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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro jul. 2014

 

ARTIGOS

 

Rupturas, experiências de choque e o elogio a crua e nua realidade: prenúncios do trauma no fenômeno das Bodymodifications

 

Breaks, experiences shock and praise to the raw and naked reality: harbingers of trauma in the phenomenon of Bodymodifications

 

 

Alexandra Arnold Rodrigues I, II*; Angela Maria Pires Caniato III**

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Brasil
II Centro Universitário Franciscano do Paraná (UNIFAE) - Brasil
III Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo problematiza a condição traumatogênica da modernidade no que tange as experiências de choque e a paixão pelo Real tematizadas por autores como Christoph Türcke e Slavoj Zizek que, em nossa hipótese, se "encarnam" em fenômenos como das Bodymodifications. Para tanto, propõe-se um diálogo entre Psicanálise e as injunções histórico-culturais contemporâneas, munido de uma análise-interpretativa do material colhido no site www.bmezine.com. Entende-se que a economia pulsional ligada a tais práticas é correlata ao trauma e ao vício como compulsão a repetição: as feridas autoimpingidas pelos adeptos situam uma tentativa, ainda que inócua, de ligar o excesso energético. Sob uma explícita expressão do amalgama dialético entre pulsão de morte e pulsão de vida emerge o fracasso do princípio de prazer.

Palavras-chave: trauma; modernidade; Bodymodifications; repetição compulsiva.


ABSTRACT

This article discusses the condition of modernity in relation to shock experiences and the passion for Real, thematized by authors such as Christoph Türcke and Slavoj Zizek, which in our hypothesis these are "incarnates" in phenomena such as the Bodymodifications. For this purpose, it is proposed a dialogue between psychoanalysis and critical theory, from analysis-interpretative of the material collected on the site www.bmezine.com. It is understood that the wound is situated in a attempt, still failed, to turning on the energetic excess.

Keywords: trauma; modernity; Bodymodifications; compulsive repetition.


 

 

É com grande fervor e de forma espetacular, em meio a propagandas coloridas e cheias de efeitos, que o site www.bmezine.com1 anuncia os modificados da vez: um casal que decide "selar" o compromisso amoroso na carne, cada um mordendo e amputando parte do dedo do parceiro. Mais uma "novidade" documentada, prestes a entrar e misturar-se aos inúmeros arquivos do maior e mais antigo site de Body Modification. As outras mídias, revistas e televisão, esbaldam-se com o espetáculo e o apresentam ao público "leigo" sem qualquer pudor ou velamento.

Dentro de alguns meses, outra novidade: desta vez trata-se de irmãos gêmeos. Um deles amputa um dos braços para que o irmão o implante em seu corpo. Enquanto um irmão agora tem três braços, o outro se contenta com um. Pronto, uma nova mutação, repleta daquela "originalidade" que os indivíduos freneticamente vêm buscando, num mundo onde tudo parece já estar acabado, idêntico e banalizado. Mas tudo isto ainda parece não satisfazer os mais novos adeptos das Bodymodifications. Então, alguns buscam a superação e passam a colocar piercings "no cérebro". Isto mesmo! Perfuram o crânio com uma broca e implantam a "joia", que passa a pressionar o tecido cerebral. Justificativa: isto provocaria um "estado de euforia permanente".

Algumas destas práticas contemporâneas de modificação corporal, narradas brevemente acima, consolidam o interesse central desta pesquisa. Para alcançar a complexidade deste fenômeno, passível de ser considerado sob uma perspectiva biopsicossocial, convoca-se uma análise das injunções culturais contemporâneas que pesam sobre a concepção de corpo no Ocidente e que culminam num hiper-investimento sensório-doloroso e estético desse. Compreende-se que é a partir da identificação deste panorama cultural, que firma um imaginário coletivo específico a respeito do corpo, que é possível desvelar algumas das motivações psíquicas que garantem a adesão dos indivíduos deste momento histórico às práticas de Bodymodification.

