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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Elevar a Coisa à dignidade dos objetos: a política de Lacan entre a proibição e o impossível

 

To elevate the Thing to the dignity of objects: Lacan politics between prohibition and the impossible

 

 

Pedro Sobrino Laureano*; Wilson Camilo Chaves**

Universidade Federal de São João del-Rei - Brasil

 

 


RESUMO

Buscaremos traçar, na obra de Lacan, algumas implicações políticas presentes na passagem de uma concepção de Lei que é pautada pela dialética entre interdição e transgressão para outra, que é explorada pelo psicanalista a partir dos anos 60, em que a Lei perde seu caráter interditor passando a ser associada à ideia de impossível. Trata-se de um movimento em que Lacan revê alguns dos paradigmas fundamentais que haviam norteado sua teoria e clínica nos anos 50, passando a privilegiar, em suas análises, conceitos como os de objeto pequeno a, gozo e pulsão. Neste sentido, buscaremos defender que a ideia de um retorno a Lei pensada em sua dimensão interditora, tanto a respeito da clínica quanto da política, é insuficiente para compreender, ao menos do ponto de vista lacaniano, a estratégia de cura no tratamento e a crítica social.

Palavras-chave: Lacan; maio de 68; interdição; transgressão; impossível.


ABSTRACT

Our goal is to trace the political implications of the passage, in Lacan's work, of a conception of law guided by the dialectic between interdiction and transgression to another, which starts to be explored by the psychoanalyst in the 60s, in which the Law loses its interdicting character and starts to be associated with the idea of the impossible. It is a movement in which Lacan reviews some of the fundamental paradigms that had guided his theory and clinical in the 50s, and starts to focus on the analysis of concepts such as the objet petite-a, jouissance and drive. Our aim is to defend the idea that the return to the prohibitive dimension of Law, both in the its clinical and political implications, it's insufficient to understand, at least from a Lacanian point of view, the strategy of cure in treatment and social criticism, in cultural analysis.

Keywords: Lacan; may 68; interdiction; transgression; impossible.


 

 

Obras do jovem Lacan, dirão talvez um dia, mais uma vez, universitários apressados a separar aquilo que não suporta divisão.
(Derrida, 2007, p. 509)

 

1. De uma Lei que produz o que ela proíbe e sua crítica

A teoria do complexo de Édipo em Freud (1924/2006) centrara-se em torno do eixo da interdição paterna. O menino, naquilo que Freud (1905/2006) denominou fase genital da libido, se confronta com a ausência de falo na mulher e passa a fantasiá-la como sendo devida a uma castração real. Daí em diante, todas as recriminações vindas dos adultos ou genitores serão associadas à ameaça de castração. Como se a maneira que o sujeito tem de organizar experiências primitivas de frustração consistisse em sua "transcendentalização", a constituição de uma fantasia apta a tornar tais experiências compreensíveis, dotá-las de sentido: se a menina não tem o falo, é porque o pai a castrou; se o menino continuar a desejar a mãe, ele mesmo terá o falo castrado. Para além da proibição de desejar algum objeto da experiência, haveria uma proibição e um desejo transcendentais, articulados àquilo que Freud viu como sendo a base mesma do complexo de Édipo, a fantasia do interdito paterno e o desejo da mãe.

Ora, o movimento do ensino de Lacan, quando reelabora a partir dos anos 60 a centralidade que havia conferido à Lei simbólica, foi enxergar na ideia de uma função transcendental da interdição uma fantasia que não havia sido interpretada por Freud; justamente aquela inerente ao que Lacan qualifica, em seu seminário 17, como "Édipo, o mito de Freud" (Lacan, 1969-1970/1991, p. 124): a fantasia de uma proibição. Não apenas, portanto, a fantasia que Freud havia observado como constitutiva das "teorias sexuais infantis" (Freud, 1905/2006), como também a fantasia do próprio Freud e da teoria lacaniana anterior que, nos anos 50, havia interpretado o "não do pai" freudiano como sendo um nom du père, o Nome do pai capaz de instituir a interdição simbólica através da operação da metáfora paterna (Lacan, 1957-1958/1999, p. 177).

No seminário 17, Lacan afirma que, como qualquer mito, o Édipo deveria ser interpretado. Entretanto, a ideia de intepretação muda radicalmente entre a teoria do simbólico dos anos 50 e o seminário 17 de 1970. Nos anos 50, interpretar era reconhecer na forma pura da Lei simbólica a imanência entre desejo e Lei; reconhecer que, como Lacan coloca em seu seminário 6,"o desejo é a intepretação" (1959-1960/2002): o desejo é atravessado pela operação de castração simbólica que institui a falta estrutural do objeto adequado da satisfação. O que significa, fundamentalmente, reconhecer a função de limite operada pela Lei simbólica, a perda que a linguagem institui sobre o desejo de objetos relacionados ao polo narcísico da experiência, este que Lacan chamou de imaginário (Lacan, 1949/1998).

