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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro jul. 2014
ARTIGOS
Destinos do vínculo e dos afetos no mal estar contemporâneo. O modelo da depressão
Lien et affects dans le malaise contemporain. Le modele de la dépression
Angélique Christaki*; Rodolfo Luís Leite Batista (Tradução)**
Universidade Paris VII - França
RESUMO
Partimos da constatação de que o mal-estar atual se sustenta no discurso capitalista, discurso que apresenta a particularidade de não se confinar em um impossível simbolizável, mas de girar em círculos, instituindo assim uma máquina infernal que cria, ao mesmo tempo, o desespero e a mercadoria para consolá-lo. O apelo controlado ao desespero que curto-circuita a temporalidade do humano no mundo contemporâneo tem sido denominado de depressão. Propomos a hipótese segundo a qual a homogeneização dos afetos do humano que está na base dessa depressão promulgada pela classificação do DSM e a política sanitária neoliberal representam de maneira paradigmática as coordenadas do mal-estar contemporâneo. Dessa forma, o "todos deprimidos!" é uma nova forma de proletarização das subjetividades que, por um lado, consome o vínculo social e, por outro, ignora que, afetado pela linguagem, o sujeito está condenado a uma insatisfação generalizada.
Palavras-chave: Palavras-chave: discurso capitalista; depressão; subjetividade; afeto.
RESUME
Nous partons du constat que le malaise actuel se soutient du discours capitaliste, discours qui présente la particularité de ne pas buter sur un impossible symbolisable mais de tourner en rond, instituant ainsi une machine infernale qui crée à la fois du désespoir et de la marchandise pour le consoler. L'appellation contrôlée du désespoir qui court-circuite la temporalité de l'humain dans le monde contemporain se dit : dépression. Nous proposons l'hypothese suivant laquelle l'homogénéisation des l'affects de l'humain qui est à la base de cette dépression promulguée par la classification du DSM et la politique sanitaire néolibérale représente de maniere paradigmatique les coordonnées du malaise contemporain. Tous déprimés est ainsi une nouvelle forme de prolétarisation des subjectivités qui d'une part consume le lien social et d'autre part ignore que, affecté par le langage, le sujet est condamné à une insatisfaction générique.
Mots-clés: discours capitaliste; dépression; subjectivité; temporalité; affect.
O capitalismo é, provavelmente, o primeiro exemplo de um culto,
que não é expiatório, mas culpabilizante.
Walter Benjamin (2000)
Discurso capitalista e mal-estar contemporâneo
Entre os fragmentos inéditos de Walter Benjamin publicados em 1985, há um que é particularmente obscuro, mas de assustadora atualidade; trata-se do fragmento de um texto de algumas páginas contendo notas e referências bibliográficas, intitulado O capitalismo como religião (Benjamin, 2000).
Walter Benjamin escreve neste projeto de texto que "é preciso ver no capitalismo uma religião" (Benjamim, 2000: 113) e, mais particularmente, a celebração do primeiro exemplo de um culto que não é expiatório, mas culpabilizante. O resultado desse processo monstruoso de culpabilização capitalista é a generalização do desespero, de um desespero radical e sem origem.
Aliás, esse desespero, que constitui um dos aspectos maiores do mal-estar contemporâneo, deve ser distinguido do mal-estar sexual de estrutura diagnosticado por Freud. A partir dessa distinção, trata-se de definir que o mal-estar contemporâneo encontra-se, sobretudo, em relação com os efeitos assujeitadores dos discursos atuais que afetam as subjetividades.
Nessa perspectiva, o mal-estar contemporâneo afeta as subjetividades, sustentando-se em um discurso que tem a particularidade (em relação a outros discursos) de girar em círculos, ou seja, de não confinar em um impossível simbolizável, elemento instituído por cada um dos quatro discursos desenvolvidos por Lacan (1969-1970/1991). Trata-se de reconhecer nesse nível o discurso capitalista, discurso que apresenta a particularidade de funcionar "como um relógio, algo que não poderia funcionar melhor, mas, justamente, que funciona muito rápido, algo que se consome, isso se consome, assim como isso se consuma" (Lacan, 1971-1972/2006: 8).