Sendo assim, tem-se a intenção de contribuir com uma compreensão psicanalítica para que a clínica contemporânea possa se posicionar analítica e politicamente sobre o (des)velamento dos significados, dos registros corpóreos (que também são sociais) e da necessária castração, ou seja, da necessidade de deparar-se com a condição da natureza (corpórea e finita) humana. Somente a partir de uma visão menos ingênua do fenômeno das Bodymodifications será possível lidar com a culpabilização dos indivíduos que vêm vivenciando a sofreguidão de um corpo em punição. Conhecer os princípios sociais que regem o estilo de vida dos homens hoje, os ideais culturais que servem de modelos identificatórios e as implicações desta relação indivíduo-cultura possibilita ao psicólogo/psicanalista enxergar a cumplicidade e adesão dos indivíduos a tanta violência sem recair no engano de reduzí-los às patologias ou de mantê-los na identificação com o agressor. Para firmar nossa posição recorremos a Gagnebin (1993), que pontua que, para Adorno, uma das características do pensamento dialético é

a convicção de que particular [individual] e universal [cultural] se determinam mutuamente, de que não se pode, portanto, analisar um elemento particular sem recorrer à sua inserção na totalidade social, de que a verdade desse particular só pode ser encontrada na sua determinação [mas não enrijecimento] pelo universal (Gagnebin, 1993: 77).

Mais do que almejar uma discussão pautada num pensamento dialético, endossamos o posicionamento de Freud (1921/2005: 7) de que "na vida anímica individual aparece integrado sempre, efetivamente, o outro, como modelo, objeto, auxiliar ou adversário e, desse modo, a psicologia individual é ao mesmo tempo e desde o princípio psicologia social". Por isso, localizar os praticantes das Bodymodifications e seus corpos na história de sua época (não só em sua história de vida pessoal) e resgatar a condição destes enquanto seres sociais é o primeiro passo para garantir uma escuta continente e respeitosa dos psicólogos/psicanalistas que recebem hoje em seus consultórios indivíduos que cortam, furam, queimam sua pele alegando que isso alivia a sua dor (no caso, a dor psíquica); ou mesmo aquele que renova sua pele com uma grossa camada de tatuagens e anuncia ver a tatuagem (e outras modificações) como um vício: "depois da segunda, não se quer parar mais".

Portanto, a partir de uma Pesquisa Qualitativa-Interpretativa (Rey, 2005), propõe-se uma análise do contexto histórico-cultural de rupturas e experiências de choques, próprias da modernidade, que Christoph Türcke (2010), Sérgio Rouanet (2006), Beth Fuks (2006), entre outros autores contemporâneos, denominam traumatogênico: trata-se de uma cultura que expõe, continuamente, os indivíduos às vivências violentas-traumáticas, não sem onerosas consequências à subjetividade. Sustenta-se a hipótese de que as Bodymodifications seriam uma expressão deste contexto.

 

O que são as Bodymodifications?

O fenômeno contemporâneo da Bodymodification pode ser caracterizado como uma (re)atualização de antigas intervenções corporais tribais-primitivas; contudo, com a recente finalidade de meramente (re)configurar a silhueta e/ou, para muitos dos adeptos, com o objetivo de "curtir a dor". Evita-se o uso de anestesia, mesmo estando em jogo incisões, mutilações e perfurações na "carne" ou Flesh (termo que os adeptos dessas práticas evocam pejorativamente ou mesmo com fervor ritualístico). Apesar de incluir os tradicionais piercings e tatuagens, as Bodymodifications são conhecidas por trazerem algumas "novidades" no âmbito da modificação corporal, inclusive exigindo um profissional específico para sua realização, os BodyModers. Entre tais novidades se encontram as modificações mais "leves", como costuras da pele ou orifícios, brincadeiras com agulhas e sangue, além dos alargadores (septo, auricular, etc.), Surface e Pocket (no caso, piercings com as pontas voltadas ao lado interno da pele ou o oposto), e modificações consideradas mais "pesadas" como as Escarificações (incisões de bisturi com retirada ou não de pele, criando figuras por meio da formação de queloides) ou Cutting (cortes sistemáticos e aleatórios em partes específicas do corpo); Brandings (marcação da pele com ferro quente); implantes subcutâneos (entre músculo e pele) ou transdermais (parte do objeto fica para fora da pele) de objetos de silicone ou Teflon; injeção de silicone líquido; rituais de suspensão (suspensão do corpo por meio de ganchos/grandes anzóis); subincisão ou divisão de membros (língua, pênis, etc.); amputações e anulações (de genitais, dedos, braços, etc.); entre outras.