Podemos dizer que Lacan acreditava que o reconhecimento da relação entre o desejo e o interdito instituído pela Lei constituía o fiador principal da clínica. Neste momento, curar era "transcendentalizar" o desejo, destituir a falta pensada como frustração imaginária e elevá-la ao estatuto de uma privação simbólica estrutural (Lacan, 1956-1957/1995, p. 59). Curado será o sujeito que, reconhecendo a Lei simbólica, não compromete mais seu desejo à tentativa inerente ao narcisismo imaginário de transgressão dos limites que o simbólico institui. A experiência da análise era a da passagem de uma "fala vazia" para uma "fala plena" capaz de reconhecer, para além da dimensão narcísica do outro como semelhante, o Outro como sede da Lei (Lacan, 1953/1998, p. 248). A análise, neste sentido, era concebida como uma experiência essencialmente intersubjetiva de reconhecimento entre sujeitos através da função simbólica: "O sujeito, nós dizíamos, começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si. Quando ele conseguir falar de si a você, a análise estará terminada" (Lacan, 1953/1998, p. 373).

Através do reconhecimento da interdição simbólica, esta "fala plena" da intersubjetividade deveria ser capaz de instituir o desejo pelo grande Outro (A) da Lei para além do semelhante (a) submetido à lógica narcísica do imaginário. O final de análise era visto como a realização daquilo que a fórmula de Kojève (2002) visava a respeito da Fenomenologia do espírito (1992), de Hegel: "o desejo do homem é o desejo do Outro" (Lacan, 1953/1998, p. 254). O desejo humano não é determinado pela satisfação ou consumo de objetos naturais, é desejo de ser reconhecido pelo Outro como desejante. Para Lacan, tal reconhecimento dependeria de que o sujeito reencontrasse em seu desejo a Lei simbólica que institui a interdição do incesto no complexo de Édipo, proibindo a recuperação daquilo que é perdido devido à interdição.

Em relação ao complexo de Édipo tal como este havia sido pensado por Freud, a ameaça de castração paterna era reinterpretada como uma castração simbólica; o "não do pai", a proibição do incesto preferida pelo pai tal como Freud a formulara, era relida por Lacan como um Nome-do-pai, o operador da metáfora paterna capaz de substituir ao desejo da mãe o falo como significante da castração, impedindo a redução do filho ao objeto capaz de anular a castração materna (Lacan, 1957-1958/1999, p. 149). Nesta reelaboração do complexo de Édipo, de certa forma Lacan relacionava o eixo imaginário ou narcísico da experiência com a ideia de transgressão da Lei paterna: "Enquanto Lacan não desfez a conexão entre libido e narcisismo [...] só se podia concluir o seguinte: o que é do sujeito na ordem simbólica está necessariamente fora do gozo" (Miller, 2005, p. 75). Isto é, o imaginário implicava o não reconhecimento da metáfora paterna como operação do Nome do Pai. O falo imaginário que o filho significa para a mãe deveria ser substituído, através da operação metafórica que é realizada pelo Nome do pai, pelo falo simbólico (Lacan, 1957-1958/1999, p. 161).

Ora, ao reler o Édipo como sendo um mito de Freud que deveria ser interpretado, a ideia de Lacan é que o próprio esquema daquilo mesmo que segundo o complexo de Édipo constituía uma interpretação deveria ser reinterpretado;o sentido da intepretação havia mudado em suas bases fundamentais, portanto. De fato, o Édipo já constituía um operador de intepretação, fundamentado sobre a interdição simbólica. A partir dos anos 60, entretanto, a intepretação passa a não ser mais concebida por Lacan como visando ao desejo atado à operação da metáfora paterna, ao "desejo puro" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 432) pela "pura forma da lei" (Lacan, 1953/1998, p. 101), mas sim à pulsão. Ou seja, a intepretação não visa mais à dimensão da interdição paterna que institui o desejo como falta, mas sim àquilo que Lacan buscou pensar através da função do objeto pequeno a como "objeto causa do desejo" (Lacan, 1964/1985), o objeto da pulsão que, como veremos, não pode ser demandado ou proibido pela Lei.

A ideia de uma "travessia da fantasia" (Lacan, 1967/2003, p. 248), que Lacan propõe nos anos 60, implica que a dissolução do mito individual do neurótico seria a dissolução do próprio Édipo como mito fundamental não apenas da neurose, mas da própria psicanálise. Na travessia da fantasia edipiana não se trata mais de reconhecer o objeto fundamental do desejo como estruturalmente proibido, mas sim o objeto da pulsão como impossível. De fato, a ideia de uma travessia da fantasia consiste exatamente no contrário daquilo que Lacan buscara pensar nos anos 50 como constituindo o protocolo da clínica. Trata-se justamente da destituição da fantasia de um objeto perdido do desejo e da interdição simbólica que o proíbe; a intepretação deve visar à eliminação do fantasma do objeto proibido do desejo em favor do objeto impossível da pulsão, do objeto pequeno a como objeto causa do desejo.

O que Lacan percebe, fundamentalmente, é que o reconhecimento da função transcendental de interdição imposta pela Lei não era oposto à instituição da própria Lei como fantasma. Ou seja, que "há mediação do fantasma em toda identificação possível entre o sujeito e a pura forma da lei. Não há identificação à lei que não seja suportada por um fantasma fundamental" (Safatle, 2005, p. 171). De fato, o que constituía para Lacan nos anos 50 o principal problema da clínica era o de como separar sujeito e gozo, retirar ao sujeito a satisfação extraída na repetição das experiências traumáticas e dos sintomas. E a resposta encontrada era que tal gozo testemunhava a fixação do sujeito na dimensão imaginária do complexo de Édipo devida a uma falha, uma insuficiência no reconhecimento da Lei.

