disposições subjetivas.

O desconhecido surpreendente é sempre vivido, pensado e dito no neutro. O pensamento no neutro é uma ameaça e um escândalo para o próprio pensamento. A nomeação do neutro, do obscuro surpreendente, não tem o poder de acolher diretamente. Algo nos é dado dizer para o qual falta à nossa maneira de abstrair e de generalizar a habilidade de promover signos (Blanchot, 2010).

O corpo obscuro, surpreendente e perigoso que se apresenta na clínica denominado paciente é assim chamado para aclimatar e domesticar o "neutro", pois paciente é passivo de adquirir forma e gênero, ou seja, o paciente é informe (Lebrun, 2009). O neutro é, assim, constantemente rechaçado de nossa linguagem e de nossa verdade. Recalque posto em evidência de modo exemplar por Freud que, por sua vez, denomina o neutro como inconsciente. Freud guarda o neutro quando propõe que o âmbito do inconsciente, do obscuro, do recalcado é onde nascem forma e linguagem graças à pulsão, ao instinto, à figura e à língua. Não se trata aqui de uma esperança, mas da própria natureza falante do corpo. Na clínica não há lugar para uma virtude como a esperança, pois ela conta com a natureza própria do humano que inclui a linguagem.

O obscuro surpreendente na clínica é neutro. O obscuro não é nem objeto, nem sujeito. Isso significa dizer que pensar o obscuro não é de modo algum propor gênero à coisa (das Ding). O ainda não conhecido, objeto de todo o saber ainda por vir, não é tampouco ultrapassá-lo no "absolutamente incognoscível", sujeito de pura transcendência, recusando-se a toda maneira de conhecer e de se exprimir (Blanchot, 2010). Ao contrário, digamos que na clínica está em jogo o obscuro surpreendente, com a condição, porém, de precisar: a clínica se relaciona com o obscuro surpreendente como enigma. Dito de outro modo, na clínica supõe-se uma relação entre clínico e paciente na qual o obscuro surpreendente seria afirmado, manifestado e até exibido: desencoberto naquilo que o mantém enigmático. O enigmático, nessa relação, se desencobriria, portanto, naquilo que o mantém encoberto (Blanchot, 2010). A relação clínica deve deixar intacto - intocado - o que transmite e não desvelado o que desencobre. A clínica não é uma relação de desvelamento. O obscuro, na clínica, não será revelado, mas indicado, sugerido sutilmente, apontado.

Para evitar mal-entendidos, é necessário esclarecer que, se essa relação com o obscuro surpreendente afasta o conhecimento objetivo, afasta igualmente o conhecimento intuitivo e o conhecimento por fusão mística. O conhecimento como neutro pressupõe uma relação estranha a toda exigência de identidade e de unidade, ou mesmo de presença.

Relacionar-se com o obscuro surpreendente sem desvelá-lo significa muito precisamente que o enigmático no neutro não pertence à luz. Pertence a uma "região" estranha a essa descoberta que se realiza na e pela luz. O obscuro surpreendente não cai sob o olhar, sem estar, no entanto, escondido do olhar: nem visível, nem invisível ou, mais exatamente, desviando-se de todo o visível e de todo o invisível.

O obscuro surpreendente, aquele para o qual a clínica nos desperta, é muito mais imprevisível do que pode sê-lo o futuro, mesmo "o futuro não predito", pois tal como a morte ele escapa a toda apreensão, exceto à fala, mas na medida em que esta não é uma apreensão, não é uma captura.

Eis então o essencial na clínica: falar o obscuro surpreendente, acolhê-lo na fala mantendo-o obscuro é precisamente não apreendê-lo, não compreendê-lo, é recusar-se a identificá-lo por essa captura "objetiva" que é a visão, a qual captura, embora à distância. Viver com o obscuro surpreendente diante de si (o que significa dizer também: viver diante do obscuro e diante de si como obscuro) é entrar nessa responsabilidade da fala que fala sem exercer qualquer forma de poder, inclusive esse poder que se realiza quando olhamos, já que, olhando, mantemos sob nosso horizonte e em nosso círculo de visão - na dimensão do visível-invisível - aquilo e aquele que está diante de nós. Clinicar é, sem vínculo, vincular-se ao obscuro surpreendente e perigoso, ao caso clínico como fundamento da terapia e da pesquisa psicopatológica (Magtaz & Berlinck, 2012).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Este artigo é resultado parcial da pesquisa sobre "O método clínico", financiada pelo CNPq. Agradeço as contribuições de Ana Cecília Magtaz e de Xochiquetzaly Yeruti de Ávila Ramirez.

 

 

Recebido em 13 de janeiro de 2011
Aceito para publicação em 03 de março de 2012