Os adeptos destas práticas costumam classificar como Bodymodification Hard ou Extreme as práticas que adquirem um caráter de excesso, seja ele refletido na escolha de modificações consideradas mais intensas e dolorosas ou expresso na continuidade e repetição das práticas - o que é definido por alguns como um "vício" ou "necessidade". Conforme o relato de um adepto apresentado por Braz em seu estudo antropológico sobre tais práticas:

em dado momento, comentou que fazia tempo que "não fazia nada" em seu corpo, completando que "estava precisando sentir dor, estava "com falta de sentir dor". Contou que certo dia estava em seu estúdio, meio triste, chateada, quando resolveu pegar um catéter e furar o próprio nariz, sem joia, apenas pela sensação de dor. Disse que se sentira melhor, mais aliviada (Braz, 2006: 130).

Nestes casos, a preocupação estética - o belo, valor que motiva muitos dos adeptos -, se presente, fica em um segundo plano, e é a dor que norteia a intencionalidade das práticas, seja pelo apelo ao lúdico, ao gozo na dor ou à sua superação (suposta ascese). Segundo Braz (2006: 32), "para muitos/as adeptos/as, o 'extremo' seria o "limite" da Bodymodification, muitas vezes apontado como 'bizarro' ou esteticamente desagradável". São modificações geralmente realizadas em regiões corporais incomuns, por isso, consideradas não-convencionais. Garantem uma boa dose de dor, sendo que muitas deixam sequelas intencionais e são mensuradas pelos adeptos segundo o grau de comprometimento e a permanência das marcas (Braz, 2006).

 

Sob a economia psíquica do vício como compulsão à repetição: reflexos de uma cultura traumatogênica

Cunhado por Christoph Türcke (2010) como "Sociedade excitada" ou por Lipovetski e Charles (2004) como Hipermodernidade, o atual período histórico carregaria a marca do frustrado projeto emancipatório da modernidade: garantiu-se a ruptura com antigos modelos de organização e coerção social, mas reatualizou-se o desamparo primordial dos indivíduos. Fenômeno este que teria lançado os homens a um intenso problema existencial.

Se, no período feudal, violentas amarras sociais sustentavam rigidamente os grupos, com a expulsão da população do campo rumo aos centros urbanos sem garantias ou meios seguros de subsistência, tem-se, na modernidade, junto com os avanços do conhecimento e as benesses da técnica, importantes fraturas nos pontos de apoio, proteção e referência dos indivíduos. Engolfados e desovados diretamente no processo de produção industrial, estes homens têm que lidar com uma ruptura brutal nos seus ritos, costumes, hábitos e significados, ou seja, ruptura com os modelos normativos de autoridade de outrora (Türcke, 2010). Tais rupturas geraram uma sofrida condição de privação e, paradoxalmente, de excessos frente ao realismo estético próprio das artes e da mídia no século XIX (Jaguaribe, 2007). Segundo a autora:

Há nos meios de comunicação, uma produção de "realidades" exacerbada pelo sensacionalismo, pela propulsão ao choque, pela necessidade imperiosa de produzir novidades, pela vertiginosa velocidade de informações fragmentárias que não compõe um retrato total do social-global [nem mesmo dá bases para a elaboração psíquica destas rupturas] (Jaguarige, 2007: 17).