O que muda, então? Pensamos que Lacan não fornece uma nova resposta ao problema que havia formulado, mas enxerga na solução que havia proposto o verdadeiro problema fundamental que deveria ser deslocado pela experiência da análise. De fato, Lacan compreendeu que o programa do final de análise assentado sobre o reconhecimento da pura forma da Lei repetidamente fracassava, ou, como diria em uma fórmula ulterior, "não cessa de não se escrever" (Lacan, 1972-1973/2008). Ou seja, percebeu que orealda repetição traumática ou do gozo, e não da realidade, contradizia a teoria. Segundo Chieza,

Lacan compreendeu que alguma coisa no sintoma inevitavelmente continua a resistir à simbolização, não importa o quão longe se leva o tratamento psicanalítico. Resumidamente, pode-se dizer que a ordem simbólica completa não explica a dimensão do gozo, um prazer inconsciente na dor que não poderia ser mais relegado à esfera da perversão patológica, e demandava uma transformação (recapitulação) das noções freudianas de repetição e pulsão de morte (que Lacan havia tentado explicar antes em termos intrassimbólicos) (Chieza, 2007, p. 124).

Não se trata de propor que Lacan poderia ter considerado tal fracasso como sendo meramente a marca de um limite na experiência do sujeito. De fato, se o reconhecimento da Lei como primeira implicava que também o imaginário era instituído pela própria Lei, era impossível que o sujeito submetesse integralmente seu desejo à pura forma da lei: sempre haveria um resto de gozo imaginário que não poderia ser integrado pelo símbolo. A constatação de Lacan, entretanto, é mais radical; não se trata apenas do reconhecimento de um limite imanente à Lei, mas do limite da própria Lei pensada como limite, do próprio simbólico pensado como interdição. É que a ideia de interdição não era apenas limitada em sua potência de destituir o imaginário, mas terminava por reforçar o fantasma imaginário que ela deveria interditar. Isto é, Lacan percebe que a Lei interpretada como interdição produzia o próprio problema que ela deveria resolver e que, portanto, falhava em seus próprios pressupostos.

É que a interdição simbólica dos objetos que Lacan havia pensado como submetidos à lógica do imaginário acarreta necessariamente a produção de um objeto que é posto pela própria Lei: o objeto incestuoso do fantasma, este que, no seminário 7, Lacan chamou de das Ding ou a Coisa (Lacan, 1957-1958/1999, p. 57). A Lei é impotente para legislar sobre o domínio de todos os objetos possíveis do desejo, pois há um objeto que é instituído pela Lei no ato mesmo de proibi-lo. Ou seja, o reconhecimento da interdição simbólica em detrimento do narcisismo imaginário resultava necessariamente no fortalecimento do fantasma da Coisa como inerente à renúncia simbólica à Coisa. E, como viu Lacan, o resultado do reconhecimento simbólico pensado como conformação do sujeito à pura forma da Lei não poderia ser diferenciado daquilo que Freud (1923/2006) havia descrito como constituindo a operação do superego.

Como consciência moral do sujeito, o superego significa que quanto mais o sujeito renuncia à Coisaem nome da Lei da interdição, mais a própria interdição reforça o fantasma da Coisa que ela deveria interditar:

Lacan mostra como a "voz interior" do superego que se "substitui" ao real primordial [a perda da Coisa pela emergência da Lei simbólica] - representada negativamente no simbólico como a "mudez" de das Ding - é seu "oposto e reverso", mas, inesperadamente, tomada de forma mais pura, é também idêntica a ela (Chieza, 2007, p. 170; grifo nosso).

Talvez possamos caracterizar a teoria da Lei pensada como interdição, no Lacan dos anos 50, como sendo a de que a análise consistiria no fortalecimento do "simbólico fraco" do analisante através do "simbólico forte" do analista1. De fato, neste período de seu ensino, Lacan denunciou repetidas vezes a psicologia do ego norte-americana que, ao pensar a clínica como um processo de reforçamento do "ego fraco" do paciente através do "ego forte" do analista, haveria traído a radicalidade da descoberta freudiana (Lacan, 1949/1998). Entre as várias críticas que podem ser dirigidas à psicologia do ego, podemos dizer que uma das principais é que a idealização do analista como ego forte acarreta, necessariamente, o reforçamento do superego. Ou seja, o saldo pela proposição de um ego forte é a constituição do superego na forma de uma consciência moral que, ao invés de proibir ou interditar o gozo, transforma-o em um dever. A adaptação do sujeito ao ego forte do analista significava a submissão a um Outro que não apenas possibilitava, mas demandava o gozo narcisista da realização do eu.