A singularidade desse discurso consiste no fato de que ele impõe, de uma maneira incessante e cada vez mais acelerada, novos objetos para pôr no lugar do objeto a causa do desejo. De fato, uma das formas de caracterizar o objeto a, tal este aparece na obra lacaniana, é o de um objeto absolutamente inútil do ponto de vista da lei social. Isto é, trata-se de um domínio de objetos que, ainda que imanentes ao registro simbólico da Lei, são absolutamente supérfluos, não contabilizáveis ou mesmo simbolizáveis. E a tentativa daquilo que Lacan chamou de discurso capitalista é, portanto, inserir os objetos a, este domínio de objetos excessivos e/ou inúteis, dentro de uma contabilização que assume a característica de um dever de produção. É este dever que Lacan (1971-1972/2005: 58) chamou mais-gozar capitalista, em paralelo ao conceito marxista de mais-valia.
De onde, aliás, o ardor infernal de uma máquina que cria, ao mesmo tempo, desespero e a mercadoria para consolar as subjetividades desesperadas, pobre consolação que só faz promover desespero, e assim por diante. Dessa maneira, instala-se um mal-estar que toma cada vez mais os aspectos de um desespero cuja denominação controlada nas sociedades ocidentais capitalistas é: "depressão".
A quebra da temporalidade do humano
A questão que se coloca nas sociedades contemporâneas é: quais são a natureza e o sentido da relação que o desespero, sob a forma de depressão, estabelece com o laço social contemporâneo?
Proponho a hipótese de que a depressão, como efeito do discurso capitalista, consome o vínculo social.
No cerne dessa configuração contemporânea se opera a forclusão da castração1, que não é aquela do Nome do Pai, mas aquela que priva os sujeitos da solução do vínculo com o outro pelo amor, enquanto o gozo é prometido para cada um sem restrição, chegando a pretender nos curar da castração e da alteridade, mantendo-os foracluídos.
Curar a castração é curar o íntimo; na realidade, curar o outro, propondo como remédio sua própria mercantilização, ou seja, a mercantilização do íntimo.
Mas, olhando de mais perto a dita novidade neoliberal, a mercantilização do íntimo não é uma novidade. A esse propósito, basta lembrar das indulgências, ou seja, da mercantilização da graça de Deus pelos jesuítas.
Há, aliás, um território mais íntimo do que aquele de nossos pecados?
Desde o tempo de Dante e de Spinoza até hoje, o lugar do pecado – ou seja, o lugar da tristeza, tanto como "falta moral" como quanto "covardia moral", se acompanhamos Lacan em Televisão (2001) – estabelece relações bastante estreitas com o lugar de um mercado muito lucrativo.
Pode-se dizer ainda que se a mercantilização de nossos pecados é um negócio de todos os tempos, aquilo que se torna cada vez mais difícil para cada um no mundo contemporâneo é conseguir acomodar seus pecados, ou seja, acomodar o mais íntimo daquilo que se é no comum. O vínculo social está consumido, na realidade consumado, antes mesmo que o pecado de cada um seja negociado. Em outras palavras, não há mais lugar para negociação de nossos pecados.
Ora, negociar o pecado, ou seja, a tristeza como afeto fundamental no laço social, é dar uma chance para que os acidentes da vida se transformem em eventos psíquicos. Aprofundando esse argumento, podemos notar que, sob a injunção da política sanitária atual adaptada às exigências socioeconômicas, o velho pecado moral se viu transformado em transtorno, na realidade em "transtorno distímico" destinado a ser apagado o mais rapidamente possível.
Ora, o "transtorno", termo pret-à-porter que recobre situações e estados díspares, tornou-se o novo dispositivo nosográfico que nega o fato de que a tristeza, bastante distinta do luto e da depressão, é, antes de tudo, um afeto, e um afeto fundamental, sendo dado que, afetado pela linguagem, o sujeito está condenado a uma insatisfação que não tem nada de circunstancial.
A partir disso, há uma confusão persistente entre tristeza e depressão, confusão que homogeneíza os afetos do humano, colocando todos os afetos dolorosos no mesmo elenco, sob o nome de depressão.
E se o afeto supõe uma vida interior assim como a inscrição do ser humano em sua história, apagá-lo é cortar o sujeito de sua história; o que constitui, aliás, no nível da temporalidade humana, os efeitos de forclusão do discurso capitalista. Eu não poderia encontrar melhor forma de ilustrar as modalidades dessa temporalidade promovida pelas subjetividades contemporâneas, ou seja, por essa relação curto-circuitada em relação ao objeto a, que é aquela vista no primeiro plano na publicidade de uma marca conhecida de câmera fotográfica.
Nessa publicidade, é o objeto de consumo, a câmera fotográfica, que, para nos vender suas virtudes, fala não somente sobre a qualidade das fotos ou da sensibilidade da resolução da imagem. Ele nos fala do tempo, de uma certa relação com o tempo na qual se inscreve o vínculo com os humanos e com os objetos.