Torna-se inevitável reconhecer nessas experiências contemporâneas de excesso-privação a violência cultural generalizada, se fizermos a mesma interpretação de Nilo Odália:

para iluminar o tema da violência, [deve-se] considerá-la sob a forma de privação. Com efeito, privar significa tirar, destituir, despojar, desapossar alguém de alguma coisa. Todo ato de violência é exatamente isso. Ele nos despoja de alguma coisa, de nossa vida, de nossos direitos como pessoas e como cidadãos. A violência nos impede não apenas ser o que gostaríamos de ser, mas fundamentalmente de nos realizar como homens (Odália, 1983: 86).

A violência deste processo geraria importantes vivências de choque (Benjamin, 1989) frente à aceleração de todas as atividades sociais e a dificuldade de formar vínculo com elementos culturais da tradição ou entender a própria condição social; fruto de um período em que declina a experiência. Onde declina a experiência, não há preparação para as experiências disruptivas por meio do medo/angústia. Como bem pondera Freud (1920/2006), "o fator surpresa, o susto" é crucial para que o indivíduo seja acometido pelo trauma. Dito isto, as vivências de choque da modernidade, teorizadas por Benjamin (1989), seriam o correlato da vivência traumática freudiana. Como pontua Rouanet (2006: 155), "no plano individual, a onipresença das situações de choque faz supor que a neurose traumática venha a tornar-se a doença psíquica do século XXI, como a histérica o foi do século XIX". Para Rouanet, estaríamos vivendo um dos períodos traumatogênicos da história da humanidade. Este seria o segundo período nos últimos 100 anos, sendo o primeiro marcado pelas várias guerras da modernidade, entre 1914 e 1990.

Da guerra fria aos dias de hoje, os indivíduos experienciam uma sensação de extrema vulnerabilidade, fruto da sofisticação tecnológica usada em prol da violência: criminalidade globalizada; terrorismo em rede; armas químicas e biológicas; violência gratuita, acidentes automobilísticos, cadáveres de crianças assassinadas ou multidão de corpos não identificados após uma tragédia natural sendo flagrados nos mínimos detalhes e com tamanha precisão que o virtual e o real se confundem. Todos esses fatos esboçam o que Fuks (2006) chamou de "civilização do trauma":

a exposição rotineira à violência e às catástrofes produzidas pelo próprio homem ultrapassam o mal-estar provocado pelas repressões civilizatórias e atingem, diretamente, a incapacidade do sujeito de receber um evento inesperado e transbordante - o que se configura como trauma. O fato é que o homem contemporâneo vive submerso em experiências de excessos feitas de choques que provocam susto e esgarçam a ordem simbólica (Fuks, 2006: 33-34).

Segundo Fuks (2006), conviveríamos com um "excesso de realidade da morte" que onipresentemente assola nosso cotidiano e banaliza a violência, pois permeada por uma racionalidade instrumental - portanto, encoberta pela visão pragmática e utilitarista do mundo. Essa herança sócio-histórica teria gerado uma "dessacralização da morte". Perdeu-se assim a capacidade de se deixar afetar pela morte e de ter contato com seus limites. Sem os tradicionais rituais e simbolismos que envolviam a morte, a apatia prevalece e a culpa se esmaece, o que restringe as possibilidades de reparação e de elaboração dos lutos. Consequentemente, os indivíduos estariam hoje sem parâmetros para a vida e para a organização simbólica, expostos como nunca ao "terror traumático".

Os adeptos das Bodymodifications aparecem aqui como um grupo contemporâneo que cultua o confronto com a morte ao desafiar o corpo a experimentar a laceração de seus contornos, a dor lancinante, a exposição da carne e o sangue que escorre: flagram o terror, como em uma fotografia, e o fixam como em uma moldura exposta na sala de estar com a aparente naturalidade de quem convive diariamente com catástrofes e com o pânico generalizado. Nem por isso os adeptos das Bodymodifications estão imunes às vivências traumáticas da atualidade, quando em verdade são uma das mais autênticas expressões dessa realidade.