O superego, entretanto, não significa apenas o reforçamento do imaginário. Há, de fato, uma dimensão simbólica do superego que não se opõe, mas antes complementa a demanda imaginária de gozo. Se o que o sujeito busca na Lei pensada através da operação de interdição é uma defesa contra a demanda de gozo implicada na lógica imaginária, o que ele termina por encontrar, entretanto, é a própria Coisa incestuosa que deveria ser interditada. Como, então, se a Lei produz o objeto que ela mesma proíbe, embasar uma teoria que fundamentava no recurso à Lei a crítica da satisfação imaginária narcísica? Não seria o caso de dizer, da mesma forma, que se o sujeito se submete ao dever imaginário de gozo é porque ele busca defender-se de uma Lei que institui aquilo que ela deveria proibir, a Lei simbólica que reforça o fantasma da Coisa no ato mesmo de interditá-la? Neste sentido, talvez fosse o caso de dizer que o gozo imaginário se relacionaria à defesa que o sujeito erige contra a culpa devida a uma lei de interdição.

O que se encontra excluído nestas duas formas de se pensar a relação entre o sujeito e a Lei, uma como dever imaginário de gozo e outra como sua proibição simbólica, é a ideia de um gozo capaz de quebrar a complementaridade entre Lei e fantasma e, portanto, entre Lei e superego; gozo que Lacan buscará pensar, a partir dos anos 602, como sendo a dimensão inútil daquilo que não serve para nada; inutilidade de um gozo que não serve e que, justamente por não servir, é capaz de abolir a servidão do sujeito a um Outro que demanda ou proíbe. Não o gozo posto a serviço do imaginário, portanto, mas também não este gozo transgressivo que a ideia de interdição necessariamente implica. Frente a estas duas interversões ou reversões da Lei, uma na qual o narcisismo revela-se como demanda de gozo do Outro, e outra na qual a interdição do desejo torna-se desejo de interdição, Lacan nos anos 60 elabora uma teoria da pulsão como dimensão de um gozo "para além da lei" (Lacan, 1964/1985, p. 267) capaz de satisfazer-se com a própria impossibilidade ou divisão constitutiva do Outro.

De fato, tanto na esfera de uma "lei" do imaginário, quanto na da Lei simbólica pensada como interdição, o que é insuportável para o sujeito é a divisão do Outro. No imaginário, a demanda de gozo é o dever que o sujeito assume de completar o Outro, de "cegá-lo" para sua própria impossibilidade constitutiva; da mesma forma, na função interditora da Lei, é o sujeito também que assume superegoicamente a transgressão da Lei, sua impotência em legislar sobre um objeto que ela mesma institui. No imaginário, trata-se de submeter o gozo ao dever de um Outro que passa a demandar o gozo narcísico. Já na Lei simbólica pensada como interdição, trata-se de cercear a inutilidade do gozo através de um Outro que, como não/nome do pai pensado como "desejo puro" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 432), termina por instituir o objeto impuro que assombra o sujeito no superego. Em ambos os casos, a divisão no Outro - a impossibilidade do Outro em atingir um gozo pleno e a impotência da Lei em proibir o objeto incestuoso - é inteiramente assumida pelo próprio sujeito.

De fato, "resignação infinita", termo proposto por Deleuze e Guattari (1973/2010) para classificar uma psicanálise que enxergasse no dever simbólico de interdição uma saída para a demanda imaginária, talvez não fosse tão cruel assim. E é em tal perspectiva que Lacan se propôs como tarefa repensar, portanto, a partir dos anos 60, através do reconhecimento dos limites da "ética dos limites" simbólica. E a ideia que Lacan desenvolve, então, é a de que há um gozoda própria divisão do Outro; ou seja, um gozo que não procura curar o Outro de sua divisão, que é capaz de abolir a dívida simbólica ou imaginária que o sujeito contrai em relação ao Outro.

De forma que, em um trecho fundamental do seminário 16, de 1968 e 1969, Lacan poderá falar que,

seja como for, eu gostaria de lhes assinalar que foi aí que, na análise, pusemos a norma certa. O mais-de-gozar é expressamente modulado como alheio à questão, se a questão de que se trata, no que a analise pode promover, é o retorno à norma. Como não ver que essa norma se articula aí efetivamente como a Lei, aquela em que se fundamenta o complexo de Édipo? Ora, por onde quer que tomemos esse mito, está perfeitamente claro que o gozo se distingue absolutamente da Lei (Lacan, 1968-1969/2008, p. 148; grifo nosso).

É em um mesmo movimento, portanto, que o imaginário e o simbólico assumem a forma do dever superegoico como demanda ou proibição do gozo e que esta dimensão de um gozo irredutível à Lei é evitada. Desta maneira, o gozo que se "distingue absolutamente da Lei" a respeito do qual Lacan fala neste trecho ou é associado ao narcisismo incapaz de reconhecer a Lei como interdição ou a um ideal de transgressão da Lei pensada como interditora. Ou seja, é em um mesmo movimento que o narcisismo institui-se como ideal contra a interdição e que a interdição institui-se como limite contra o narcisismo.