Ele nos diz ainda que: "Se fosse uma cafeteira", diz a câmera, "nosso café estaria pronto antes mesmo de apertarmos o botão". "Se fosse uma porta, estaria aberta antes mesmo que procurássemos por nossas chaves". "Se fosse um brinquedo de criança, consolaria a criança antes mesmo que ela chorasse". "Se fosse nosso irmão, seria nosso melhor amigo antes mesmo que tivéssemos nascido"; e acrescenta com malícia: "e além de tudo, antes!". Mas a publicidade não diz apenas isso. Enfim, "se fosse o futuro, já estaria lá", etc.
Essa publicidade, muito instrutiva de uma certa quebra da temporalidade do humano, induz a um marasmo no nível do desejo e não deixa nenhuma chance para que se coloque em perspectiva qualquer falta que seja.
Transtornos, depressão... e outros dispositivos nosográficos
Assim, podemos nos perguntar como a depressão tornou-se a figura maior do mal-estar de nosso tempo e como chegamos à era do transtorno, do TOC e da depressão no mundo contemporâneo da psiquiatria.
No que concerne à depressão, todos os especialistas estão de acordo sobre o fato de que suas taxas aumentam de uma maneira constante e significativa. O número de indivíduos sofrendo de depressão foi multiplicado por sete desde 1970, tornando-se assim uma prioridade para a saúde pública. E como quinze por cento das depressões graves conduzem ao suicídio, a depressão é considerada como uma doença potencialmente mortal, rivalizando com as doenças cardiovasculares.
Se refizermos a história da depressão pelo DSM, podemos notar que ela começa a se definir como problema maior de saúde pública a partir da metade do século passado, quando foram realizados os primeiros estudos epidemiológicos sob a égide da OMS2.
Até o DSM III, existia ainda uma concepção neurótica da depressão sob o termo de "neurose depressiva". Mas a partir de 1980 ela foi substituída pelo termo "transtorno distímico" no capítulo dos transtornos afetivos. A distimia se tornou assim o alvo dos laboratórios farmaceuticos.
No DSM IV-TR (Corcos, 2011: 80), um estado depressivo é qualificado de maior se o conjunto de sintomas (astenia, tristeza, perda de interesse, anedonia, problemas de concentração, sentimento de desvalorização) dura mais de dois meses. E se, segundo o DSM IV-TR, em um espírito profilático das populações a tristeza e até mesmo o luto não eram toleráveis por períodos maiores que dois meses, anuncia-se, hoje, no DSM-V, a redução dessa duração para duas semanas.
Ora, mesmo se o luto e a tristeza não recobrem as mesmas entidades clínicas, nós podemos a partir desse ponto considerar o DSM como instrumento paradigmático de ruptura em relação à temporalidade do vínculo humano.
Propomos a hipótese segundo a qual a anestesia do afeto e seu apagamento são consequências do advento da depressão como sintoma do vínculo social no mundo atual. A depressão do vínculo como mal-estar no laço contemporâneo aparece em ressonância com os efeitos do discurso capitalista, discurso que tem a particularidade de apagar o valor sintomático da relação do sujeito com o tempo e a alteridade em proveito do valor de mercadoria do transtorno.
Tratar o afeto anestesiando-o constitui, atualmente, a aposta do mercado. Ora, anestesiar o afeto o mais rapidamente é privar o sujeito da possibilidade de se pôr em ressonância com seu desejo. Tal é a visada introduzida pelo DSM e pelos laboratórios farmaceuticos que promulgam a mercantilização do desespero.
Consumir o afeto no nível do transtorno é negar o fato de que o afeto é a consequência da relação inconciliável entre o corpo e a linguagem e que, desse fato, é já traço do sujeito, ou seja, que ele engaja o tempo de um a posteriori, e isso dolorosamente.
Curto-circuitar o tempo psíquico e a história singular dos sujeitos corresponde ao apagamento da possibilidade de que a relação do sujeito ao tempo se implemente sintomaticamente, ignorar que a temporalidade do sujeito traz a marca da defesa subjetiva em direção ao real.
Assim, o transtorno não é somente o produto do apagamento do afeto e do tempo de seu advento, mas, além disso, ele se encontra na base de uma concepção do corpo que apenas o toma como soma biológico.