Recorrer ao conceito de trauma na psicanálise é pressupor uma

ruptura ou colapso que ocorrem quando apresentam-se subitamente ao aparelho psíquico estímulos (provindo quer de dentro, quer de fora) poderosos demais para que com eles lide ou que sejam assimilados de maneira usual. Uma barreira contra estímulos ou escudo protetor é rompida e o ego, engolfado, perdendo sua capacidade de mediação. Disso resulta um estado de desamparo que vai da total apatia e se faz acompanhar por um comportamento desorganizado que beira o pânico. [...] O trauma é onipresente no desenvolvimento, mas algumas experiências de trauma afetam adversamente o desenvolvimento e aumentam a vulnerabilidade do ego a ele (Moore & Fine, 1992: 215).

Neste sentido, "o trauma pode ser considerado um evento hipertenso, que excede à capacidade representacional e que colhe o sujeito antes que este possa tramitá-lo psiquicamente. O caráter disruptivo, desorganizador ou imprevisível do trauma é uma tônica em Freud" (Dunker, 2006: 39). Para Freud, o trauma se sustenta em uma perturbação duradoura da economia psíquica do indivíduo resultante de um excesso energético que invade o ego e impossibilita sua descarga ou a sua tramitação de forma simbólica. Isso quando não ameaça radicalmente a integridade do sujeito (Laplanche & Pontalis, 2008).

Diante deste contexto, é possível entender as práticas de Bodymodification como fruto de uma "sociedade excitada", portanto traumática, que lança os indivíduos na lógica do "vício" (Türcke, 2010), entendido aqui como correlato da repetição compulsiva (Freud, 1920/2006). Como propõem os relatos dos adeptos: "é, então, eu tenho mania de fazer essas coisas quando estou num período ruim da vida" (relato de profissional e adepto em entrevista concedida a Braz, 2006). "Não uso drogas e nem bebo, meu único vício são as Bodymodifications, por isso tenho a aceitação da minha família" (Relato de adepto divulgado no site BMEzine; tradução nossa).

Em consonância a essa discussão, encontramos a hipótese elaborada por Zizek (2003) que propõe entender as modificações corporais - em especial os chamados cutters ou a rotulada como "nova patologia", self-injury - a partir da atual paixão pelo Real2. Segundo ele,

longe de ser uma atitude suicida, longe de indicar um desejo de autoaniquilação, o corte é uma tentativa radical de (re)dominar a realidade ou, o que é outro aspecto do mesmo fenômeno, basear firmemente o ego na realidade do corpo contra a angústia insuportável do sentir-se inexistente. Essas pessoas afirmam que ao ver o sangue quente e vermelho correr do ferimento autoimposto sentem-se novamente vivas, firmemente enraizadas na realidade (Zizek, 2003: 24).

Como em outros relatos do BMEzine: "É preciso sentir o ferro queimando na carne para sentir que realmente se está vivo" [tradução nossa]. Ou ainda "Se é pela dor que se sente que existimos, então o indivíduo vai querer repetir a dose" [tradução nossa].

Assim, as Bodymodifications corresponderiam a uma tentativa de "fixar" a percepção em algo passível de domínio, numa tentativa de gerar certa permanência por meio das sensações autoimpingidas. Como pondera Türcke (2010: 66), trata-se da "necessidade desse 'aí'", "uma sensação que se projete para fora do fluxo, permitindo, assim, ao organismo vir à tona - como alguém que, emergindo de um sonho difuso e torturante, aliviado percebe os contornos conhecidos do ambiente [e do próprio corpo]". Em meio ao excesso e à velocidade, as Bodymodifications seriam uma "parada", mas, contraditoriamente, pautada em um novo excesso. Como relata Braz (2006: 130) a respeito de uma sessão de suspensões corporais a que assistiu: acompanhado do procedimento da inserção dos ganchos no corpo do praticante, em meio às conversas entre adeptos, havia, "no rádio, um heavy-metal ensurdecedor" e "na TV, um vídeo de explosões e manobras radicais automotivas". Além da dor física, que já é uma experiência de ruptura, há uma reprodução da realidade social atual no que se refere ao excesso de estimulações "psicossomáticas", recriando ou repetindo uma autêntica experiência de choque.