O problema destas duas vertentes, que talvez constituam duas das principais versões do diagnóstico social e político de hoje, aquela que opõe os conservadores da Lei aos liberais do direito individual, é que ambas são fenômenos estritamente complementares. E o que ambas têm em comum é o fato de excluírem a dimensão de um gozo que não é nem interditado nem demandado, e que Lacan buscou pensar como sendo o gozo que o sujeito retira da própria impossibilidade da Lei em instituir o dever. Aquilo que a fantasia do gozo como proibido ou demandado evita, portanto, é o encontro do sujeito com a própria impossibilidade do Outro, encontro que Lacan buscará pensar através de conceitos como os de real e de pulsão.

 

2. Maio de 68: a política entre a transgressão e o impossível

Podemos compreender algumas das consequências clínicas e políticas de tais remanejamentos teóricos através da leitura que Lacan realiza da revolta de maio de 68 na França. Pois a recusa do par complementar da interdição e da transgressão fora uma das razões fundamentais do por que Lacan pensara que um dos aspectos das revoltas de maio era o desejo de um mestre, chegando mesmo a dizer, para estudantes que o pressionavam no auditório da universidade parisiense de Vincennes a responder se a psicanálise estaria ou não ao lado da revolução, que "[...] o que vocês aspiram, como revolucionários, é a um mestre. Vocês o terão!" (Lacan, 1969-1970/1991, p. 218). De fato, mesmo vendo alguns de seus principais alunos e seguidores da École normale supérieure participarem ativamente nos acontecimentos de maio, Lacan permaneceu relativamente distante da rebelião (Roudinesco, 1994, p. 451-473).

O engajamento de Lacan com a revolta foi ambivalente, oscilando entre o diagnóstico de que os revolucionários queriam um "novo mestre" e, por exemplo, ajudas a Gauche proletarienne, grupo maoísta que tinha seu próprio genro Jacques-Allain Miller como um dos membros (Roudinesco, 1994, p. 465). Certamente os acontecimentos da época, e o modo como os compreendia, influenciaram Lacan na elaboração no seminário 17 de um discurso do analista (Lacan, 1969-1970/1991, p. 9) e também em sua tentativa de pensar os problemas institucionais da escola de psicanálise que fundara em 1964, a École freudienne de Paris. Mas também é verdade que Lacan enxergava na psicanálise o potencial subversivo que, por vezes, levou-o não a cegar-se, mas talvez a tornar-se excessivamente cético em relação ao potencial político de eventos como os de 68.

O que nos interessa, entretanto, é compreender como as revoltas determinaram uma inflexão política no pensamento de Lacan que se exprime através de duas ideias fundamentais. A primeira é a de que uma revolta contra a autoridade feita em nome da transgressão ou de uma sociedade em que o gozo individual fosse livre, longe de minar a proibição e a repressão, terminaria por reforçá-las. E a segunda é que a crítica empreendida por Lacan a alguns aspectos das revoltas de maio de 68 não representa qualquer tipo de nostalgia do modelo edípico de "socialização repressiva". Justamente porque o modelo edípico de "socialização repressiva", inteiramente ancorado na função interditora da Lei simbólica, era aquilo mesmo em relação ao que Lacan buscava se distanciar em relação a seu próprio ensino anterior.

A ideia de alguns teóricos lacanianos de que, em uma sociedade pós-edípica, na qual a autoridade social e a função da interdição se encontram desestabilizadas, não apenas a função da clínica como também a da resistência política deve ser a de reforçar o papel interditor da lei deve ser criticada, portanto. Como coloca Zizek:

Infelizmente alguns lacanianos se referem a essa passagem para apoiar a agenda conservadora e, numa linha de crítica cultural conservadora, deploram a lógica da demanda e defendem o retorno à reinvenção do desejo por meio da reimposição de algum tipo de proibição: "Volte, Édipo, tudo será perdoado!". Entretanto, embora seja verdade que insistir na demanda é o próprio modo de trair o desejo, não há caminho de volta depois que a proibição perde seu caráter obrigatório. Antes seria preciso concentrar-se na demanda como caminho para a pulsão, ou seja, o que se precisa é de uma demanda que não se dirija mais ao Outro. Tanto o desejo quanto a demanda se baseiam no Outro - seja o Outro total (onipotente) da demanda, seja o Outro "castrado" da Lei; a tarefa, portanto, é assumir por inteiro a não existência do Outro - até e também do Outro morto (Zizek, 2008, p. 392).

Ou seja, a ideia de Lacan não é a de que, em uma sociedade atravessada pela crise da Lei Paterna, a tarefa da psicanálise seria a de reforçar a autoridade, contrapondo a Lei interditora à "sociedade permissiva" atual. Pelo contrário, é antes a crítica da ideia de transgressão e a da fantasia de que a função da autoridade seria necessariamente a de proibir o gozo que permitiu a Lacan realizar uma crítica de certas tendências que enxergou como liberais dentro do Maio de 68. E isto porque foi tal crítica à Lei pensada como proibição que significou para o próprio Lacan, em uma autocrítica de seus pressupostos anteriores, a recusa da interdição simbólica como sendo a última palavra da psicanálise.