O apagamento do corpo e dos afetos na clínica do sujeito se faz em proveito do advento do dispositivo acientífico do método do DSM. A esse propósito, trata-se de notar que as estatísticas que fundam o DSM não concernem aos pacientes, mas às opiniões de um certo número de psiquiatras. O DSM não está fundado sobre a observação clínica; pelo contrário, ele está baseado sobre um conjunto de opiniões recolhidas de maneira arbitrária e tendo como objetivo produzir um território de consenso, suprimindo toda referência a uma causalidade psíquica e histórica (Corcos, 2011: 10).
À guisa de conclusão
Todavia, a era do transtorno se conjuga não somente com a era do Prozac, mas também com a era do "psi", que constitui uma das figuras incontornáveis na cena do mal-estar contemporâneo. O "psi" se tornou assim um novo lugar do endereçamento indexado à injunção do consumo de serviço e das prestações destinadas a satisfazer as subjetividades contemporâneas. Os hiperativos, os assediados, os deprimidos, as vítimas se endereçam ao "psi" para legitimar seus transtornos e para tentar apagá-los o mais rápido possível.
É, aliás, notável que contestar a era do transtorno e o apagamento dos afetos que a acompanham participa da crítica a uma construção mítica e profética3 que erige o desespero em instância decisiva. É, aliás, nesse nível que pode se operar um verdadeiro trabalho de construção do mito contemporâneo, trabalho de transformação do mal-estar atual em culto do desespero.
E a psicanálise?
A psicanálise aposta na proposição de outro tipo de vínculo, um vínculo que poderia restituir ao objeto sua função separadora. Essa via que nega todos os defensores locais deste objeto se desenha como um caminho de resistência, talvez uma saída do desespero em nossas sociedades contemporâneas.
Como conclusão, eu diria que, face ao "todos deprimidos!" que se encontra na origem em relação ao desespero como traço do tempo, Freud não se designava como desesperado e ainda menos como deprimido, mas como pessimista e, mais particularmente, como um "pessimista alegre", uma alegria que rima com aquela do saber, que Lacan propõe como antídoto para esse toque do real que é o afeto da tristeza.
Referências bibliográficas
Baudrillard, J. (1970). La Société de consommation. Paris: Denoël. [ Links ]
Benjamin, W. (2000). Fragments philosophiques, politiques, critiques, littéraires. Tradução do alemão por Christophe Jouanlanne e Jean-François Poirier. Paris: PUF. [ Links ]
Bruno, P. (2011). Lacan, passeur de Marx, l'invention du symptôme. Toulouse: Éres. [ Links ]
Corcos, M. (2011). L'homme selon le DSM. Paris: Albin Michel. [ Links ]
Corcos, M. (1977). Jacques Lacan , Le discours psychanalytique, cours à l'université de Milan. In: Italia – Lacan en Italie (pp. 8-58). Salamandra.
Lacan, J. (2001). Autres écrits. Paris: Seuil. [ Links ]
Lacan, J (1971-1972/2006). Le Séminaire, Livre XVI, D'Un Autre a l'autre. Paris: Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (1969-1970/1991). Le Séminaire, Livre XVII, L'Envers de la psychanalyse. Paris: Seuil. [ Links ]
Sauret M. J (2009). Malaise dans le capitalisme. Toulouse: Presses universitaires du Mirail. [ Links ]
Weber, M. (2001). L'Éthique protestante et l'esprit du capitalisme. Tradução do alemão por Pierre Grosseins. Paris: Gallimard. [ Links ]
Artigo recebido em: 1 de março 2013
Aprovado para publicação em: 20 de junho 2013
Endereço para correspondência
Angélique Christaki
E-mail: angelique.christaki@wanadoo.fr
* Psicanalista, Psicóloga clínica no CMPPP-BAPU, Ensino Universidade Paris VII, Pesquisadora-associada do Laboratório CRPMS da Universidade Paris VII.
** Tradução: Rodolfo Luís Leite Batista. Psicólogo, mestrando em Psicologia na linha Processos psicossociais e sócio-educativos, Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ
1 Para essa questão, indicamos ao leitor a obra de P. Bruno, Lacan passeur de Marx (2011), principalmente no capítulo "La chorégraphie de l'amour", p. 214-224. Ele é escrito em ressonância com as notas premonitórias de Walter Benjamin e diz que "o capitalismo [...] prepararia um mundo-sem-amor, com exceção do amor religioso trazido por esse Outro totalmente abstrato, o sistema capitalista" (Bruno: 216).
2 A organização mundial de saúde (OMS), fundada em 1948, é uma organização especializada da Organização das Nações Unidas (ONU) para saúde pública.
3 Em relação a essa problemática, indicamos a leitura da obra de J. Baudrillard, La société de consommation (1970).