Trata-se então de um novo imperativo: tentar simbolizar na carne, no corpo, as dores do viver cotidiano e o sofrimento impedidos de elaboração e representação. Diante da sobrecarga excitatória não tramitável pelo psiquismo - condição de uma experiência traumática em que fracassam os processos de representação - a regulação de quantidades energéticas do psiquismo só é possível pela repetição, acting out. Maniakas (2008: 74) pondera que, "destituído de ligação com as representações-palavra, o trauma é ato puro. Sem possibilidade de transpor o nível da percepção e sem o acesso às cadeias associativas que caracterizam o processo secundário, o trauma impõe-se em toda sua intensidade perceptiva". Ante a "persistência da Coisa muda e a insistência da pulsão de morte",

nem tudo pode ser colocado em palavras e tramitar pelos fios lógicos. Onde estes não enlaçam por substituição, explode o traumático de tal modo que, desfazendo a trama associativa, comanda uma repetição compulsiva e muda. Inassimilável, essa Coisa do mundo é a que irrompe traumaticamente (Gerez-Ambertín, 2003: 40).

No caso das Bodymodifications, trata-se de encarnar a dor e talvez de reeditá-la. As feridas e o esgarçar da pele no corpo modificado indicam uma fixação no trauma. Instaura-se por elas uma marca permanente que retém o trauma e exige repetição; presos que estão a um passado que não passou:

se a salvação ou a esperança de salvação está excluída e o desprazer aumenta incomensuravelmente devido ao fracasso da defesa, a reedição do trauma é inevitável. Sem ter como empreender a fuga ou destruir o objeto responsável pelo estímulo lesivo, a autodestruição pode se tornar a opção econômica mais viável - única válvula de escape - para um sofrimento insuportável (Maniakas, 2008: 45).

Quando Freud (1920/2006) procura dar explicações para a formação das neuroses traumáticas ele discorre sobre a possibilidade de evitá-las caso, junto com a exposição ao excesso traumático desencadeador da neurose, houvesse um ferimento físico. Citamo-lo:

a chance de contrair uma neurose [traumática] é reduzida quando o trauma é acompanhado por um grave ferimento físico. Esse fato torna-se compreensível se levarmos em conta dois aspectos muito enfatizados pela investigação psicanalítica. Primeiro, que os abalos mecânicos figuram entre as possíveis fontes de excitação sexual [...] segundo, que as afecções dolorosas e febris, enquanto duram, exercem uma influência poderosa sobre a distribuição e alocação da libido do doente. Assim, a força mecânica do trauma liberaria o quantum de excitação sexual que, em razão da falta de preparação para o medo, produziria efeito traumático. Um ferimento físico que ocorresse simultaneamente teria a capacidade de mobilizar uma camada de sobreinvestimento narcísico sobre o órgão em sofrimento, utilizando a energia desse sobreinvestimento para capturar [ligar] excesso de excitação (Freud, 1920/2006: 157).

Em outras palavras, a fixação ao trauma ou ao terror

pode ser contornado [a] [momentaneamente] quando à situação acrescenta-se um dano físico ou uma ferida, que atrai para si um investimento de energia narcísica, oferecendo um ponto de ligação para a excitação liberada. Além dessa proteção, na situação traumática, o aparelho psíquico investe continuamente o trilhamento deixado pela experiência "de dor" frente a qualquer incremento libidinal, liberando desprazer semelhante à dor sentida da primeira vez, e produzindo vivências que reconduzem o sujeito à situação traumática. Tal fenômeno ocorre na tentativa do aparelho atingir o prazer ao processar psiquicamente algo extremamente desprazeroso (Maniakas, 2008: 71).