Vimos como a proposição de uma "ética do simbólico" pautada na noção de um desejo de lei fora elaborada por Lacan nos anos 50. Quando a partir do seminário 7 Lacan busca pensar a dimensão do real, termina por concebê-la como o encontro transgressivo do sujeito com a Coisa para além da lei, encontro que, no contexto da "ética do real" que começava a se delinear, significava, no limite, a aniquilação do próprio sujeito (Lacan, 1957-1958/1999). O que Lacan buscará, então, em sua teoria e clínica é a possibilidade de se pensar uma relação com o Outro não mais pautada pela dialética entre Lei e transgressão. Relação que fosse capaz de destituir a fantasia de uma proibição do gozo através daquilo que Lacan chamou de real como sendo o gozo do próprio impossível. Como coloca Lacan, no seminário 17:

Que o pai morto seja o gozo [isto é, que o interdito paterno proíba o gozo da mãe], isto se apresenta para nós como sinal do próprio impossível. E é nisso que reencontramos aqui os termos que defini como aqueles que fixam a categoria do real, na medida em que ela se distingue radicalmente, no que articulo, do simbólico e do imaginário - o real é o impossível. Não na qualidade de simples escolho contra o qual quebramos a cara, mas do escolho lógico daquilo que, no simbólico, se enuncia como impossível. É daí que surge o real (Lacan, 1969-1970/1991, p. 130).

Tudo se passa, então, como se Lacan houvesse enxergado na revolta de 68 elementos que apontavam para uma contestação massiva da Lei paterna como proibitiva, e para a ideia de que uma oposição a esta Lei deveria ser realizada através de um ato coletivo de transgressão que terminaria por substituir ao mestre antigo um novo mestre que Lacan chamou "discurso da universidade" (Lacan, 1969-1970/1991, p. 9). Trata-se de um discurso que instaura um novo regime de dominação política, na qual o saber inconsciente, que Lacan chamou de S2, passa a determinar o sujeito (∃) a produzir o mais gozar (a). Ou seja, o gozo (a) é contabilizado (S2) através da produção infinita de um mais gozar que determina, no sujeito barrado (∃), o imperativo do trabalho ou da produção de um excesso de gozo passível de ser contabilizado no mercado3. De fato, o discurso da universidade é associado por Lacan ao capitalismo, onde

jamais se honrou tanto o trabalho, desde que a humanidade existe. E, mesmo, está fora de cogitação que não se trabalhe. Isto é um sucesso, então, do que chamo discurso do mestre. Para isto, foi preciso que ele ultrapassasse certos limites. Em poucas palavras, isso acontece naquilo cuja mutação tentei apontar-lhes [...]. Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista [...] (Lacan, 1969-1970/1991, p. 178).

No esquema de Lacan, o que se encontra oculto como constituindo a verdade do discurso universitário é o significante mestre (S1). Isto é, no declínio das relações pessoais de servidão e senhoria que constituíram a base do discurso do mestre no mundo pré-capitalista, o discurso da universidade implica o ocaso da função de mestria e a elevação de um saber anônimo (S2) à função de lei do regime político. O saber que na fórmula de Lacan ordena ao sujeito barrado (∃) a produzir o gozo (a) não tem seu poder legitimado por um indivíduo como, por exemplo, um soberano, mas pela "necessidade objetiva" de leis anônimas, como as leis da economia de mercado.

Por isto que Lacan pode enxergar, em 68, aspectos de uma contestação da autoridade que, relacionados à demanda por uma sociedade em que o gozo proibido fosse restituído, poderiam ter como resultado a instauração de um novo regime de dominação política. Regime em que, se nada seria proibido, tudo seria demandado; isto é, em que o gozo deixaria de ser proibido para tornar-se um dever, o dever da produção daquilo que Lacan chama de "mais-gozar" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 11). O ocaso da função da autoridade ligada à mestria antiga poderia ser realizado pela constituição de um regime político no qual o gozo transgressor da Lei não apenas deixasse de ser proibido, mas passasse a fundamentar o dever social.

Para Lacan, portanto, a utopia de uma sociedade em que o gozo absoluto seria restituído através da destituição da Lei é um fantasma inerente à própria ideia da Lei como interdição, é o mito de uma Lei paterna proibitiva que instituia ideia mesma de transgressão. Ao fazer do que chamou de discurso da universidade uma variação do discurso do mestre, Lacan enxerga nesta concepção de liberdade a realização mesma de seu oposto: a instauração de uma nova figura de dominação, certamente mais "humana", mas humana apenas na medida em que é capaz de reverter o antigo laço pessoal de servidão em uma servidão anônima, a antiga sociedade "repressiva" em uma sociedade administrada dentro da qual o indivíduo, servindo, pensa só servir a si mesmo. Isto é, sociedade na qual a transformação do gozo em dever é vivida pelos sujeitos como liberdade de escolha e livre-iniciativa.

Se no discurso da universidade não se serve mais a ninguém, portanto, é justamente porque todos são levados a servir. Como colocou Roudinesco,

A propósito dos acontecimentos de Maio, [Lacan] sublinhava que a contestação conduzira à suspensão na universidade da antiga função do mestre para substituí-la por um sistema tirânico fundado no ideal de comunicação e da relação pedagógica. Nada mais verdadeiro, já que se sabe hoje que a revolução das barricadas foi um dos momentos da substituição, na universidade, dos intelectuais pelos tecnocratas (Roudinesco, 2008, p. 471).