No caso, há uma mobilização das forças disponíveis no aparelho psíquico para estabelecer contrainvestimentos, ou seja, "fixar no lugar as quantidades de excitação afluentes e permitir assim o restabelecimento das condições de funcionamento do princípio do prazer" (Laplanche & Pontalis, 2008: 523). As Bodymodifications seriam parte desse contrainvestimento que conduz a um investimento na dor física, na ferida exposta. A ferida funcionaria como um contrainvestimento numa tentativa violenta de ligar a energia desligada pelo trauma, na procura de localizar, "nomear", o excesso dos choques, contudo mantendo-o. Sendo assim, a dor somática instauraria uma tentativa de reparação ou de restauração do equilíbrio perdido, já que

a presença de um dano corporal é muito mais favorável à recuperação do que a mera assistência e participação indireta em um episódio de perigo [...] o sofrimento psíquico, agora indicado pela origem real do perigo, aparece como índice do caráter benigno de sua tramitação psíquica (Dunker, 2006: 41-42).

Destarte, a repetição indica um trabalho constante da pulsão de vida na tentativa de ligar o excesso energético e organizá-lo, mesmo que por um contrainvestimento de caráter somático e violento: trata-se de uma tentativa de gerar um amálgama pulsional. Não obstante, não se pode esquecer que a intrincação pulsional é, em essência, masoquista, já que se caracteriza pela erotização da destrutividade vinda da pulsão de morte e, portanto, do desprazer que acompanha essa destrutividade - essência do masoquismo erógeno (Rosenberg, 2003) - aí estaria a base do "fracasso do princípio de prazer" (Safouan, 1988) e a evidência da elementaridade da pulsão de morte na dinâmica psíquica da repetição. Em outras palavras, temos um retorno do masoquismo que inflaciona a pulsão de morte. Perante tal condição do mecanismo de repetição das Bodymodifications, mesmo que o contrainvestimento surja de um prazer (e desprazer) orgânico doloroso, portanto masoquista e autoerótico, ganhando nuança de mucosa ou zona erógena - pois investida narcisicamente -, não devemos ignorar o trabalho da pulsão de morte.

O sujeito pode também buscar assumir a posição ativa na repetição do fato que outrora, como vivência traumática, o colocara na condição de passividade (Freud, 1920/2006). Ele pode, inclusive, deleitar-se de forma exibicionista ao subjulgar o espectador passivo e violentado com o espectro do excesso - no caso, com a penosa modificação corporal -, porém será como patinar sem deslizar. A repetição compulsiva consiste em um círculo vicioso.

Portanto, a repetição aparece então como essa luta psíquica pela intrincação pulsional, mas o fracasso dessa tentativa nas Bodymodifications consiste na impossibilidade de enlaçar a intrincação com o fio da representação simbólica. O constante retorno, chamado pelos adeptos de vício, a paixão pelo Real (Zizek, 2003) - o não elaborado não tramitável -, aquilo que não se pode narrar prevalece. Segundo Junior e Lirio (2005), haveria uma sedução3 nessas práticas que é própria de signos abstraídos de conteúdo e referência; no caso, na marca corporal haveria uma "ausência de significado" compartilhado e o "feitiço" se alocaria no vazio de sentido. As Bodymodifications, como propõem os autores, trazem então uma radicalidade "justamente por não guardarem qualquer intencionalidade transcendente ao ato; nisto reside toda sua força, seu verdadeiro valor sintomático. Cada corte rompido em sua pele é um significante vazio que corrompe sem reinstaurar uma nova geografia corporal" (Junior & Lirio, 2005: 142). O indivíduo se rende aos anseios destrutivos guiado pela sociedade.

 

Considerações finais

Se a palavra "marca" carrega as noções etimológicas de limite, fronteira, as diversas marcas impressas por outrem em nosso corpo - erógeno que é - instaura um sentimento de continência (Anzieu, 1989). Já este corpo modificado, marcado pelas práticas de Bodymodification, dirige nosso olhar a contornos corpóreos constantemente retalhados, alargados, perfurados, mutilados, (re)configurados, mascarados: parecem anunciar a falta ou o excesso de marcas - referenciais de amparo - vivenciadas na história pessoal e permeadas por uma lógica cultural própria de nosso tempo: "descendentes diretos da aliança entre militarismo e capitalismo, guerra e técnica" (Matos, 2004: 290). Os hematomas e cicatrizes autoimpingidos, administrados e construídos pelo próprio indivíduo expressam, talvez, uma frenética e desordenada ânsia de singularização, de consolidar um controle pulsional, de representar a dor psíquica.

Se os corpos das histéricas do tempo de Freud falavam/denunciavam uma condição de opressão sexual resultante das injunções culturais e expressavam uma limitação, uma fragilidade psíquica às exigências, aos excessos de pudor e de repressão do pulsional (com um decorrente conflito psíquico), o corpo dos atuais adeptos das modificações corporais nos traz um "grito mudo". Também com um tom de denúncia, entretanto não mais pelo simbólico e sim por meio da confissão do Real que se apresenta na concretude carnal. Para Zizek (2003), o objetivo das Bodymodifications não é mais a inserção em uma ordem simbólica (função da modificação comumente tida por tribos milenares/indígenas), mas sim a afirmação da própria realidade. Sendo assim, esse "grito mudo" demanda o Outro para simbolizá-lo, mas para isso é preciso ver nas marcas uma tentativa de contorno e na pele uma superfície passível de vazão.

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: 10 de dezembro de 2013
Aprovado para publicação em: 20 de março de 2014

Endereço para correspondência
Alexandra Arnold Rodrigues
E-mail: aarnold.rodrigues@gmail.com

Angela Maria Pires Caniato
E-mail: ampicani@onda.com.br

 

 

*Doutoranda do Programa de pós-graduação em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UNIRIO) e docente do curso de graduação em psicologia da FAE - Centro Universitário Franciscanos do Paraná (Curitiba-PR).
**Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (PPI/UEM), Membro do Conselho Federal de Psicologia (CFP)
1 O Bmezine ou BME, criado em 1994 por Shannon Larratt, foi o primeiro Web Site sobre Bodymodifications. O site apresenta milhares de imagens, vídeos e histórias relativas a experiências de modificações corporais contemporâneas do mundo todo, que vão muito além dos já conhecidos piercings e tatuagens. São os usuários e adeptos das práticas que pagam uma taxa e mandam fotos de suas modificações corporais para integrar a "rede social" e compor seus blogs.
2 A paixão pelo Real fundamenta-se nas atuações e compulsões próprias de uma sociedade que flerta com a pulsão de morte e lança os indivíduos no trauma cotidianamente. Real aqui entendido como a partir da proposta lacaniana, como um precipitado não tramitável do inconsciente - o recalcado, pautado na Coisa (das Ding), ou seja, trata-se do Gozo do outro. A Coisa (das Ding) difere do objeto de desejo. Enquanto o "objeto" remete a uma realidade imaginária, ou seja, a representação do objeto e as fantasias que dele decorrem, a "Coisa" corresponde ao Real não tramitável, ao imperativo de gozo que esse objeto não representado demanda - onde a face da pulsão de morte se apresenta: no gozo irrestrito e extremo, o nirvana.
3 Segundo Luchesi, "a palavra provém do latim seducere (se[d] + ducere). Sed, além de conjunção equivalente a "mas", atuava nos textos antigos como prevérbio, significando "separação", "afastamento", "privação"; e ducere queria dizer "levar", "guiar", "atrair". Em síntese, portanto, "seduzir" era o processo pelo qual se atraía para privar o outro da autonomia de si, sob a promessa de possibilitar-lhe a experiência do prazer pleno". Luchesi, I. (06 março, 2002). Mídia e a sedução sem encantamento. Observatório da Imprensa. Recuperado em 17/01/ 2010 de <www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/jd060320024.htm>.