Como Lacan aponta no seminário 17 (Lacan, 1969-1970/1991), a fantasia da autoridade que proíbe o gozo já fora descrita por Freud em "Totem e tabu" (1914/2006) através da ideia igualmente mítica de que na origem da civilização teria havido o assassinato do Pai da horda primeva. Nesta horda primeva os filhos, sendo privados do gozo por um pai tirânico que dispunha de todas as mulheres, haveriam se unido para matá-lo e conseguir o acesso ao gozo. Em "Totem e tabu", entretanto, é justamente o assassinato do pai pelos filhos que generaliza a função de proibição. O assassinato do pai, ao invés de liberar o acesso ao gozo, faz retornar o amor dos filhos pelo pai, amor que, para Freud, constitui a base mesma do impulso religioso no homem (Freud, 1914/2006). Devido ao conflito da ambivalência entre o amor e o ódio, os filhos se sentem culpados e erigem um monumento à memória do pai morto; isto é, fazem com que o pai assassinado retorne como símbolo, através da instituição do animal sagrado totêmico que prescreve as interdições ou tabus que recaem sobre a horda parricida.

É a partir desta narrativa de Freud, que inverte a fórmula "se Deus morreu, tudo é permitido" do personagem de Ivan Karamazov em Os irmãos Karamázov (2009) de Dostoiévski, que Lacan poderá dizer que "Deus está morto tem como resposta que nada mais é permitido" (Lacan, 1969-1970/1991, p. 112-113). Isto é, longe de eliminar a proibição, a morte de Deus é o que a institui:

A morte do pai [...] não me parece - longe disso - talhada para nos libertar [...]. O anúncio da morte do pai está longe de ser incompatível com a motivação dada por Freud à religião, como intepretação analítica da mesma. É, a saber, que a própria religião repousaria sobre algo que Freud, bastante assombrosamente, afirma como primordial - o pai é reconhecido como quem é merecedor do amor. [...] A ponta de lança da psicanálise é, justamente, o ateísmo, desde que se dê a este termo um outro sentido, diverso daquele de Deus está morto, sobre o qual tudo indica que longe de questionar o que está em jogo, a saber, a lei, ele antes a consolida. [...] partamos da morte do pai, se é ela mesmo o que Freud nos anuncia como a chave do gozo, do gozo do objeto supremo identificado à mãe, a mãe visada do incesto. Seguramente, não é a partir de uma tentativa de identificar o que é dormir com a mãe que o assassinato do pai se introduz na doutrina freudiana. Muito pelo contrário, é a partir da morte do pai que se edifica a interdição desse gozo como primária (Lacan, 1969-1970/1991, p. 124-125).

Decorre daí, também, a necessidade de Lacan de operar cada vez mais no registro da matemática, da lógica e da topologia, a partir dos anos 70. Como se apenas a formalização do discurso, realizando a construção lógica do impossível para além do mito, pudesse revelar o ponto de impossibilidade inerente ao mito de uma proibição do incesto realizada pela interdição paterna. No contexto da transmissão da psicanálise, a formalização seria um dos recursos privilegiados a partir dos quais Lacan buscaria destituir o fantasma da proibição do incesto ao substituir o Nome/não do Pai pela dimensão do impossível como causa imanente do descentramento do Outro. Reconhecimento da impossibilidade do Outro que é relacionado por Zizek à ideia de que, como vimos, "a tarefa [da psicanálise] é assumir por inteiro a não existência do Outro" (Zizek, 2008, p. 392), isto é, instituir a inexistência do Outro como a possibilidade de libertar o próprio Outro do fantasma da realidade de um gozo para além da proibição.

Lacan (2005) também retoma, nos anos 60, a função do Nome do pai buscando lê-la como uma père-version, neologismo em que joga com a homofonia, em francês, entre perversão (perversion) e versão do pai (père version). O Nome do Pai, como instituição no Outro do significante fálico da castração, é ao mesmo tempo aquele que institui a perversão, o desejo transgressivo de um gozo que se realizaria para além da Lei. E tal pluralização dos Nomes do Pai implicada na ideia de "versões do pai" não indica apenas o reconhecimento por Lacan da existência de uma pluralidade de Nomes do Pai, incluindo aí o Nome do Pai pensado como interdição do desejo da mãe. Mais fundamentalmente, o que ela indica é que aquilo que fundamenta a pluralidade mesma dos Nomes do Pai é oimpossível, a inconsistência mesma do Outro como já sendo o Nome do Pai.

Não se trata, para Lacan, de dizer que qualquer significante possa funcionar como significante mestre, já que haveria uma diversidade infinita de versões do pai, mas sim de apostar na possibilidade de que o sujeito institua o próprio impossível como significante mestre,a inconsistência ou inexistência do Outro como causa. É tal possibilidade que, nos anos 60 e 70, Lacan buscou pensar através da ideia de um discurso analítico, no qual é justamente o objeto pequeno a como impossível (a, assumido como semblante pelo analista) que leva o sujeito barrado (∃, o analisante) a produzir novos significantes mestres (S1). Isto é, no discurso analítico, é exatamente o ponto de impossibilidade no Outro (a) que determina o sujeito (∃) a produzir uma verdade (S1) que é a verdade sobre sua própria divisão, verdade implicada no gozo (a) de sua própria impossibilidade. Gozo que é absolutamente alheio à dialética entre transgressão e proibição e capaz, portanto, de destituir o superego através da identificação do sujeito à própria inconsistência do Outro. O que é "interditado" na ideia de um discurso analítico é justamente que haja um saber (S2) separado da verdade como causa, a ideia de um saber que não implique o sujeito e o Outro através de sua própria divisão.

A travessia da fantasia (Lacan, 1967/2003, p. 248) instituída pelo discurso analítico se realiza, então, através da uma subversão do mito de que há um pai que proíbe, mito que tem como contrapartida o fantasma de que o pai que proíbe é aquele que tem acesso ao gozo da Coisa. A travessia se realiza justamente através da recusa da ideia de que o objeto pequeno a seja um objeto proibido. E postular o objeto pequeno a como "causa do desejo" não será mais, conforme a fórmula do seminário 7, "elevar o objeto à dignidade da Coisa" (Lacan, 1959-1960/1999, p. 140-141), isto é, transgredir o interdito simbólico rumo ao encontro com a Coisa para além da Lei. Pelo contrário, a travessia implica a possibilidade de "elevar a Coisa à dignidade dos objetos"; isto é, destituir o fantasma da Coisa proibida em favor da transformação, pelo sujeito, da própria inconsistência do Outro, encarnada nos objetos pequeno a, em causa do desejo.

Tal subversão acarreta a rejeição da ideia de um desejo puro pensado como desejo da Lei como interdição em favor de um desejo para além da Lei como sendo aquilo que Lacan chamou, na passagem que fecha o seminário 11, de "amor sem limite":

O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, a posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver (Lacan, 1964/1985, p. 267).

Isto é, uma "diferença absoluta" que institui o amor para além de qualquer estrutura de reconhecimento ditada pela lógica do semelhante inerente ao imaginário, mas, igualmente, pela Lei pensada segundo a lógica da interdição e da transgressão simbólicas. Que institui, portanto, o amor pelo dessemelhante, pela inconsistência ou pelo impossível no Outro como constituindo sua causa.

 

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Artigo recebido em: 01/02/2013
Aprovado para publicação em: 01/04/2013

 

 

* Psicanalista. Mestre em psicologia Clínica pela PUC-RJ. Professor DPSIC - Departamento de psicologia UFSJ.
** Doutor em Filosofia pela UFSCar. Professor na Graduação e Pós-Graduação em Psicologia - UFSJ Departamento de Psicologia - UFSJ. Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise - NUPEP.
1 Vale aqui lembrarmos a afirmação de Dunker (2011) a respeito das motivações críticas a este paradigma estruturalista de Lacan: "A teoria da metaforização generalizada nos conduz, assim, à imanência do conflito, que acaba sendo polarizado apenas nas operações de inversão entre metáfora do sintoma na metonímia do desejo e reciprocamente. Isso levou a uma concepção de tratamento cuja cúspide é a aceitação ou submissão ao simbólico. O neurótico, mas também o perverso ou o psicótico, em outro sentido, seriam sujeitos que resistem, com seus sintomas e práticas correlatas, ao funcionamento transcendental da lei. É contra este entendimento algébrico e formal da metáfora nos processos de simbolização que se levantam contra Lacan tanto as críticas de Laplanche, quanto dos pragmatistas e ainda da hermenêutica crítica" (Dunker, 2011, p. 172).
2 Miller (2012), procurando pensar esta modificação do conceito de gozo, distinguiu seis paradigmas do gozo inerentes à teoria lacaniana. Ainda assim, podemos perceber que os seis paradigmas constituem uma forma encontrada por Miller de explicar a transição em Lacan do gozo como interdito para aquela do gozo como inerente à própria linguagem. O que buscamos apontar aqui como constituindo uma solução encontrada por Lacan às aporias da Lei simbólica pensada em sua função exclusivamente interditora relaciona-se ao que Miller descreve como sendo o quinto paradigma do gozo, que representa para o autor o amadurecimento deste movimento inerente à teoria lacaniana: "Desde então, o acesso ao gozo não se dá mais, essencialmente, através da transgressão, mas através da entropia, do desperdício produzido pelo significante. Assim, Lacan pode dizer que o saber é um meio de gozo. Não se poderia renunciar melhor à autonomia da ordem simbólica. O saber é um meio de gozo num duplo sentido: na medida em que ele tem efeito de falta e na medida em que ele produz o suplemento, o mais-gozar" (Miller, 2000, p. 98).
3 A matriz dos quatro discursos é fornecida por Lacan (Lacan, 2001 (1970), p. p. 447) através destas quatro posições:
A seta que vai do agente ao outro indica a impossibilidade, enquanto a barra da produção para a verdade indica impotência. Os lugares são ocupados pelo sujeito barrado (∃), pelo objeto pequeno a (a), pelo significante mestre (S1) e pelo saber (S2). É a permuta destes quatro elementos que gera cada um dos quatro discursos: no do mestre, S1 ocupa o lugar do agente, S2, o do outro, o objeto pequeno a (a) o da produção e o sujeito barrado (∃) o da verdade. Os outros discursos são o da histeria, o da universidade e o do analista: